Trecho do livro “O Solista”

09/10/2009 20:35 / Atualizado em 09/11/2009 21:10

P a r t e  Um

 1

Não consigo tirar da cabeça a imagem, aquela estranha figura

de um refinamento desbotado. Mas, quando volto à praça

Pershing para procurar o violinista, não o encontro. O seu desaparecimento

apenas torna o mistério mais instigante.

Quem era ele? Para onde foi? Qual é a sua história?

Três semanas depois, ele está de volta, reapareceu no mesmo lugar,

e eu o observo por algum tempo do outro lado da rua, antes de

me aproximar. Sua execução é um pouco áspera e hesitante, mas,

assim como da vez anterior, fica claro que não se trata de um iniciante.

Ali houve estudo sério, em algum momento da vida. Ele não

dá a impressão de estar tocando por dinheiro, o que parece estranho

para um sem-teto. Toca como se fosse um estudante, alheio a

todos à sua volta, compenetrado como se fosse uma aula prática.

Lugar estranho para tocar. O chão treme quando os ônibus

passam, e mal se ouvem as suas cordas em meio àquela orquestra

de buzinas, caminhões e sirenes. Contemplo o alto dos prédios

adornado com gárgulas e cornijas enormes. Homens e mulheres

passam apressados, a maioria sem prestar atenção alguma ao

músico enquanto desaparecem nas esquinas ou pelas entradas

de edifícios. O homem continua tocando, é um violinista solitário.

Ele joga a cabeça para trás, fecha os olhos, deixa-se levar.

Uma imagem de glória atormentada.

Quando ele faz uma pausa, eu me aproximo.

— Olá — cumprimento.

Ele recua estremecendo, alarmado como da vez anterior.

— Lembra-se de mim? — pergunto.

— Lembro da sua voz.

Ele ainda desconfia de mim, desconfia de tudo à sua volta, ao

que parece. Diz que estava tentando lembrar-se de uma peça de

Tchaikovsky que sabia muito bem, mas que agora é tão esquiva

quanto o significado de um sonho. É óbvio que ele sofre de algum

tipo de perturbação, como tantos outros que vagam pelas ruas

como se fossem habitantes de um planeta diferente do nosso, envoltos

em muitas camadas de roupa para impedir que sejam desvendados.

Está usando um suéter azul surrado com uma camiseta

marrom-clara por cima, e a gola de uma camisa aparecendo. Enrolada

no pescoço, como um cachecol, está uma toalha felpuda amarela.

A calça, de um tamanho três números acima do seu, fica caindo

abaixo da cintura, e os tênis brancos imundos não têm cadarços.

Ele me conta que o seu nome é Nathaniel Anthony Ayers. Que

é de Cleveland. Que vai continuar praticando até conseguir se

orgulhar do que ouve. E eu lhe digo que gostaria de escrever a

seu respeito para o L.A. Times.

— Sério? — pergunta ele. — Quer mesmo escrever sobre mim?

— Por que não? — contesto.

Ele é um sujeito bonito, magro e em boa forma física, com

o queixo forte, os dentes brancos e limpos. Lembra um pouco

Miles Davis. Pergunto onde mora, e ele diz que é na Midnight

Mission, um dos maiores abrigos das redondezas, no bairro de

Skid Row. Não lá dentro, detalha ele, mas na rua, embora tome

banho e faça algumas refeições lá.

— Por que você não dorme lá dentro?

— Ah, não — diz ele. — Eu não ia querer fazer isso.

Fico pensando na segurança de um homem que tenta restabelecer

contato com Tchaikovsky enquanto traficantes, prostitutas

e vigaristas fazem seus negócios em ruas apinhadas de aleijados e

miseráveis. Skid Row é um monturo onde vão parar os criminosos

soltos da prisão municipal vizinha e onde as sirenes nunca

param de soar.

— Talvez eu vá visitá-lo no abrigo — digo-lhe.

