Por que mulheres que denunciam estupro são vistas como mentirosas
A acusação contra Neymar trouxe pontos a serem debatidos: a questão do consentimento, a banalização de uma denúncia de estupro e a culpabilização da vítima
Esta quinta-feira, 6, amanheceu com uma hashtag entre os trending topics do Twitter: “#EstupradaDeTaubaté” era um dos termos mais compartilhados na rede social, em referência à denúncia de estupro feita pela modelo Najila Trindade contra o jogador Neymar Jr. O caso, que veio à tona nos últimos dias, tem repercutido em meio a uma série de afirmações precipitadas na internet.
Independentemente das conclusões das investigações, a forma como o assunto tem sido tratado apenas reforça estereótipos machistas do Brasil: de que o homem é vítima e a mulher está inventando a violência sexual para se beneficiar de alguma forma.
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A suposta vítima do jogador passou a ter seu depoimento ainda mais deslegitimado após novas evidências do caso virem à tona, como um trecho de um vídeo em que ela agride Neymar, e o exame de corpo de delito, que não detectou lesão em partes íntimas de Najila.
Em entrevista ao SBT, ela contou que o desentendimento entre eles começou quando perguntou se ele havia levado preservativo. “Eu não tinha. E ele respondeu que não. Então eu disse que não ia acontecer nada além disso… e continuamos.. Então ele me virou e praticou o ato”, disse. A modelo relatou que foi agredida pelo atleta e tem recebido ameaças de pessoas próximas a ele.
Para além da denúncia contra um dos jogadores mais famosos do país, o suposto caso de estupro trouxe pontos essenciais a serem debatidos: a questão do consentimento, a banalização de uma denúncia de estupro e a culpabilização da vítima.
Consentimento
Para muitas pessoas, o fato de a relação entre Neymar e Najila ter sido inicialmente consentida seria uma prova de que a modelo está mentindo.
No entanto, como explica a advogada Pamela Michelena De Marchi Gherini, da Rede Feminista de Juristas, ainda existe uma grande dificuldade de as pessoas entenderem que o consentimento é algo que deve ser reiterado, ou seja, não ocorre apenas uma vez. “Por isso a gente tem um tabu enorme acerca do estupro dentro de relações íntimas de afeto. Se a pessoa é casada, se presume que ela sempre quer transar com o companheiro. Mas não”, afirma.
“São muitos os casos gravíssimos de estupro dentro do casamento, do namoro, entre ficantes. Se a mulher, no meio do ato, decidiu que não queria dar sequência, tudo o que acontecer a partir desse momento é violação sexual”, completa a especialista.
De acordo com ela, muitas mulheres não entendem ou demoram anos a compreender que foram estupradas de forma reiterada em seus relacionamentos, o que é outro indício da subnotificação desse tipo de crime. No país, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada — mas, estima-se que apenas 35% dos casos são denunciados à Justiça.
Pamela diz que, em muitas situações de violência sexual, a vítima prefere não dar sequência ao processo por diversos motivos, como ser publicamente hostilizada, ter sua palavra contestada, ser revitimizada, não ter psicológico para seguir com o longo processo e não ter provas suficientes — lembrando que, para denunciar um caso de estupro, não é necessário provas ou testemunhas, pois a palavra da vítima basta.
A alta taxa de subnotificação desse tipo de crime se dá, ainda, por causa das resistências e barreiras institucionais por parte dos órgãos que deveriam auxiliar essas pessoas, além da lentidão e ineficácia do sistema em processar e punir os agressores. “A vítima é colocada como culpada pelos serviços públicos e pela própria população”, conclui.
Por que duvidam da vítima
A advogada da Rede Feminista de Juristas reitera que o número de casos de estupro reportados falsamente é muito pequeno, embora não existam estatísticas a respeito disso no Brasil. “Não faz sentido duvidar sempre da palavra da vítima, como acontece no país. Inclusive, há meios legais que a pessoa pode utilizar para processar alguém que reporte um crime falsamente, a denunciação caluniosa.”
A prática de colocar em dúvida a palavra da mulher é decorrente da cultura do estupro na nossa sociedade, segundo Pamela. Dentro desse cenário, há uma banalização sobre o que é este crime. “Muitas pessoas acham que o estupro é sempre algo feito mediante muita violência, por um desconhecido, num ruela. Então, toda vez que ele acontece num modelo diferente, a sociedade duvida”, explica.
Da forma como o estupro é entendido hoje no Brasil, sendo um crime hediondo, não é necessário que tenha havido penetração. Conforme o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), estupro é: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Mesmo assim, as mulheres que denunciam casos de violência sexual são cobradas a comprovar que o que estão falando é verdade. “Muitas vezes, não há testemunhas, provas em imagens, sêmen ou marcas de violência no corpo, principalmente quando ocorre entre pessoas que têm um relacionamento”, afirma a advogada.
“A vítima passa por todo esse processo, repleto de hostilização em meio a uma situação muito grave, e ainda assim decide ir adiante e denunciar. Por que alguém que não sofreu uma violência como essa se colocaria diante de um confrontamento da sociedade? Dificilmente uma pessoa vai se colocar nessa posição não tendo acontecido o crime”, finaliza.