Neurocientista rebate post do Senado sobre efeitos da maconha
Convidamos o neurocientista e pesquisador da Unifesp Renato Filev para opinar sobre os supostos efeitos e consequências causados pelo uso da maconha
As mídias sociais do Senado divulgaram, no último domingo, 24, uma série de posts para a Semana Nacional Antidrogas, para informar os seguidores sobre os riscos e efeitos causados pelo uso de diversas substâncias _ como cigarro, álcool, cocaína e maconha.
No caso da maconha, as informações publicadas renderam uma grande polêmica nas redes sociais, por citar, entre os efeitos da maconha, reações como “dificuldade de pensar”, “agressividade” e “morte”.
Com a repercussão negativa na internet, a Secretaria de Comunicação Social do Senado, responsável pelas publicações no Facebook e no Twitter, retirou o post no dia seguinte.
Na retratação, os administradores atribuíram o conteúdo a um material produzido pela Academia Nacional da Polícia Federal.
Convidamos o neurocientista e pesquisador da Unifesp Renato Filev para dar sua opinião sobre os supostos efeitos e consequências apontados pela publicação.
Na sua avaliação, o especialista critica a postura retrógrada do atual governo que, ao divulgar um conteúdo alarmista e sem embasamento, busca desviar a atenção da recente tendência internacional que abre caminho para uma nova política de drogas em todo o mundo. “Existe um pânico moral, um fanatismo, em perceber que o Uruguai legalizou, o Canadá, os Estados Unidos estão prestes a legalizar, o México, a Colômbia, o Chile e a Argentina. Nessa tentativa de manter a proibição, os bastiões da moral vão fazer de tudo pra tentar conter o avanço da regulamentação.”
O pesquisador avaliou cada tópico apresentado na postagem divulgada pelo Senado. Confira o resultado:
- Dificuldade de pensar: “Isso é uma forma de descrever um dos efeitos da maconha: o aumento do fluxo de pensamento. Isso acontece. É a arborização do pensamento, você associar assuntos que, de forma ordinária, não associaria. Para algumas pessoas, isso pode ser um incômodo e se tornar uma confusão mental. Mas eu entendo que essa “dificuldade de pensar” está vinculada à questão cognitiva: várias funções cerebrais voltadas à tomada de decisão. Na verdade, o efeito agudo da maconha pode provocar alterações de memória, percepção espaço-tempo, aumento de fluxo de pensamento, mas não sei se o termo seria “dificuldade”. Talvez pra outras pessoas seja “facilidade”. Depende de qual função que você quer acionar: criatividade, memorização… Então, dependendo da atividade, pode criar uma dificuldade ou uma facilidade. Existem estudos que apontam que não há prejuízo cognitivo que seja duradouro. A pessoa não fica “lesada” nem perde QI”.
- Agressividade: desconheço estudos que associem maconha e agressividade. Existem autores que discutem de forma mais ampla sobre drogas e agressividade e que questionam essa associação da droga como promotora da violência. Existe uma crença de que as drogas são desencadeadoras, inclusive o álcool – tanto nas violências de acidente de trânsito, do uso de arma de fogo, de violência familiar, o álcool pode estar presente. Mas quando você olha a grande parcela que faz o uso do consumo de álcool e a pequena parcela que infringe violência, esse efeito da relação do álcool some porque não é todo mundo que exerce a violência. Por isso é bastante questionável essa questão da agressividade e uso de substâncias, inclusive a maconha.
- Coordenação motora: ela pode ser afetada pelo efeito agudo. É desaconselhado manejar máquinas e veículos por conta desse possível prejuízo na coordenação. Mas não é falta de coordenação. A pessoa não fica cambaleante tipo um bêbado, bem diferente disso. Existem partes do cerebelo que, com o uso, podem estar pouco responsivos e isso gerar um problema do refinamento da coordenação motora, uma certa lentidão na resposta, no estímulo. Pode afetar a coordenação, mas a falta dela é um equívoco.
- Alucinações: este termo usado não só pelo Senado, mas também pela medicina – que a maconha é uma planta alucinógena –, é uma classificação questionável. Alucinação, a rigor da psiquiatria, é a visualização ou a escuta, a alteração de algum órgão da percepção sensorial. Como um tanque de guerra passando na minha rua – isso é uma alucinação. Já uma alucinose seria você visualizar alguma coisa, mas saber que aquele efeito está sendo provocado pela substância que você ingeriu. E a ilusão seria a deturpação de algo que existe – que em geral acontece, inclusive com os psicodélicos – você vê alterações de formas que estão lá (um carro que passa na rua, e eu vejo de maneira deturpada). Não é nem culpa do Senado ou da Polícia Federal, porque se trata de um jargão da medicina, que trata a maconha como um alucinógeno, mas de fato, a rigor, é um exagero.