Ele faz que sim com a cabeça, mas posso ver que não acredita

em mim. Enfia o violino de novo sob o queixo, ansioso por voltar

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O SOLISTA

13

à sua música, e eu entendo que, se sair algum resultado daí, vai

levar tempo. Terei de voltar a falar com ele de vez em quando,

até que se sinta suficientemente à vontade para se abrir. Talvez

eu possa acompanhá-lo nas suas andanças durante alguns dias,

ver se alguém pode ajudar a preencher as lacunas no seu passado

ou explicar a sua situação. Quando ele começa a tocar, aceno um

adeus e ele responde com um rápido olhar desconfiado para o

meu lado.

Duas semanas depois, vou procurá-lo outra vez, e ele desapareceu

de novo. Caminho até o abrigo, entre as ruas Fourth

e Los Angeles, onde vejo dúzias de moradores de rua, alguns

acabados pelas drogas, alguns loucos delirantes, alguns deitados

tão imóveis na calçada que é difícil dizer se estão cochilando ou

esperando o transporte para o necrotério.

Converso com Orlando Ward, do setor de informações na

Midnight Mission. Ele diz que já viu o violinista por lá, mas não

conhece seus antecedentes. E não o tem visto ultimamente.

Agora fico preocupado por ter perdido a oportunidade de escrever

uma coluna sobre ele.

Semanas se passam e eu acabo me distraindo com outras coisas,

enfiando tudo que consigo arranjar naquele espaço vazio na

página. E então, um dia, enquanto dirijo até o trabalho, vindo

da minha casa em Silver Lake, um bairro oito quilômetros a

noroeste do centro, atravesso o túnel da Second Street e lá está

ele, apresentando um concerto solo em um local ainda mais barulhento

do que o anterior.

Dessa vez, ele se lembra de mim.

— Por onde você tem andado? — pergunto.

Ele diz que andou por aí, esteve aqui e ali. Nenhum lugar em

especial.

Um carro passa disparado e a mente dele rodopia.

— Carro azul, carro verde, carro branco — diz ele. — Ali vai

um carro da polícia, e Deus está do outro lado daquele muro.

Assinto, sem saber o que dizer. Talvez ele seja um pouco mais

inacessível do que eu imaginara. Será que faço anotações para

uma coluna, ou dou alguns telefonemas para ver se alguém pode

vir ajudá-lo?

— Ali vai Jacqueline du Pré — diz Nathaniel, apontando uma

mulher um quarteirão adiante. — Ela é mesmo maravilhosa.

Eu digo que não acredito que seja a violoncelista, falecida em

1987.

Nathaniel diz que não tem muita certeza.

— Não sei como Deus age — diz ele sinceramente, com uma

expressão que indica que tudo é possível.

Anoto isso apressadamente no meu bloco e também copio o

que ele escreveu no carrinho de compras com um marcador de

texto.

“Little Walt Disney Concert Hall — Beethoven.”

Pergunto a Nathaniel se ele se mudou para este lugar a fim de

ficar perto da sala de espetáculo, e ele diz que não, nem mesmo

sabe exatamente onde fica o Disney Hall.

— É por aqui? — pergunta ele.

— Logo ali, no alto da colina. O grande prédio prateado que

parece uma escuna.

— Ah, é isso?

O violinista diz que se mudou para este local porque dava para

ver o edifício Los Angeles Times dois quarteirões adiante.

— Não trabalha ali? — pergunta ele.

Depois de viver em Cleveland, Nova York e Los Angeles, diz

Nathaniel, é tranquilizador poder olhar para o edifício L.A. Times

e saber onde está.

Ele toca um pouco; conversamos brevemente, uma experiência

que é como entrar num sonho. Nathaniel toma rumos

absurdos, indo e vindo entre assuntos desconexos. Deus,

Cleveland Browns, os mistérios da viagem aérea e a glória de

Beethoven. Continua voltando à música. O propósito da sua

vida, ao que parece, é organizar as notas que estão espalhadas

na sua cabeça.

Reparo pela primeira vez que seu violino, com crostas de sujeira

e uma substância branca como giz que parece um fungo,

está sem uma ou duas peças importantes.

