Rap, violão e muita treta: a bossa e o compromisso da rapper Yzalú
No fim da década de 1980, Yzalú, ainda criança, nascida e criada na periferia de São Paulo, crescia ao som do rap que tocava nas festas de família, sempre regadas aos clássicos de Ndee Naldinho e Racionais Mc’s. De sua mãe veio a influência da bossa nova, nos acordes da poesia versada de João Gilberto. Ela ainda não sabia, mas três décadas depois, o ritmo do violão e o compromisso do hip hop definiriam as canções de seu disco “Minha Bossa é Treta”, lançado este mês.
Unindo passado e presente, o álbum “Minha Bossa é Treta”, divulgado no último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, resgata o engajamento do rap para debater temas pouco discutidos na sociedade como, por exemplo, a revista vexatória de mulheres que acontece nos presídios brasileiros. “Nunca deixarei de cantar música de protesto. Foi de lá que eu vim”.
Inspirada em um retrato de Gal Costa, a artista remontou à década de 1970 para chegar à imagem que ilustra a capa do disco. No ensaio fotográfico, foi a primeira vez que Yzalú expôs a prótese que usa na perna direita.
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A expressão de protesto foi o caminho que Yzalú encontrou para contestar os padrões de beleza impostos pela indústria fonográfica, sempre pautada na cruel e inatingível cobrança da perfeição. “Quando vi essa imagem, tive certeza que ela deveria ilustrar a capa do meu novo álbum. Acho que expõe uma realidade ainda sem voz e que segundo os últimos dados do IBGE representa quase 25% da população brasileira. Eu quero que a minha música seja fonte de mudança e transformação na vida de quem ouve”.
Confira a conversa que tivemos com Yzalú, em que a artista fala um pouco mais sobre seu trabalho, influência e o poder de atuação da mulher na periferia. Se liga na ideia:
1 – Catraca Livre: Se no passado, Carolina Maria de Jesus usou a escrita para expor a realidade de seu cotidiano, nos últimos 30 anos o rap deu voz ao testemunho da periferia em todo país. De Dina Di a MC Soffia, qual o papel da cultura hip hop na emancipação da mulher brasileira?
Yzalú: Eu penso que é o de levar a informação pra quem tá a margem! Porque mulheres como Dina Di, Negra Li, Cris SNJ, Rúbia, Nega Gizza, Kamilah CDD, por exemplo, sem pedir licença e com muita coragem mostraram a cara da mulher das periferias brasileiras e com um discurso muito consistente, difícil de silenciar, entende?! E de uma forma geral eu não digo que estamos totalmente emancipadas, mesmo porque a sociedade ainda sustenta o machismo como outros ismos. Mas a cultura hip hop é tão poderosa, que vem construindo uma banca de mulheres que está além das Zonas de SP, é uma banca brasileira de mulheres que cada vez mais se fortalece, se profissionaliza e prospera. E neste contexto o conhecimento (5° elemento da cultura hip hop) é o que mais alimenta esta construção! Estamos trabalhando.
2 – Catraca Livre: Antes do debate sobre o feminismo ganhar espaço na sociedade, o rap já abria caminho para uma geração de mulheres que usaram o microfone para mostrar poder e discutir suas prioridades. É possível afirmar que o rap cumpre um papel educativo onde o estado jamais apareceu?
Yzalú: Sim, com toda certeza!
3 – Catraca Livre: Qual o papel da mulher negra no novo cenário político? Qual deve ser o seu papel na luta por direitos e reparação?
Yzalú – Não tenho como te dizer qual deverá ser o papel da mulher negra, nem o meu também, porque eu faço música. Mas dentro deste contexto, o que posso dizer é que o fato de ser uma mulher negra, oriunda da periferia, produzindo arte, contraria toda uma estrutura já montada, então, seja contestando ou falando de amor, de forma natural a política está inserida.
4 – Catraca Livre: Na música de apresentação do disco, “Minha Bossa é Treta”, você transita por caminhos distintos, encurtando a distância entre a Vila Fundão e o bairro de Ipanema. Qual o peso de cada estilo em seu trabalho e como sintetizar isso em suas criações?
Yzalú: Lá de onde eu vim, escutamos de tudo, de João Gilberto a Belo, querendo ou não, é assim que funciona. E eu cresci com a referência muito próxima da minha mãe em suas influências musicais e sempre a ouvi me contando do por que do meu nome Luiza. Então eu diria que a bossa nova esteve presente desde então. Mas a realidade em que cresci sem dúvida me aproximou do rap, desde Ndee Naldinho tocando nas festas de família em 88, 89, quando ainda não sabia que era rap, eu só tinha 6 anos. Passando por Racionais MCs, Consciência H., Facção Central,conhecendo The Fugges e me apaixonando por Lauryn Hill, próximo à época em que comecei a tocar violão (98, 99).
Morando em Salvador, pude experimentar as minhas primeiras composições, a primeira mesmo que fiz foi no ritmo bossa, música de amor, sabe aquela que você faz e não mostra pra ninguém (risos!), porque era tudo muito genuíno eu não pensava, por exemplo, em ser artista da música, essas coisas. Eu só queria tocar e fazer música. Mas quando me aproximei mais da cultura hip hop, em 2002, comecei a arriscar a compor rap no violão, composições guardadas, mas que deram indícios de qual seria meu caminho na música. E hoje no disco “Minha Bossa é Treta”, pude explorar mais isto.
5 – Catraca Livre: Ao expor a prótese na capa do disco, você levanta temas como a questão da acessibilidade e ainda quebra os padrões de beleza impostos pela indústria fonográfica. Aborda temas como a revista vexatória nas penitenciárias e faz da música instrumento de transformação social. Qual a expectativa sobre o impacto do seu trabalho?
Yzalú: Espero que positiva. Este disco é antes de tudo uma realização pessoal,onde estou feliz em tê-lo concluído. Por vezes pensei que não seria possível e por isso estou muito orgulhosa do resultado. O que vier será a consequência de todo este trabalho. Mas se for para desejar algo, eu desejaria que a minha música inspire outras pessoas a acreditar em si, percebendo que é possível ser quem você é e ter orgulho disto.
6 – Catraca Livre: Como porta-voz de milhões de mulheres das periferias de todos os cantos, o que significa ser mulher no Brasil hoje?
Yzalú: É uma pergunta difícil, porque somos diversas. Mas eu me arriscaria em dizer que ser mulher no Brasil atualmente significa ser o que quiser e como quiser, sem depender das aprovações dos outros. Há muito tempo que trabalhamos e pagamos as nossas contas, e não aceitamos mais que a sociedade diga como devemos ser e agir, porque além de mulheres, somos livres! Acredito que é isso.