O segredo dos 101 anos de vida da artista plástica Hebe Carvalho
Assim como uma pintura que nunca envelhece nem se torna datada, a artista plástica e arte-educadora Hebe de Carvalho foi uma mulher à frente do seu tempo
Assim como uma pintura que nunca envelhece nem se torna datada, a artista plástica e arte-educadora Hebe de Carvalho foi uma mulher à frente do seu tempo. Em 101 anos de vida dedicados à arte, à família e aos amigos, nunca viveu à sombra de um homem, como muitas de suas contemporâneas.
Dona de uma história de vida inspiradora, Hebe tinha muita alegria de viver e sempre manteve a vida social ativa. Sabia ouvir os interlocutores com genuíno interesse e adorava contar histórias, fruto de sua memória invejável, como descreve seu sobrinho Marcos Nardon.
Segundo a primogênita Maria Amélia de Carvalho, ou Memélia, um dos segredos da longevidade era não reclamar da vida. “Pelo contrário, ela se sentia jovem e agradecia estar viva. Era uma pessoa leve e não tinha aquele sentimento de culpa, talvez por não ter religião”, relembra.
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Nascida em Recife, no dia 24 de abril de 1914, Hebe era filha de Lia, uma professora pernambucana e Bruno, um engenheiro de Campinas (SP). No começo do século 20, as mulheres da família de sua mãe seguiam os ideais franceses e europeus, e não se casavam com os brasileiros, como coronéis, por considerá-los machistas. Lia casou-se em 1912 aos 32 anos, uma idade avançada para a época. Bruno era de uma família de intelectuais e jornalistas, como seu tio, José Maria Lisboa, um dos fundadores do jornal A Província de São Paulo, que depois se tornou O Estado de São Paulo.
A pequena Hebe foi a primeira dos sete filhos do casal, que veio morar em São Paulo depois do nascimento do segundo bebê. O gosto pela arte teve início cedo, para orgulho do pai, que sonhava em ser desenhista. A primogênita começou a estudar desenho e pintura clássica aos 12. Era a caçula da sua turma e a mais elogiada pelos professores.
O casamento
Conheceu seu futuro marido, pai de seus quatro filhos, ainda muito jovem, aos 15 anos, em uma festa. Pedro Xisto Pereira de Carvalho era um advogado e intelectual de Recife, 15 anos mais velho, que viera a São Paulo para trabalhar. “Ele se encantou pela jovem à primeira vista, mas Hebe não quis saber dele tão cedo”, conta Memélia.
Foi num Carnaval alguns anos depois que passou a vê-lo com outros olhos e lhe convidou para um passeio, onde deram o primeiro beijo. Logo ficaram noivos, mas Pedro caiu doente e foi se tratar em Campos do Jordão. Dois anos depois, finalmente se curou e voltou à capital. Agnósticos, eles se casaram em casa e tiveram um filho atrás do outro.
“Mamãe logo percebeu que os dois eram muito diferentes. Ela era mais boêmia, uma verdadeira artista no temperamento, enquanto meu pai tinha uma rotina mais regrada e queria uma mulher para acompanhá-lo em tudo”, revela a primogênita.
O casal era sócio da Sociedade de Cultura Artística de SP e, mesmo amamentando, a artista plástica tinha de ir aos concertos de música erudita da associação. Era em eventos como esse que cruzava com a pintora Tarsila do Amaral e o marido, o crítico de artes Luís Martins.
O segundo filho, Eduardo de Carvalho, conta que os pais tinham muitas amizades no mundo intelectual, e que Hebe se afeiçoou a um grupo mais boêmio, com o qual expunha seus quadros em mostras coletivas. “Ela sempre teve o mesmo estilo de pintura figurativa e não fazia pinturas abstratas, que haviam emergido com o concretismo, na década de 50. Já meu pai apreciava a arte de Vanguarda e tempos depois, começou a escrever poesia concreta”, explica.
A separação
Além das diferenças artísticas, os problemas do relacionamento se acentuaram e o casal decidiu se separar em 1950. Não existia divórcio na época e as mulheres separadas eram mal vistas pela sociedade, mas com Hebe foi diferente. Logo após o fim do casamento, chamado de desquite, ela mesma avisou todos os vizinhos do bairro onde morava, na capital paulista.