— O seu violino só tem duas cordas — digo. — Faltam as outras

duas.

Sim, diz ele. Sabe disso perfeitamente.

— Tudo o que eu quero é tocar, e a crise que estou sofrendo

está bem aqui. Esta sumiu — diz ele sobre a corda superior que

falta —, essa outra sumiu, e essa sobrevivente aqui está quase

imprestável.

O seu objetivo na vida, Nathaniel me conta, é descobrir como

repor as cordas. Mas ele se acostumou a tocar instrumentos defeituosos

quando tinha aulas de música nas escolas públicas de

Cleveland, e pode-se fazer muito, me garante, com apenas duas

cordas.

Enquanto converso com ele, reparo que alguém rabiscou nomes

na calçada em que estamos. Nathaniel diz que fez isso com

uma pedra. A lista contém Babe Ruth, Susan, Nancy, Kevin e

Craig.

— De quem são esses nomes? — pergunto.

Ah, essas pessoas, diz ele.

— Esses eram os meus colegas na Juilliard.

2

Volto quase correndo para o edifício do Los Angeles Times, um

ponto de referência no centro da cidade que ocupa a maior parte de

um quarteirão, na diagonal da Prefeitura. Essa tem sido minha base

há quase quatro anos, o lugar onde tenho suado para escrever centenas

de colunas para o caderno da Califórnia. Este é o meu sétimo

jornal, em uma carreira de trinta anos que incluiu um período de

quatro na revista Time. Apesar de não ter passado muito da casa dos

cinquenta, há dias, para ser sincero, em que me pergunto quantos

anos ainda me restam. Vontade não é problema. A questão é se os

jornais ainda terão importância numa época em que os leitores estão

migrando em massa para a internet e o nosso grupo mais sólido

de assinantes está desaparecendo aos poucos, com a diminuição

das redações de jornal no mesmo ritmo.

O antídoto para tal incerteza e relutância é, obviamente, uma

boa história. Quando se está na caçada, a adrenalina dispara, os

minutos parecem segundos e, nessa fixação obstinada, a pessoa

vira praticamente um zumbi, alheia a tudo ao redor e incapaz de

fazer qualquer coisa além de conferir a matéria. Entro esbaforido

pelos fundos do cinzento edifício do Times, pensando o tempo

todo que a Juilliard, em Manhattan, é uma das mais conceituadas

escolas de música do mundo e, se Nathaniel realmente estudou

lá, com um pouco mais de pesquisa arranjo uma boa coluna.

Apesar de já ter escrito milhares de reportagens numa carreira

que incluiu passagens por The Philadelphia Inquirer, Oakland

Tribune e San Jose Mercury News, ainda me atiro sobre cada uma

como um garoto numa caça aos ovos de Páscoa, como se achasse

que nunca mais viria a topar com outra.

Uma das grandes alegrias do meu trabalho é a possibilidade de

colocar políticos na berlinda. Também adoro expor as futilidades

dos ricos e famosos, e distribuir chicotadas públicas a empresários

pilantras e tolos pretensiosos que merecem no mínimo isso,

mas nada satisfaz tanto quanto descobrir a história que se acha

bem à sua frente, tão óbvia que é praticamente invisível. Um

mendigo com um violino, vivendo de um carrinho de mercado e

idolatrando uma estátua de Beethoven, vem a ser um ex-aluno

da Juilliard. Meu encontro casual confirmara uma regra de ouro

no jornalismo: todo mundo tem uma história, portanto saia da

sala de redação e converse com as pessoas. Nunca se sabe o que

se pode descobrir.
 

Minha mesa fica no terceiro andar da redação. Jornalistas engraçadinhos

e piadistas chamam a área de Baja Metro, porque fica

ao sul da seção principal da editoria “Cidade”. O cumprimento

típico entre os colegas jornalistas é um resmungo ou um “Oi”,

não mais que isso, e eu solto alguns antes de afundar na minha

cadeira e jogar o meu notebook sobre a pilha de entulho com que

convivo. Pesquiso sobre a Juilliard no Google, mas não há uma

lista de ex-alunos no seu site. Ligo para lá, deixo uma mensagem

para alguém de relações públicas e também envio a pergunta por

e-mail. Já é tarde em Nova York e ninguém na Juilliard parece

disposto a deixar tudo de lado e averiguar a minha indagação.

