‘Sociedade costuma privilegiar palavra do homem e duvidar da mulher’, diz Ana Paula Araújo em livro sobre estupro

Em entrevista exclusiva para a Catraca Livre, a apresentadora do Bom Dia Brasil falou sobre seu livro 'Abuso – A Cultura do Estupro no Brasil'

26/10/2020 20:04

Apresentadora do Bom Dia Brasil, na TV Globo, Ana Paula Araújo, lançou no início de outubro o livro ‘Abuso – A Cultura do Estupro no Brasil’, revelando histórias brutais, chocantes que acontecem no país e constatou o pior: Elas são mais comum do que se imagina.

“A sociedade costuma privilegiar a palavra do homem e colocar a da mulher em dúvida”, afirmou, em entrevista à Catraca Livre, a jornalista carioca, formada em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e que, em 2010, obteve destaque nacional pela cobertura da ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Na ocasião, Ana Paula Araújo ficou 8 horas ininterruptas no ar e a reportagem rendeu a ela e à equipe de jornalismo da TV Globo o prêmio Emmy Internacional.

‘Sociedade costuma privilegiar palavra do homem e colocar duvidar da mulher’, diz Ana Paula Araújo em livro sobre estupro
‘Sociedade costuma privilegiar palavra do homem e colocar duvidar da mulher’, diz Ana Paula Araújo em livro sobre estupro - Reprodução/Instagram

Escrever ‘Abuso – A Cultura do Estupro no Brasil’ consumiu quatro anos de pesquisas e entrevistas da jornalista. Dentre tudo que ela pode perceber sobre o tema, está a constatação que o colega de trabalho, o vizinho de porta, o amigo da família ou até os próprios parentes são os mais recorrentes abusadores.

Segundo ela, a maioria dos estupros não é cometido pelo estereótipo de estuprador que a sociedade criou, maníacos que atacam em ruas e becos escuros durante a noite. Ana Paula Araújo constata em suas entrevistas com vítimas, estupradores, pessoas ligadas a eles e especialistas, que os agressores sexuais muitas vezes são pessoas comuns, próximas das vítimas.

A jornalista ainda destaca que são poucos os casos em que o crime de estupro vira notícia. Na maioria das vezes a vítima fica invisível aos olhos da sociedade e o criminoso sai impune, muitas vezes, mesmo com investigações sendo instauradas pela polícia.

Em entrevista exclusiva à Catraca Livre, Ana Paula Araújo contou um pouco sobre o processo que enfrentou para fazer o livro e sobre o que viu nesse período. Confira:

Catraca Livre:  Falar de abuso e estupro no Brasil não é tarefa fácil, como foi o processo para escrever o livro?

Ana Paula Araújo: Continuei com meu trabalho normalmente na TV, então, para conseguir viajar pelo Brasil, tive que concentrar a maior parte das entrevistas nos fins de semana de folga e feriados. Partes das férias também foram investidos no projeto. Em lugares menos distantes, cheguei a fazer ida e volta no mesmo dia. Foi cansativo fisicamente e também psicologicamente, porque eram entrevistas sempre muito pesadas e quase não tive tempo de respirar entre uma e outra. Mas valeu a pena. Acho que consegui cumprir o que me propus: traçar um retrato da violência sexual pelo Brasil, levantar o debate, esclarecer sobre os direitos das vítimas e trazer caminhos sobre como podemos ao menos melhorar essa realidade

Catraca Livre:  Os casos de abuso no Brasil mostram que há uma dificuldade na sociedade de compreender o que é consentimento, principalmente entre os homens, mas não só eles. Como você percebeu essa questão ao abordar o tema com tantas pessoas?

Ana Paula Araújo: É um conjunto de pensamentos e atitudes entranhados que acabando criando uma sociedade onde a violência sexual é normalizada. Inclui ideias equivocadas, como a de que a vítima pediu, de que homem é assim mesmo, que não é tão grave assim, de que é fácil esquecer. É reflexo de uma cultura que dita que o homem é superior, mais importante, que o desejo dele é que tem que ser levado em conta sempre. Começa desde cedo, quando ensinamos que meninos são fortes e meninas são delicadas, que meninos devem ser agressivos e meninas ficam na retaguarda deles, que tarefas de casa e filhos são função só das mulheres.

Catraca Livre: No seu livro fica claro que os abusadores em sua maioria são pessoas próximas as vítimas. Como é esse perfil?

Ana Paula Araújo: É importante desmistificar a ideia de que o estuprador só age em ruas desertas, tarde da noite, contra mulheres descuidadas. Os casos acontecem a qualquer horário, o estuprador em geral conhece a vítima e não há nenhum comportamento da vítima que estimule ou impeça um estupro. É absurdo pensar que mulheres com roupas decotadas façam alguém se tornar um estuprador.

Catraca Livre: A sociedade brasileira tende a acolher abusadores sem grandes questionamentos. Por quê?

Ana Paula Araújo: Nossa cultura machista tende a minimizar a violência contra as mulheres. Isso fica ainda pior quando se trata de violência sexual. Por ser um crime que quase nunca tem testemunhas e muitas vezes não deixa marcas, fica a palavra da vítima contra a do agressor. E aí, como em muitas situações, a sociedade costuma privilegiar a palavra do homem e botar o testemunho da mulher em dúvida.

Catraca Livre: Qual o papel que o Estado precisa ter para que mulheres denunciem abusos e homens não os cometam?

Ana Paula Araújo: O Estado precisa dar condições para que as vítimas denunciem e sejam de fato acolhidas pelas instituições. Hoje, por medo, culpa ou vergonha, 90% delas não denunciam. A minoria que denuncia sai quase sempre sem a punição do culpado, seja pela investigação policial malfeita ou inexistente, seja pela justiça que muitas vezes desconfia da vítima e não tem sensibilidade para compreender a dificuldade em recolher provas nesse tipo de crime. Sem punição e sem uma educação que combata a violência de gênero, não há solução. E essa educação tem que chegar inclusive aos nossos policiais, juízes e médicos.