Leci Brandão: a soldada do samba que reconhece os seus
Por Kathleen Hoepers, do Samba em Rede
Uma das primeiras mulheres a entrar para uma ala de compositores no machista universo do samba carioca, Leci Brandão tem muita história para contar sobre a sua trajetória e sobre o samba, que conhece desde que se entende por gente.
Nascida em Madureira e criada em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, Leci sempre se orgulhou da vida e da educação que teve. De origem humilde, como ela própria define, era filha de Dona Lecy, servente de escola pública. Em casa, além dos sambistas e clássicos do choro, seu pai escutava diversos discos de ópera e jazz.
Mas o samba teve primazia em sua trajetória. Em 1972, Leci quebrou muitos estigmas ao tornar-se a primeira mulher a fazer parte do time de compositores da Estação Primeira de Mangueira. A cantora ainda passaria por um batismo de fogo dois anos depois na casa de Cartola, quando seu nome foi citado na roda de partido-alto: foi a primeira vez que Brandão – que acabou se tornando uma craque do partido-alto – versou.
A artista debutou no cenário musical como cantora e compositora com a ajuda do crítico musical Sérgio Cabral que a apresentou à Discos Marcus Pereira. Sua primeira aparição pública foi no programa “A Grande Chance”, de Flavio Cavalcanti, na TV Tupi, no final da década de 1960.
Embora tenha cursado direito pela Universidade Gama Filho, Leci dedicou grande parte de sua vida e obra exclusivamente à música. Em 1973, a cantora passa a frequentar o Teatro Opinião, local de resistência contra a ditadura militar, e arremata o primeiro lugar no II Encontro Nacional dos Compositores de Samba com a canção “Quero Sim”- uma parceira com Darcy da Mangueira.
No ano seguinte, além de gravar seu primeiro disco, um compacto simples para o selo Marcus Pereira, e participar do programa “Ensaio”, da TV Cultura – apresentado por Fernando Faro -, ao lado do mestre Cartola, um samba-enredo de sua autoria foi classificado em segundo lugar na Mangueira.
Dona de uma visão crítica, a autora do clássico “Zé do Caroço” ficou conhecida por questionar e cantar as causas sociais. Leci segue retratando o cotidiano das comunidades e dando voz aos excluídos da sociedade. “E assim é que eu assumo determinadas letras porque tem a ver com realidades que eu conheço. Eu não faço nada porque está na moda”, conta, em entrevista exclusiva concedida ao Samba em Rede.
Mangueira
No entanto, compor canções de protestos lhe trouxe dificuldades desde o início, na Mangueira. A compositora foi seis vezes finalista de concursos para escolha do samba-enredo da Estação Primeira e nunca venceu.
Segundo relatos, suas letras não se enquadravam ao modelo dos enredos ufanistas, característicos da década de 1970. Durante a ditadur, eram muito comuns – salvo algumas exceções – a citação e o elogio aos programas governamentais como o PIS, o Pasep, o Funrural e a Mobral, além do enaltecimento do comércio, da indústria e da economia nacionais nos sambas-enredo das agremiações.
Em 1981, Leci é barrada mais uma vez, quando sua então gravadora, a PolyGram, sugeriu que a cantora alterasse o repertório de seu LP, que apresentava sambas politizados como Zé do Caroço e Deixa, Deixa. A cantora preferiu romper com a gravadora por terem tentado censurar seu trabalho.
Após este episódio, Leci permanece cinco anos sem gravar, mas aproveita o período para participar de campanhas políticas e realizar shows em defesa das minorias, do povo negro, das mulheres e dos trabalhadores. Foi convidada a se apresentar em diversos eventos com sindicalistas, estudantes, índios, movimentos feministas, população LGBT e, principalmente, o movimento negro.
Os sambas censurados só viriam à tona em julho de 1985 no LP homônimo, gravado pela Copacabana, acompanhados com futuros clássicos como Isto É Fundo de Quintal, parceria com Zé Maurício, e Papai Vadiou, de Rody do Jacarezinho e Gaspar do Jacarezinho, relembrando os pagodes da década de 1970 e um dos grandes expoentes do gênero, o Grupo Fundo de Quintal.