Faço nova tentativa por telefone e por fim consigo uma resposta,

mas não é a que estou esperando.

Sinto muito. Parece não haver nenhum registro de um aluno

com o nome de Nathaniel Anthony Ayers.

Que diabo. Lá se vai um bom gancho. Se o pobre coitado está

delirando assim, ele está ainda mais doente do que pensei. Será

demência? Transtorno bipolar? Não sou médico, mas posso diagnosticar

o leve receio que me toma, acompanhado de um frio no

estômago. Esses são os sintomas de um colunista sem coluna.

Felizmente, não estou escalado para escrever hoje, e sem dúvida

vai aparecer alguma coisa até a próxima entrega de matéria.

Sempre aparece alguma coisa.

Pego o bloco de papel ofício amarelo, mas a minha lista de

ideias para a coluna parece requentada, sem uma única aposta

certa no grupo. Talvez seja porque não consigo tirar Nathaniel

da cabeça. Não sou um mau conhecedor das pessoas, habilidade

adquirida com muita leitura, e ele dava a impressão de ser um

cara honesto, carismático e convincente à sua maneira, subindo

ao palco todo dia no seu Little Walt Disney Concert Hall. Com

ou sem Juilliard, ele ainda me intrigava, e sua decisão de passar

da estátua de Beethoven para o túnel me parecia estranha. Com

muito menos pedestres ali, ele não arranjaria muito dinheiro e

nunca reporia as duas cordas perdidas.

Espera aí.

Será que ele passou para o túnel para ficar mais perto de mim?

No dia seguinte, alguém da Juilliard liga para dizer que houve

um engano. Sim, verificou-se que de fato já houve um estudante

com o nome de Nathaniel Anthony Ayers. Não há outras informações

disponíveis, nem mesmo os anos em que ali estudou.

Mas ele está incluído na relação de ex-alunos.

Desligo o telefone e fico de pé junto à minha mesa, procurando

alguém com quem partilhar a notícia. Conto a Jim Rainey, o repórter

mais próximo, que o cara frequentou a Juilliard. Encontrei

esse cara tocando um violino escangalhado e sebento, cheio de

manchas e rabiscos, ele me diz que frequentou a Juilliard e isso

bate. Pode acreditar nisso? Ele está lá agora, riscando na calçada

os nomes dos seus colegas.

— Parece que pode dar uma boa história — diz Rainey, um

mestre da inexpressividade calculada.

Chego à conclusão de que a história é boa demais para agir

com precipitação, de modo que, nas semanas seguintes, empurro

algumas colunas mais fáceis para publicação enquanto levanto

mais detalhes sobre a vida de Nathaniel. Depois de me encontrar

com ele mais algumas vezes, ele já não recua quando me aproximo;

fica cada vez mais receptivo.

— Ah, sr. Lopez — diz ele —, como vai hoje?

Aprendo que existe uma regra inegociável com Nathaniel. Enquanto

está tocando, ele é um artista em ação e não gosta de

ser interrompido, um erro que sempre provoca um olhar de desprezo.

Às vezes, enquanto espero por uma pausa dele, faço um

inventário dos objetos atulhados no carrinho de mercado. É nada

menos do que uma obra de arte e hábil engenharia, com um número

espantoso de coisas precisamente arrumadas. Cobertores,

um saco de dormir, roupas, dois bastões de quase um metro, uma

lona azul, uma pistola d’água do tamanho de um revólver pequeno,

uma calota de automóvel, um pé de bota preta. Baldes de

vinte litros pendem do carrinho como alforjes, e flores artificiais

presas no alto da pilha dão um efeito de “lar doce lar”. No estojo

aberto do violino, que Nathaniel deixa sobre o carrinho enquanto

toca, vejo um pequeno saco de papel branco e vazio, com os dizeres

“Studio City Music”.

