‘Perdemos o medo de pôr o dedo na ferida’, diz Conceição Evaristo
Aos 70 anos, a escritora mineira denuncia a falta de representação da população negra na literatura brasileira
“O que me leva a escrever? Desde criança, é uma série de indagações que eu faço diante da vida. Essas indagações foram se aprofundando ao longo do tempo.”
Nascida em 1946 em uma favela da zona sul de Belo Horizonte (MG), a poetisa e romancista Conceição Evaristo, 70 anos, foi criada em meio a uma família de mulheres negras que trabalhava como cozinheiras, faxineiras e empregadas domésticas.
Em entrevistas, Evaristo costuma dizer que não cresceu rodeada de livros, mas sim de palavras. “Cresci ouvindo histórias sobre a escravidão. A memória oral foi muito cultivada.” Essas experiências, que depois foram transferidas à sua escrita, é o que batizou de “escrevivência”.
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Para ela, uma das indagações que mais marcaram sua trajetória foi a posição de subalternidade que sua família tinha diante de outras, geralmente ricas e brancas. “Essas indagações e outras me levaram para a escrita. Eu achava que os livros me trariam respostas”, diz.
Sua trajetória na condição de mulher negra e de origem pobre se faz presente em todos seus livros, incluindo “Olhos d’água”, vencedor do prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas em 2015. “Fico feliz pelo prêmio, que eu chamo de ‘prêmio da solidão’. Porque a única cara preta que tinha lá era a minha.”
A mulher negra na literatura brasileira
Na última edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em junho do ano passado, Evaristo foi aplaudida de pé em um encontro paralelo à programação oficial da festa, uma atitude simbólica e potente diante da ausência de autores negros nas mesas centrais deste que é o principal evento do ramo no país. Mais uma vez, foi reacesa a necessária discussão sobre racismo e a falta de representação da população negra na literatura brasileira.
Na ocasião, a escritora protestou: “O que se percebe é que sempre nos é dada uma cidadania lúdica. Dar visibilidade a cantores e atletas negros é estar no lugar comum. Queremos ver pessoas negras colocadas como intelectuais, professores, escritores. Essa cidadania lúdica não nos interessa.”
Antes de se firmar como escritora, Evaristo seguiu o caminho das mulheres de sua família que tinham vindo antes dela. Segunda de nove irmãos, ela trabalhou como babá, vendedora de revistas e faxineira até concluir o curso Normal (equivalente ao atual magistério), em 1971, aos 25 anos.
Mudou-se para o Rio de Janeiro, tornando-se mais tarde poetisa, romancista e ensaísta. No final da década de 70, Evaristo cursou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois ganhou o título de mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Em 1990, publicou seu primeiro poema no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, periódico do Grupo Quilombhoje, de São Paulo, referência em literatura afro-brasileira. Seu primeiro romance, o Ponciá Vicêncio, foi publicado em 2003, traduzido para o inglês e o francês. A obra atualmente está com tiragem esgotada.
Foi no Rio, onde mora há mais de 40 anos, que ela considera ter consolidado sua trajetória profissional. “O meu ambiente de escrita é a minha casa. No meio do cotidiano. Por indisciplina, eu não sou aquela pessoa que reserva determinados momentos pra escrever. Alguns escritores vão para a cozinha porque é um hobby. A gente não. A gente cozinha, a gente escreve, a gente cuida da casa, a gente lava o terreiro”, conta.
Embora seja reconhecida mundialmente pela excelência de seu trabalho, especialistas denunciam o racismo que impede mais pessoas de conhecerem o trabalho de Evaristo.
“Apesar de ser uma referência para nós, ela ainda é desconhecida dentro da literatura brasileira. O que nos barra é o racismo. Quando pensamos em literatura escrita de mulher negra, a gente tem que combater o machismo e o racismo. É bastante trabalho porque tem que romper com a estrutura”, disse Elizandra Souza, integrante do Sarau das Pretas e editora da publicação Agenda Cultural da Periferia, à Ponte.
Se depender de Conceição Evaristo, esse é um debate que não irá mais cessar. “A questão racial do Brasil não é para o negro resolver: é para o brasileiro. Talvez estejamos perdendo um pouco do nosso cinismo. Perdemos o medo de colocar o dedo na ferida.” E arremata: “A nossa ‘escrevivência’ não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”.
Com informações do Itaú Cultural, Ponte Jornalismo e Portal Uai
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