Entre 1984 e 1993, a cantora foi comentarista dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, pela TV Globo. Após uma pausa de seis anos, voltou a comentar o Carnaval carioca em 2000 e 2001. Entre 2002 e 2010, Leci comentou os desfiles das Escolas de Samba de São Paulo pela mesma emissora, quando se consolidou como a voz das comunidades.
“Nosso intuito era humanizar o espetáculo. Falava da importância da Velha Guarda e de seus componentes, explicava a função dos diretores de harmonia, da complexidade de compor um samba-enredo”, conta.
O hábito de narrar os nomes dos membros das comunidades e tantos outros que ficavam no anonimato – em vez de vangloriar as celebridades – causou certa agitação entre os telespectadores e fez surgir o estigma “Leci Comunidade”. A cantora jamais deixou de tornar notórias as narrativas desses representantes e de tentar despertar os órgãos públicos e a mídia para a importância do Carnaval popular.
“Vou fundar uma escola de samba/ Que faça um desfile/ Mas sem passarela/ Pra que a gente nobre e o povo da favela/ No meu Carnaval façam sua união.” Até hoje os versos de G.R.E. Escola de Samba, do 1º LP, “Antes que Eu Volte a Ser Nada”, de 1975, são contundentes porque tratam de uma realidade cada vez mais irreversível: a espetacularização do Carnaval e a omissão dos verdadeiros donos da festa.
Política
Sua carreira seguiu outros rumos em 2010, quando foi eleita deputada estadual por São Paulo, tornando-se a segunda mulher negra a ocupar uma cadeira no Legislativo paulista. Em 2014, foi reeleita sustentando as bandeiras da igualdade racial, defesa da mulher e promoção da cultura popular.
Para a deputada, que vem ressaltando a importância das comunidades tradicionais e da cultura afro-brasileira na Assembleia Legislativa de São Paulo, o samba e suas tradições são parte da história do nosso país. Preservar a memória e cultivar culturas populares é garantir o futuro de um povo.
Em seu segundo mandato, a deputada promove ações e elabora propostas para aproximar o poder público das comunidades de samba, tais como a publicação da cartilha “Memória do Samba Paulista”, a criação do Dia Estadual do Samba – projeto de lei que declara o samba patrimônio cultural imaterial do Estado de São Paulo -, além do lançamento de duas edições do guia “Circuito de Rodas de Samba de São Paulo”.
A luta promovida por Leci, resultado de todo o seu trabalho artístico, cultural e político, faz parte da história de todo brasileiro e, principalmente, daqueles que condenam todo e qualquer tipo de discriminação.
Seu repertório, cuja relevância é atemporal e não se pode mensurar, lega as vozes das minorias quando, em Talento de Verdade, critica a exploração sexual da mulher afro-brasileira; em O Bagulho do Amante, os versos analisam a inserção das mulheres no tráfico de drogas; e em Santas Almas Benditas, presta uma homenagem aos adeptos de religiões de matriz africana.
A sambista também expõe a complexidade da vida na periferia em O Dono e o Povo ao explorar a figura do “dono do morro”, que tenta suprir a ausência do Estado e a atuação do poder público na periferia; e em Super-Herói da Favela registra a vida intensa e breve do traficante.
Autora de uma obra musical marcada pela luta e resistência, Leci Brandão possui grande valia dentro da seara musical brasileira. Passados 72 anos de idade e 40 de carreira, a deputada segue acreditando que a cultura e a educação são pilares capazes de transformar o país. Mas não deixa de fazer uma crítica ao atual cenário político: “É uma pena que quem está no poder, Executivo principalmente, não tenha essa sensibilidade. Estamos vivendo uma fase de retrocesso, uma coisa horrorosa”.
Confira a entrevista na íntegra:
Assista Cartola e Leci Brandão em programa da TV Cultura em 1974.