— Um negro? — pergunta Hans Benning, proprietário do

Studio City Music, quando eu telefono. — Conhecemos, sim,

um cara que toca um violino bastante castigado. Ele vem aqui

de vez em quando. É muito afável, muito tranquilo e muito decente.

É um encanto… Fala sobre as sonatas de Beethoven, e em

seguida escapa de novo para um outro mundo.

É ele mesmo.

Seja o que for que Nathaniel esteja tocando na esquina da

Second com a Hill, pode ser deslumbrante ou horrível. Mas não

esqueçamos que ele está com duas cordas a menos. Tenho um

bom ouvido para tom, mas não sou músico, e vários anos de

aulas de violão anos atrás não me adiantaram muito. Desejaria

agora conhecer alguma coisa de música clássica para poder avaliar

melhor o trabalho de Nathaniel. Mas a música que eu adoro

e conheço um pouco é o jazz. Assim, só posso fazer que sim com

a cabeça, calado mas com admiração, quando ele responde a uma

das minhas perguntas.

— Essa foi uma ideia que tirei de Ernest Bloch — conta ele.

— B-L-O-C-H. Compositor nascido na Suíça que foi diretor do

Instituto de Música de Cleveland.

Quando lhe digo como fico impressionado pelo fato de ele ter

estudado na Juilliard, Nathaniel se enche de modéstia.

— Fiquei lá uns poucos anos.

Mas só uma percentagem mínima dos maiores violinistas do

mundo poderia ter esperança de entrar para a Juilliard, digo eu,

portanto ele devia ter um talento excepcional.

— Ah, eu não tocava violino — diz ele. — Eu tocava contrabaixo.

— Então onde você aprendeu a tocar violino?

— Eu não sei tocar violino — diz ele. — Tenho tentado aprender

sozinho, mas é difícil transpor a música do contrabaixo para

o violino. Ajudaria se eu tivesse algumas partituras, mas não sei

como arranjar.

Pouco depois de sair da Juilliard, Nathaniel tentou o violoncelo

e adorou, conta ele, mas o violino era mais fácil de levar

para cima e para baixo em um carrinho de mercado. Não há

como continuar tocando um contrabaixo grande e vertical, diz

ele, quando se vive na rua. Mas ele ainda guarda na cabeça

Saint-Saëns, Mozart, Brahms, Dvořák, Haydn e Beethoven, por

isso tenta tocar um pouco das composições deles no violino

de duas cordas que afirma ter comprado, há muitos anos, na

Motter’s Music House, em Cleveland.

Ligo para a Motter’s, e Ron Guzzo, um dos gerentes, se lembra

da compra. Guzzo conta que o violino foi um dos muitos instrumentos

que Nathaniel comprou dele ao longo de um período

de quase vinte anos. Ele voltava para comprar novos instrumentos

porque os outros lhe eram roubados nas ruas de Cleveland.

Nathaniel arranjava um serviço de tirar neve das ruas, conta

Guzzo, ou um trabalho na lanchonete Wendy’s, até economizar

o suficiente para comprar outro instrumento.

— Pelo que sei, ele estava na Juilliard e ficou doente, por isso

voltou para casa — diz Guzzo sobre Nathaniel, conhecido por ele

como Anthony, o seu segundo nome, ou Tony.

O pessoal da Motter’s sempre se espantava com a facilidade

com que Nathaniel passava de um instrumento para outro.

— Ele sentava no nosso estacionamento num dia bonito, tocava

violoncelo, e nós ficávamos nos perguntando de onde vinha

aquilo. Era o Tony.

A doença na Juilliard era um assunto que eu não sabia como

abordar com Nathaniel, nem se devia fazê-lo. Seria demasiadamente

pessoal? Iria perturbá-lo? Posso confiar na resposta de

um homem que tem problemas mentais? Mas preciso saber mais

para a minha coluna, então pergunto se era verdade que ele deixou

a Juilliard antes de terminar os estudos.

— Ah, sim, caí fora de lá — diz ele.

