Juíza impede menina de 11 anos estuprada de fazer aborto legal

No vídeo da audiência, a menina é perguntada se quer escolher o nome do bebê e se o estuprador se importaria em encaminhar a criança para adoção

21/06/2022 00:52

Uma menina de 11 anos engravidou após ser vítima de estupro e a Justiça a impede de realizar um aborto legal, permitido pela legislação em casos de abuso sexual. O caso acontece em Santa Cataria e foi revelado nesta segunda-feira, 20, pelo The Intercept.

Menina de 11 anos engravida após estupro e é impedida de fazer aborto legal
Menina de 11 anos engravida após estupro e é impedida de fazer aborto legal - Istock/tzahiV

A criança está sendo mantida em um abrigo há cerca de um mês, depois de ir à Justiça solicitar o direito de um aborto legal.

A criança foi ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, acompanhada da mãe, dois dias após descobrir a gravidez, para fazer o aborto, mas os médicos não quiseram realizar o procedimento, que é permitido apenas até a vigésima semana (em caso de risco à vida da gestante). A menina estava com 22 semanas e dois dias de gestação. A menina ainda tinha 10 anos quando procurou atendimento médico.

Ela então foi encaminhada para a juíza Joana Ribeiro Zimmer, que marcou uma audiência com a menina no último dia 9. A promotora Mirela Dutra Alberton, ajuizou uma ação cautelar dois dias após a mãe e a menina irem ao hospital em busca de atendimento.

A promotora do Ministério Público catarinense, da 2ª Promotoria de Justiça do município de Tijucas, Mirela Dutra Alberton, afirma no documento que a menina vítima de estupro deveria “permanecer [no abrigo] até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural”. Ela reconhece que o caso se trata de uma gravidez de risco: “Por óbvio, uma criança em tenra idade (10 anos) não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação”.

Em 1º de junho, a juíza fez um despacho dizendo que menina foi para o abrigo para ser protegida do abusador, mas que a sua permanência no local tinha outra motivação. “O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”.

A juíza ainda ligou a proteção da saúde da menina ao feto. “Situação que deve ser avaliada como forma não só de protegê-la, mas de proteger o bebê em gestação, se houver viabilidade de vida extrauterina”. Ela ainda afirma que manter o feto não causará danos à vida da criança. “Os riscos são inerentes à uma gestação nesta idade e não há, até o momento, risco de morte materna”, disse ela.

A audiência

No dia da audiência, Zimmer perguntou à menina se ela desejava seguir com a gravidez. A menina disse que não e a juíza tenta convencê-la a dar continuidade na gestação. Ela alega que o objetivo é que o feto seja medicado para formar o pulmão completamente e prossegue: “Em vez de deixar ele morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele. Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer”, diz à criança.

“Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer?”, pergunta a juiza.
“Não”, responde a vítima.
“Você gosta de estudar?”
“Gosto.”
“Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?”
“Sim.”

A juíza pergunta ainda se a menina gostaria de escolher o nome do bebê como presente de aniversário, já que faltavam poucos dias para a menina completar 11 anos.

“Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?”, diz a magistrada. A menina responde: “Não”, responde a vítima.
E Zimmer continua:

“Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?”, pergunta, ao falar do estuprador que abusou da criança. “Não sei”, responde a menina, em voz baixa.

A mãe da vítima é chamada e deixa claro o desejo pelo aborto, mas a juíza oferece a opção de seguir com a gravidez e entregar o feto, quando formado, para a adoção.

“Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”, afirma a juíza. A mãe da menina responde, aos prantos: “É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou”.

A mãe da menina então faz um apelo à juíza. “Independente do que a senhora vai decidir, eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo. Se ela tiver que passar um, dois meses, três meses [grávida], não sei quanto tempo com a criança… Mas deixa eu cuidar dela?”. ”

A menina foi levada para um abrigo no dia 9 de maio, logo após a audiência e agora está na 29ª semana de gestação.

Questionamentos

Ao ser questionada pela equipe do The Intercept, a juíza disse que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa. Não só por se tratar de um caso que tramita em segredo de justiça, mas, sobretudo para garantir a devida proteção integral à criança”. A nota foi enviada pela assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça.

“Seria de extrema importância que esse caso continue a ser tratado pela instância adequada, ou seja, pela Justiça, com toda a responsabilidade e ética que a situação requer e com a devida proteção a todos os seus direitos [da menina]”, diz.

Já a promotora alegou que  o hospital “se recusou a realizar a interrupção da gravidez” e que essa decisão aponta que não havia “uma situação concreta de risco”, pois se esse perigo fosse identificado, seria “obrigação” dos médicos agirem, o que não aconteceu. “Por conta dessa recusa da rede hospitalar, inclusive com documentos igualmente médicos encaminhados à 2ª Promotoria de Justiça de Tijucas, no momento da propositura da ação era nítido que a infante não estaria sujeita a qualquer situação de risco concreto, o que, inclusive, tem se confirmado em seu acompanhamento”, afirmou, em nota.

A promotora ainda disse que pela menina não entender o que é um aborto, foi usada a frase ‘em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando’, “no sentido de esclarecimento sobre as consequências do procedimento de interrupção da gravidez, já que o avançado estado da gravidez viabilizava a vida extrauterina”. Ela ainda alega que, quando fez a declaração, não sabia que o aborto era realizado de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos cardíacos.

O hospital emitiu um laudo dizendo que não havia risco de morte para a menina. No entanto, outros médicos da mesma unidade fizeram avaliação contrária ao prestarem depoimento.

Um exame de 10 de maio, a médica Maristela Muller Sens, recomenda a interrupção da gestação por conta de riscos como anemia grave, pré-eclâmpsia, maior chance de hemorragias e até mesmo a retirada do útero (histerectomia).

Mesmo com os novos depoimentos e laudos, foi mantida a autorização para “interrupção de gravidez assistida”, ou parto antecipado, solicitada em 12 de maio pela promotora Alberton, com o objetivo de “salvaguarda da vida da criança e do concepto, a critério da equipe médica responsável, encaminhando-se o concepto imediatamente aos cuidados médicos”.

O juiz Mônani Menine Pereira, do Tribunal do Júri de Florianópolis, autorizou o aborto legal no mesmo dia, mas voltou atrás com o argumento de que o caso já era acompanhado pelas varas da Infância e Criminal da Comarca de Tijucas.

A advogada da família com um requerimento para conseguir um aborto legal, mas o pedido foi negado pela desembargadora Cláudia Lambert de Faria que alegou que embora houvesse “risco geral de uma gravidez em tenra idade”, a menina não se encontrava em “risco imediato”.

Em 8 de junho, novamente foi solicitado que a menina fosse liberada para voltar para casa.