A musa perseguida pelos ‘de bem’ e aceita entre os ‘malditos’
A história da atriz Nicole Puzzi, que foi de menina inocente do interior a símbolo sexual da pornochanchada.
“O Brasil sempre foi um país muito sensual, porém extremamente religioso repressor,” definiu ao Catraca Livre uma mulher que vive na pele tanto essa sensualidade quanto essa repressão: a musa da pornochanchada Nicole Puzzi. “E é curioso que o brasileiro, desde a colonização, ataca a sexualidade nas outras pessoas como algo impuro, mas pratica, em segredo, o mesmo que acusa nos outros.”
A pornochanchada foi um dos gêneros mais populares e, até hoje, mais incompreendidos do cinema nacional. Muitas vezes confundido com produções de sexo explícito, eram filmes eróticos principalmente produzidos no pólo da chamada “Boca do Lixo”, em São Paulo. A pornochanchada começou nos anos 1960 e foi extremamente popular até os anos 1980, quando passou a perder espaço para o cinema pornográfico.
Enquanto muito se elogia movimentos cinematográficos nacionais como o Cinema Novo, a pornochanchada até hoje é vista como um tabu, mas foi o gênero mais verdadeiramente popular do país. Filmes feitos sem incentivo do governo, e que testavam em plena ditadura os limites da censura tanto no âmbito social quanto sexual. “A pornochanchada foi a maior vítima de preconceito cultural deste país,” defende Nicole em sua biografia “A Boca de São Paulo” (editora Laços). “E grande parte desse preconceito é na verdade preconceito contra a mulher.”
A vida de Nicolle Puzzi em si parece o roteiro de um longa-metragem. Uma menina ingênua do interior do Paraná chega em São Paulo com sonhos de ser modelo e acaba se tornando um dos grandes símbolos sexuais do país. Além de modelo, ela se tornou atriz, e depois escritora, ativista dos direitos dos animais e apresentadora do programa “Pornolândia”, do Canal Brasil, em uma trajetória que se confunde com a do próprio período do cinema nacional. Sua carreira engloba mais de 20 filmes, com destaques como “Ariella” e “Gabriela, Cravo e Canela”, além de participações em mais de 10 novelas na TV Tupi, Globo, Manchete e SBT. E, nesse rumo ao estrelato, foi perseguida tanto pelo desejo quanto o ódio moralista e chegou à autoaceitação pela cultura e filosofia em meio aos supostos artistas “malditos” da Boca do Lixo.
“Existe um falso moralismo muito grande,” define a atriz. “Muitas moças ‘de família’ com quem eu convivia na escola faziam coisas que deixavam qualquer pornochanchada parecendo filme infantil, só que às escondidas. Eu, musa nas telas, sempre tive uma vida sexual tranquila.”
A perseguição foi particularmente intensa após o lançamento de “Ariella”, em 1980, em que aparece um beijo lésbico com Christiane Torloni. Além da inserção posterior de cenas de sexo explícito gravadas por outra atriz – uma prática que foi se tornando cada vez mais comum no cinema nacional, acuado pela popularidade da pornografia. Nicole Puzzi recebia ameaças na rua, em telefonemas de madrugada e agressões até mesmo de mulheres cujos maridos eram seus fãs.
“Éramos musas do sexo em uma época reprimida, moralista e desinformada”, define a atriz. “A mulher bonita e ligada à sensualidade paga um preço mais alto perante a sociedade. Ela é criticada, invejada, provoca sentimentos perturbados em homens e mulheres. Sempre foi assim e na pornochanchada não foi diferente.”
Por outro lado, ela se surpreendeu em encontrar um ambiente extremamente aberto, respeitoso e vibrante entre os cineastas marginais. Como ela já definiu em um perfil para o UOL: “Nós éramos marginais no sentido que estávamos à margem de uma sociedade carregada de tabus e preconceito. Eu trabalhava porque eu gostava, eram pessoas carinhosas e que colaboravam entre si. Não tinha teste de sofá. Se alguém era gay, era gay, se era lésbica, era lésbica, e ninguém se preocupava com isso. A babá da minha filha foi um travesti. Nós já convivíamos com aquilo na Boca enquanto a sociedade ‘de bem’ ainda estava no século 19”.
“Dentro dessa zona, com e sem trocadilho, pautavam a ética, o trabalho, o profissionalismo, a dedicação e o respeito. Uma espécie de cumplicidade marginal. Fraternidade de delinquentes.” Mas, e agora que estamos no século 21? A sociedade brasileira já saiu do século 19? Nicole diz que já foi mais otimista.
“Cheguei a pensar que o preconceito com a mulher tivesse mudado, mas não mudou. Está mais agressivo”, diz Nicole. “Homens e mulheres assumem o ódio, covardemente escondidos, nas redes sociais. Acredito que esse pequeno grupo é composto de pessoas traumatizadas, frustradas, mal resolvidas sexualmente e, como sempre, destilam seu veneno contra mulheres e homossexuais, chegando ao cúmulo da banalização de assassinatos. A falsa religiosidade, onde Jesus do Sermão da Montanha foi substituído pelo Jesus Mercadoria, está colaborando com o momento nauseante de preconceitos contra mulheres e homossexuais.”
Ela conta que lamenta profundamente o machismo que se enraizou até mesmo dentro de muitas mulheres. As mesmas que puxavam o cabelo da atriz nas ruas porque seus maridos a desejavam. “Frustração, trauma, falta de cultura, baixa inteligência, falta de amor próprio, falta de amor na infância, infelicidade, medo da velhice e muita inveja. Dominando isso, a mulher será mais feliz. Eu compreendo e sinto muita pena de mulheres com tais problemas.”
Nicole Puzzi desafia qualquer estereótipo de símbolo sexual que existe apenas para ser explorado e satisfazer os desejos e sonhos masculinos. Ela é uma mulher que soube se sobrepor em um mundo de homens usando as armas dos homens e vestindo sua sexualidade como armadura.
“Irei apresentar a minha alma porque o meu corpo, com certeza, vocês já viram,” ela escreve no início da sua autobiografia. “Se não viram, corram até alguma locadora ou internet. Ou, então, deixa pra lá, é só mais um corpo de uma mulher que não existe mais e sobrevive apenas na imaginação de uns malucos.”
Neste Mês da Mulher, o Catraca Livre vai prestar homenagens diárias a personagens do gênero feminino que nos inspiram. Saiba mais sobre a campanha #MulheresInspiradoras e leia outros perfis aqui.