Para ler a Mostra

Entre os mais de 400 filmes que serão exibidos durante a Mostra, alguns deles, nasceram de adaptações de obras literárias. O Catraca Livre, selecionou trechos de dois livros que tiveram suas histórias transportadas para a tela. Leia trechos:

“Aconteceu em Woodstock”,de Elliot Tiber. Clique e leia


“O Natimorto”, de Lourenço Mutarelli:

I

Entro na estação.

Estou ansioso.

Corro ao guichê.

Não ao que vende bilhetes,

ao que vende cigarros.

Um maço de Cowboys Light, por favor.

Analiso a frente do maço.

Com receio, viro.

Estampado,

O Natimorto.

Vôo até a plataforma de desembarque.

Aguardo ansioso.

Tiro um pequeno bloco de notas.

Mentalizo:

O Natimorto.

Aguardo.

Estudo os novos arcanos.

Creio em meus pensamentos.

Ontem, foi:

“A Rainha despreza o Rei pelo que sai de sua boca”.

E hoje me encontro aqui, esperando a cantora.

Mesmo advertido de que

“Em gestantes, o cigarro provoca partos prematuros e nascimento

de crianças com peso abaixo do normal e facilidade de contrair asma”,

acendo um cigarro.

O celular anuncia o chamado, numa velha sonata.

O Agente- Alô? Como vai, Maestro?

O Agente- Tudo, e você?

O Agente- Não, não… Já estou aqui.

O Agente- É essa chuva vai atrasar tudo.

O Agente- Ela já deve estar chegando.

O Agente- Fique tranqüilo. Eu não vou te decepcionar.

O Agente- Eu almoço com ela. Minha esposa está preparando algo especial.

O Agente- Isso, depois vamos direto pra aí.

O Agente- Isso, lá pelas duas e meia, três horas.

O Agente- O ônibus está chegando, a gente se fala.

O Agente- Um abraço pra você também.

O ônibus estaciona.

Desce o primeiro.

Seguem mais nove.

Então, ela surge à porta.

Embora visivelmente cansada,

seus traços guardam um sutil, delicada, quase invisível beleza.

Seus olhos me buscam.

Mas, são os meus que a encontram.

A Voz- Nossa, eu quase passo direto pelo senhor.

O Agente- Por favor, não me chame de senhor.

A Voz- Me desculpe.

Ela beija meu rosto.

O Agente- Foi boa a viagem?

A Voz- Foi tranqüila. Dormi o tempo todo.

O Agente- Essa é a vantagem de viajar à noite, de ônibus leito.

A Voz- É.

Ela diz que fico bem de vermelho, por causa da camisa que visto.

Eu carrego sua mala curiosamente leve.

O Agente- Quer um café?

A Voz- Ah! Eu quero… E preciso comprar cigarros.

O Agente- Você ainda fuma?

A Voz- Como assim? Você deveria perguntar se eu fumo, não se eu ainda fumo… Afinal, não nos conhecemos a tanto tempo assim.

O Agente- É que todos estão parando, parando de fumar. Estão parando de fumar por causa da campanha. Por isso perguntei “se ainda”…

O Agente- Dois expressos, por favor?

Garçom- Puro.

O Agente- Os dois puros.

A Voz- E vê um maço de Cowboys Light.

O homem processa, ou expressa, o café.

Nos serve e vai buscar o cigarro.

Entrega.

Com rapidez, ela arranca o celofane.

Eu, no mesmo ritmo, ofereço a chama.

O Agente- Posso ver?

A Voz- O quê?

O Agente- O maço.

A Voz- Claro.

A Voz- Quer um?

O Agente- Não só quero olhar a figura.

A Voz- Ah, são horríveis essas imagens.

O Agente- Talvez elas só pareçam horríveis.

O Agente- A Entubada.

A Voz- Que foi que disse?

O Agente- Ah! É como eu chamo esta figura aqui.

O Agente- Essa moça na cama de hospital… cheia de tubos…

A Voz- Já que você quis dar um nome a ela, por que não lhe deu um nome de mulher? Marta, por exemplo.

O Agente- Morta é um bom nome, já que ela está quase morta.. Ha, ha, ha…

O Agente- Deixa eu tentar me explicar…

O Agente- Eu fumo um maço de cigarros por dia.

A Voz- Eu também, um pouco mais às vezes.

O Agente- Muito bem, essas figuras que eles estamparam nos maços para nos intimidar me causam uma sensação estranha. Além de um óbvio desconforto.

A Voz- São horríveis, às vezes chego a pensar em parar de fumar só para evitar esse confronto.

O Agente- Você está certa. Mas, além desse desconforto, elas me fazem pensar numa outra possibilidade.

A Voz- Qual?

O Agente- Quando eu era criança, morava com uma tia minha que punha cartas.

A Voz- Sei.

O Agente- Ela lia a sorte em velhas cartas de tarô, sabe?

A Voz- Claro.

O Agente- Pois então: Aquelas cartas de tarô me causavam uma expressão de estranheza, um desconforto, um quase medo… Eu tinha uma sensação… As figuras daquele baralho me causavam uma sensação muito semelhante à que sinto quando contemplo essas figuras de advertência impressas nos cigarros. Me entende? E aí, como eu ia dizendo, eu fumo um maço por dia. Então, acho que a imagem vai prenunciar, de alguma forma, o destino desse dia. Deu pra entender?

A Voz- Nossa! Que ideia fascinante. Mas, isso quer dizer que você, de qualquer forma, só terá dias ruins?

O Agente- Não necessariamente. Por exemplo, no tarô, a carta sem nome, a carta de numero treze que todos chamam de Morte, tem um aspecto terrível, mas muitas vezes ela pode representar uma coisa boa. Em contraponto, a carta intitulada a Casa de Deus ou a Torre pode prenunciar os piores desígnios.

A Voz- Você devia escrever sobre isso.

O Agente- Imagina eu não sou escritor. Sou apenas um caça-talentos… poderíamos chamar assim.

A Voz- Mas, fale mais sobre essa sua ideia. Eu estou realmente encantada com ela.

O Agente- Vamos nos sentar naquela mesinha. Quer outro café?

A Voz-  Quero.

O Agente- Garçom, traz mais dois cafés. Nós vamos nos sentar na mesinha ali.

Garçom- Puros?

O Agente- Isso, os dois puros.

Puxo a cadeira para que ela sente.

Ela me olha com um sorriso.

Eu não lembrava que ela era bonita.

Ela, de fato, não tem uma beleza padrão.

Não é do tipo que chame a atenção, mas, a cada minuto que passa, vai se tornando cafa vez mais bela.

O Agente- Onde estávamos?

A Voz- Na “Entubada”.

O Agente- É. Isso.

Rimos.