— O que aconteceu?

— Nem me lembro mais, já faz tanto tempo.

Pergunto se ele tem parentes com quem eu possa conversar,

e Nathaniel recita o número decorado do telefone de seus tios

Howard e Willa, em Cleveland. Eles me dizem para falar com

Jennifer, a irmã mais nova de Nathaniel, que é assistente social

em Atlanta, e a voz dela manifesta alívio quando lhe digo que

conheci o seu irmão.

— Ele está bem? —pergunta ela com uma voz trêmula, acrescentando

que há anos ninguém tem notícias dele.

Era o segundo semestre de 1972, o terceiro ano de Nathaniel

na Juilliard, e ele vinha sendo atormentado por meses de confusão,

ansiedade e alucinações. Certa noite, no apartamento

de um colega da Juilliard e de sua noiva, no Upper East Side,

Nathaniel começou a tirar a roupa sem nenhum motivo aparente.

Alarmados com esse comportamento bizarro, o colega e

a noiva não conseguiram fazer com que Nathaniel parasse de

se despir. Ele não estava zangado nem agressivo, mas parecia

estar tendo um acesso inexplicável, e, à medida que se tornava

mais distante, seus amigos ficaram ainda mais assustados e

preocupados. Sem saber o que fazer, o colega chamou a polícia

e Nathaniel, com 21 anos de idade, foi transportado para a sala

de emergência psiquiátrica do Hospital Bellevue. O diagnóstico

foi esquizofrenia paranoide, e a sua vida, tal como ele a levara

até então, estava terminada. Assim também as suas esperanças

de uma carreira como músico.

Sem poder fazer nada, durante anos Jennifer viu o irmão mais

velho, o artista inteligente e de fala mansa, ser levado de um

tratamento a outro em Cleveland, experimentando remédios, terapia

e eletrochoques, nenhum deles com resultado duradouro.

O rapaz sempre bem-arrumado virou um caco maltrapilho que

perambulava pelas ruas com instrumentos musicais, dormia no

mato e gravava nomes nas árvores. Era incoerente, zangado e

sujeito a surtos violentos que magoaram sua mãe milhares de

vezes. Floria, que tinha um salão de beleza em Cleveland, cozinhava

para ele, arrumava a casa para ele, cobria-o de amor e

continuava a lhe dar mais uma chance, e em troca Nathaniel

destruiu a mobília, quebrou as lâmpadas e danificou as paredes

com desenhos sem sentido. No entanto, apesar dos desmandos,

Nathaniel adorava a mãe e sentiu-se totalmente perdido quando

ela morreu em 2000, após uma longa doença.

E então ele seguiu para o Oeste, à procura do pai que abandonara

a família quando Nathaniel tinha apenas nove ou dez anos.

Mas havia tantos anos que eles perderam contato que Nathaniel

não sabia que o pai, um motorista de caminhão de lixo aposentado

de Los Angeles, já se instalara em uma comunidade de idosos

em Las Vegas. Nathaniel ficou por pouco tempo na garagem da

filha de um segundo casamento de seu pai; depois decidiu que

queria viver por conta própria no centro de Los Angeles. Por vários

anos ele perambulou pelas ruas até que, naquele dia na praça

Pershing, os nossos caminhos se cruzaram pela primeira vez.

Um jato sobrevoa o centro de Los Angeles, fazendo a grande

curva antes de voltar na descida até o aeroporto da cidade.

Nathaniel olha fixamente para cima, como uma criança, depois

se vira para mim, com uma sobrancelha erguida, e pergunta se

estou pilotando o avião.

