Marco legal: água como mercadoria ou chance de acesso universalizado?

Presidente tem até dia 15 para sancionar ou vetar novas regras do saneamento; mobilizações na internet dividem opiniões

Em parceria com Change.org (Oficial)
08/07/2020 16:47

100 milhões de brasileiros vivem sem saneamento básico para esgoto
100 milhões de brasileiros vivem sem saneamento básico para esgoto - Alter Campanato/Agência Brasil

O presidente Jair Bolsonaro tem uma semana para aprovar ou vetar o polêmico projeto de lei que atualiza o marco legal do saneamento básico. O avanço da proposta tem provocado uma série de discussões entre quem acredita que a medida corrigirá um problema estrutural de desabastecimento de água e falta de tratamento de esgoto, contra aqueles que temem uma privatização capaz de aumentar o custo do serviço e piorar as desigualdades de acesso.

O PL 4162/2019 passou na Câmara dos Deputados em dezembro do ano passado e no Senado Federal no último dia 24. Bolsonaro tem até a próxima quarta-feira, dia 15, para decidir sobre sua sanção ou veto, caso não o faça, a lei entrará em vigor automaticamente. O projeto nasceu de uma medida provisória que em 2018 perdeu validade por falta de apreciação no Congresso Nacional, fazendo com que o governo federal sugerisse um PL com o mesmo tema.

As mobilizações contra as mudanças no marco legal definem o projeto como um plano de “privatização da água”, defendendo que ela é um bem a ser garantido a todos pelo Estado, e não um produto que pode ser vendido por empresas sem que o Estado possa controlar sua tarifa. Um manifesto, criado pelo Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), reuniu quase 100 entidades, além de 73 parlamentares, em oposição ao marco.

De iniciativa popular, petições online também começaram a surgir e crescer na internet para pressionar por uma decisão contrária à aprovação das novas medidas. Na plataforma Change.org, a maior delas engajou em poucos dias mais de 13,5 mil pessoas.

“Se sancionada a lei, a privatização do serviço pode impedir o acesso aos serviços por uma parte da população. Isso implicará na ampliação da exclusão da população mais pobre, agravando ainda mais as desigualdades no Brasil”, opina o criador do abaixo-assinado, Bruno Alencar, ao longo dos argumentos deixados na petição. “Além disso, se o setor privado atuar sozinho, será difícil o controle social sobre a prestação do serviço”, completa no texto.

Por outro lado, defensores da proposta apostam na promessa de que o novo marco poderá universalizar o serviço de saneamento no país. Uma das metas definidas pelo texto do projeto é que 99% da população brasileira tenha acesso à água potável até o ano de 2033, bem como que 90% dela receba tratamento e coleta de esgoto no mesmo prazo.

Atualmente, de acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis), esses percentuais estão em 83,6% e 53,2%, respectivamente. Ou seja, mais de 100 milhões de brasileiros não recebem cobertura de saneamento básico para esgoto e 35 milhões vivem em casas que não são abastecidas por uma rede de água potável – a gravidade do problema ficou ainda mais evidente com a pandemia do coronavírus.

Durante a votação no Senado Federal, que terminou com 65 votos a favor e 13 contrários, o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP) defendeu o PL. “Saneamento é saúde. Esse assunto está represado há pelo menos três décadas em nosso país”, declarou.

As atualizações do marco legal

A votação no Senado Federal aconteceu no dia 24 do mês passado
A votação no Senado Federal aconteceu no dia 24 do mês passado - Waldemir Barreto/Agência Senado

Entre as atualizações previstas no marco legal do saneamento está a transformação dos atuais contratos entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto para concessão com a empresa privada que assuma a estatal, por meio de licitação. A crítica é que esse modelo force a privatização e crie, ainda, um monopólio privado do serviço.

Outro ponto modificado pelo PL é a prorrogação do prazo para o fim dos lixões a céu aberto pelo país. Até então, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) tinha estipulado que capitais e regiões metropolitanas acabassem com eles em 2018, e municípios com menos de 50 mil habitantes até 2021. Se aprovado, o marco esticará esse prazo para o ano que vem no primeiro caso, e para até o ano de 2024 nas cidades menores.

Críticos à proposta duvidam que ela seja capaz de resolver o problema das desigualdades de acesso ao serviço e baseiam sua descrença no exemplo de outros países que passaram pelo mesmo processo e depois voltaram atrás porque as empresas privadas não cumpriram com o prometido. O autor do abaixo-assinado que diz “não” ao novo marco legal destaca que o Brasil estaria, portanto, andando na contramão do mundo.

“Diversas cidades pelo mundo já recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás – a lista inclui metrópoles como Atlanta, Berlim, Paris, Budapeste, Buenos Aires e La Paz”, destaca no texto da petição. Outras cidades que decidiram reestatizar o serviço foram Bamako e Maputo, ambas africanas.

Em meio às discussões sobre se aprova ou veta, o que ambas opiniões concordam é que o Brasil possui sérias e estruturais deficiências na cobertura do saneamento básico. Problemas que precisam ser resolvidos com urgência a partir de um projeto que seja efetivo e que não corra o risco de ampliar ainda mais as desigualdades e a exclusão dos mais pobres.