- Morte: existe um único artigo, de 2014, de um alemão que fez um estudo forense, toxicólogo, amplo, de análise genética, uma análise bem profunda, e ele só encontrou derivados canabinoides onde os dois indivíduos tiveram um infarto. Dois indivíduos jovens, de 23 e 28 anos, em uma análise bastante extensa que concluiu que foi por intoxicação por maconha a causa da morte súbita. É um exagero a polícia e o Senado salientarem que a maconha provoca a morte. São 12 mil anos de uso, com uma busca extensa, uma tentativa de descobrir os malefícios da cannabis e não conseguiram encontrar essa dose letal. Alguns estudos estimam que, para um adulto morrer intoxicado, precisaria consumir a quantidade de THC presente em 6.000 kg de maconha em aproximadamente 15 minutos – uma quantidade astronômica, impossível de um ser humano consumir de uma vez só. Enquanto o álcool mata 3 milhões e meio de pessoas no mundo, o tabaco mata meio milhão só nos EUA por ano, a aspirina C mata 10 mil pessoas por ano só nos EUA. Há uma segurança bem grande com a cannabis. Ou eles agiram de má-fé ou por ignorância. Há um pânico moral, um fanatismo, em perceber que o Uruguai legalizou, o Canadá, os Estados Unidos tão prestes a legalizar, o México, a Colômbia, o Chile e a Argentina. Nessa tentativa de manter, os bastiões da moral e da proibição vão fazer de tudo pra tentar conter o avanço da regulamentação – que vai acontecer e a gente sabe disso, só não sabe como nem quando.
- Doenças cardiológicas: há uma grande relação do sistema canabinoide com o sistema circulatório, embora não seja letal. Há sim uma afetação do sistema, porque a maconha causa taquicardia e isso pra uma pessoa que tenha pré-disposição a um problema de angina, ou de hipertensão, ou arritmia cardíaca, uma dose alta, talvez possa complicar a condição dela ou causar desconforto. Não sei se de maneira crônica, mas pode afetar uma pessoa que tenha problema cardíaco.
- Doenças pulmonares: o que causa um agravo, uma bronquiolite, alguma irritação do trato respiratório seria a fumaça. Então, muito mais que os canabinoides da cannabis seria a fumaça. Se a pessoa usa de maneira vaporizada, esses problemas não ocorrem. O que se faz é preconizar uma orientação de boas práticas, de redução de danos, para a pessoa que tenha problema pulmonar consumir de maneira que diminua os riscos da doença respiratória.
- Câncer: tem algumas revisões sobre o tema que mostram que não existe associação de canabinoides com o câncer. Existem alguns estudos bastante promissores que avaliam o potencial antitumoral dos canabinoides, seu potencial terapêutico (não só para a diminuição da náusea, perda de apetite, vômito em decorrência da quimioterapia), mas a diminuição da irrigação do tumor, de nutrição do tumor, inibindo a propagação do tumor para outros órgãos. Embora ainda seja necessário mais estudos para provar a eficácia. Mas falar que causa câncer, isso não é verdade.
- Falta de motivação: existe um grande dissenso entre a comunidade cientifica sobre a veracidade desse efeito. O que as pessoas contrárias argumentam que essa certa apatia acontece em decorrência da intoxicação da cannabis, e que a partir do uso crônico permanecer com o tempo.
- Perda de memória: também não acontece. Ela acarreta na memória operacional, aquela de trabalho, que você utiliza de curtíssima duração. Um número de telefone que você memoriza pra discar e depois disso apaga da memória. A maconha atua nesse tipo de memória. E um pouco na evocação da memória, de você concatenar a ideia e manter a linha de pensamento. Quando você ativa o sistema canabinoide, você facilita o esquecimento. Auxiliar a esquecer coisas desnecessárias, como no momento do sono, por exemplo, o sistema endocanabinoide atua no cérebro, na região do hipocampo, auxiliando o organismo a selecionar as memórias que devem ser mantidas e outras que devem ser esquecidas e enfraquecidas. Mas isso não configura a perda de memória e não tem nada a ver com a maconha.
- Esquizofrenia: um dos argumentos é que, a maconha nos últimos anos, desde a década, vem aumentando seu teor de THC, nas amostras de maconha. Além disso, a população de usuários cresceu ao longo desses anos. Nos países desenvolvidos, ela se mantém estável, mas nos países em desenvolvimento ela vem crescendo. Caso a relação fosse causal, o número de esquizofrênicos também aumentaria, no entanto, esse número permanece estável ao longo dos anos. Mesmo com aumento de usuários e mesmo com aumento da potência de thc nas maconhas. Então isso é um dado epidemiológico que comprova a ausência de relação causal de maconha e esquizofrenia.
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