“Mamãe tinha personalidade forte e nunca baixou a cabeça para o marido, mas deve a ele tudo o que aprendeu de arte. Meu pai foi apaixonado por ela a vida toda – quem não seria? -, mas nunca soube conquistá-la”, diz Memélia. “Depois da separação, ela se sentiu tão livre! Chegou a namorar um publicitário que era o oposto do meu pai: nada intelectual, solto e à vontade. Ainda teve muitas paixões, e muitos apaixonados, mas aos 50, decidiu se aposentar dos namoros. Trabalhava muito e dizia que não via mais graça”, conta a filha.
O trabalho
Para ajudar na criação dos filhos, voltou a trabalhar como professora de artes. Foi pioneira do curso de arte infantil no Museu de Arte de São Paulo, diretora dos cursos de arte para crianças e jovens na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), criadora do projeto inovador Grupo Experimental da Lapa, e chegou até a dar aulas de arte no hospital psiquiátrico de Juqueri por dois anos. Após 12 anos na Fundação, pediu demissão depois que mandaram um menino voltar para casa por falta de pagamento.
Além do trabalho e dos filhos, mantinha as amizades no meio das artes e frequentava o Clubinho dos Artistas, com personalidades como o compositor Paulo Vanzolini, o arquiteto Flávio de Carvalho e o pintor Aldemir Martins. Ela ia ao Clubinho todas as noites, onde os artistas bebiam cerveja e faziam exposições.
Convivendo nesse meio, não poderia ser diferente. Duas dos quatro filhos seguiram o caminho da mãe. Lia tornou-se bailarina e Memélia, atriz e escritora. A caçula, Inês, estudou História. O único filho, Eduardo, era um dos alunos mais inteligentes da escola e queria ser economista. Na época, só contador fazia esse curso. Hebe e Pedro Xisto foram chamados na escola para serem alertados pelo diretor, mas logo responderam: “ele vai ser o que quiser”, algo pouco comum até nos dias de hoje.
Após deixar a Fundação, montou seu próprio ateliê de arte, onde recebia 500 alunos por semana. Trabalhou até meados dos anos 70. Depois, passou a se dedicar a sua própria arte e chegou a fazer cinco exposições individuais. “Não entrou no mercado de arte antes, porque lecionava e criava os filhos. Ela pintava esporadicamente nessa época e não fazia parte de nenhum grupo”, explica Memélia.
Hebe nunca mais parou de pintar, até os 101 anos. Era contratada para fazer retratos, sua especialidade, mas também pintava paisagens, praias e cidades, bares e casais. Em 2014, recebeu uma homenagem da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) por sua obra como arte-educadora.
As viagens
Quando Pedro Xisto morreu, em 1987, como não existia divórcio na época e eles ainda eram casados, Hebe passou a receber pensão de funcionário público do marido. Com esse dinheiro extra, passou a viajar mais, outra de suas grandes paixões.
Gostava de ir a Nova York e a Washington para visitar as irmãs que trabalhavam na Embaixada do Brasil. Não falava inglês, apenas francês, mas isso não a impedia de viajar sozinha. Nos últimos dez anos de vida, foi oito vezes à Europa, onde seu destino preferido era Paris. Fosse nos EUA ou na França, não saía dos museus.
“Com fôlego de jovem, visitava museus e restaurantes, e adorava se arrumar, pois finalmente tinha tempo para isso. Mamãe era bastante vaidosa e tinha um apreço especial por colares”, recorda Memélia. A última visita à capital francesa foi aos 99 anos.
Além de viajar, a artista plástica amava as plantas e cozinhar para os amigos. Uma das únicas perguntas que a tirava do sério era quando pediam o e-mail dela. Não usava a internet e ainda era adepta dos cartões-postais em suas viagens. Mandava até para os funcionários do prédio onde morava. Era tão atenciosa com eles, assim como com todos com quem se relacionava, que um dos pedidos que fez à filha mais velha antes de morrer foi que presenteasse cada um com o livro de crônicas “Cabeça de Bronze”, que Memélia escreveu e que ela ilustrou.
Os últimos aniversários eram sempre comemorados com festonas, já que não sabiam quando seria o último. Foi assim aos 98, aos 99, aos 100. Aos 101, fez uma viagem com a família para Foz do Iguaçu (PR), pois queria se hospedar em um hotel com vista para as cataratas. O espetáculo de águas serviu de inspiração para mais uma leva de quadros.
Foi a última dos sete irmãos a morrer, em novembro de 2015, deixando quatro filhos, sete netos, 13 bisnetos, muitos quadros, amigos, alunos e saudades.
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