É um momento desalentador que oferece um vislumbre do

delírio com que ele convive. Pergunto-me se devia responder,

mas não o faço. Pergunto-me se devia ficar com medo, mas não

estou. Estou curioso demais para ficar com medo e gostaria

de saber mais sobre como um garoto negro criado na década de

1960 — quando o movimento pelos direitos civis e a guerra do

Vietnã dividiam o país, e cidades como Cleveland estavam em

pé de guerra — superou as dificuldades e acabou no curso de

música clássica da Juilliard. Era um menino-prodígio? A mãe

e o pai eram músicos ou admiradores que enchiam a casa com

os sons de Beethoven e Ernest Bloch, B-L-O-C-H? Não fosse o

colapso nervoso, Nathaniel estaria no alto da colina, de smoking,

tocando com a Filarmônica de Los Angeles, em vez de estar se

virando como pode aqui embaixo, no seu Little Walt Disney

Concert Hall?

Não posso deixar de pensar na dor de sua família, e me pergunto

se, no começo da sua vida, houve sinais de que poderia haver

algo errado com ele. Ou a loucura se manifesta numa pessoa

de forma aleatória e sem aviso? Talvez esperar que eu consiga

arrancar isso dele seja querer demais. Quem sou eu, afinal, para

tornar minha a sua história?

Uma pessoa com prazos, eu lembro a mim mesmo. Uma pessoa

que reconhece uma boa história quando se depara com ela.

Uma pessoa que imagina um leitor fazendo uma pausa na história

da queda sofrida por Nathaniel, da sua elevada aspiração, e

dizendo: “Assim seria comigo, não fosse a graça de Deus.”

Bem, me informa Nathaniel, havia Joseph Russo. Ele era um

bom amigo. E Joseph Bongiorno era outro contrabaixista na

Juilliard. B-O-N-G-I-O-R-N-O. Pergunto-lhe se sabe se eles ou

algum dos outros colegas continuaram na música.

Ele perdeu o contato e não sabe onde foram parar, conta ele.

Mas “um garoto chamado Yo-Yo Ma” tem se saído muito bem.

— Você conheceu Yo-Yo Ma?

Na verdade, não, diz Nathaniel. Mesmo naquela época, o violoncelista

estava numa classe diferente.

— Mas nós tocamos na mesma orquestra — diz Nathaniel. —

Eu admirava muito o rapaz.

Ele me conta que o seu professor de contrabaixo foi Homer M-EN-

S-C-H, que, com mais de 90 anos, ainda ensinava na Juilliard.

— Ele tinha talento, não resta dúvida — diz Mensch sobre

Nathaniel, perguntando o que aconteceu com o garoto de

Cleveland.

Conto a ele que Nathaniel vive em Skid Row e toca um violino

sem duas das cordas, e fica um silêncio no outro lado da linha.

— Transmita a ele os meus melhores votos — diz Mensch. —

Eu gostaria muitíssimo de ter notícias dele.

Se eu quiser falar com o homem que melhor o conhece, diz

Nathaniel, devo ligar para Harry Barnoff. Em Cleveland. É B-AR-

N-O-F-F.

— Vou tentar descobrir o número — digo-lhe.

Com o dedo indicador, ele escreve o número de dez algarismos

no seu quadro-negro imaginário.

— Você telefona com frequência para ele? — pergunto.

— Faz anos que não falo com ele.

Ligo do meu trabalho para o número e uma mulher atende.

— É da residência de Harry Barnoff? — pergunto.

— Sim — responde ela. — É a filha dele quem fala.

Harry Barnoff havia se aposentado recentemente, depois de

tocar contrabaixo durante 46 anos na Orquestra de Cleveland.

Nathaniel foi encaminhado a ele quando era adolescente, e

Barnoff foi seu professor e amigo durante muitos anos. Quando

descrevo a situação atual de Nathaniel, Barnoff fica tão abalado

que começa a chorar.

— Por favor — pede o músico, aliviado por saber que Nathaniel

está vivo, mesmo que em circunstâncias não muito boas —, o

senhor precisa lhe dizer o quanto penso nele e que ainda me

lembro de como ele era um excelente músico.

Nem sempre Nathaniel era o melhor aluno, relembra Barnoff,

que foi seu professor particular na Cleveland Music School Settlement,

uma instituição sem fins lucrativos do Círculo da Universidade

de Cleveland. Nathaniel era relaxado nos exercícios e tinha

dificuldade para se concentrar, segundo Barnoff, que acha que talvez

ele fosse talentoso demais para o seu próprio bem. Barnoff nunca

vira um aluno passar meses sem praticar, como às vezes Nathaniel

fazia, e depois pegar um instrumento e tirar um som tão bom.

— Você tem mesmo alguma coisa — dizia ele a Nathaniel, insistindo

com ele para respeitar e desenvolver o seu dom.

Essa combinação de elogio e confiança atraiu a atenção de

Nathaniel. Ainda na adolescência, Nathaniel declarou, meio

com arrogância, meio com admiração, que queria ser como o sr.

Barnoff e tocar numa orquestra importante. Barnoff relutava em

animá-lo para uma decepção. Sem dúvida, disse ele a Nathaniel,

você tem talento, mas é preciso mais do que isso.

— Você tem de fazer da música a sua vida. Você tem de praticar,

praticar, praticar.

No seu próprio caso, Barnoff disse a Nathaniel, ele se empenhara

bastante para conseguir entrar para essa escola de elite em

Nova York, chamada Juilliard.

— Também quero ir para a Juilliard — disse Nathaniel a

Barnoff.

Barnoff recorda que, enquanto Cleveland estava explodindo,

com a polícia de choque arrastando os manifestantes, incêndios

proliferando e carros sendo virados, Nathaniel estava frequentemente

no seu refúgio na instituição. O rapaz havia sofrido

uma mudança. Estava mais maduro e menos inquieto e, depois

do ensino médio, ganhou uma bolsa para o curso de música da

Universidade de Ohio. Barnoff ficou felicíssimo por seu protegido,

mas Nathaniel estava ainda em busca de um prêmio maior.

No meio do seu primeiro ano na Universidade de Ohio, ele voou

até a Juilliard para uma audição.

— Soube em seguida — diz Barnoff com voz trêmula —: ele

tinha ganhado uma bolsa de estudos.

Dou a Nathaniel duas cordas de violino novas, da Studio Music

Center, e ele as experimenta tocando Mendelssohn, Brahms e

Beethoven.

— Não sei como lhe agradecer — diz ele. — Aqui é um sonho

perfeito, e eu noto que todos estão sorrindo. O sol brilha o dia

inteiro, e as noites são frescas e serenas.

Acompanho com paciência enquanto ele coloca as cordas no

violino e tagarela amigavelmente, animado por tocar um instrumento

devidamente equipado. No alto da colina, o Disney Hall

é um grande navio atracado, com velas de mercúrio, uma visão

cintilante na linha do horizonte. Aqui embaixo, carros cruzam

em disparada o túnel da Second Street, caminhões passam com

estrondo, sirenes ressoam, e Nathaniel começa a tocar, abrindo

caminho através da loucura. Seus olhos estão fechados e no seu

mundo vedado existe ordem, lógica, sanidade, doce alívio. Ainda

que por um breve momento. 

3

O jornal de domingo atinge a entrada da minha casa com um

ruído surdo que abre um olho, paga a hipoteca e coloca em jogo

trinta anos de trabalho. As colunas da semana anterior não existem,

desbancadas por um constante e frenético feixe de notícias

e informações que embaralham a história. Você vale apenas tanto

quanto a sua tentativa de estabelecer alguma ligação com o

mundo, e a história de Nathaniel tem um impacto diferente de

tudo o que eu escrevi antes. Enquanto leio um e-mail, outros

dois chegam, um fluxo contínuo que se estende pelo almoço e

depois pelo jantar, até o dia seguinte. Sei que é uma matéria

forte, e o título certeiro, dado pelo editor Saji Mathai, ajudou a

atrair atenção para ela:

ELE TEM O MUNDO EM DUAS CORDAS

Mas a reação supera as minhas expectativas e me faz pensar

sobre o que eu teria subestimado na matéria. A resposta está nas

reações. Os leitores veem a história de um homem, atordoado

por um golpe trinta anos atrás, que prossegue com coragem e

dignidade, com o espírito intacto. É simples assim, com uma falha.

O meu encontro casual e auspicioso com Nathaniel é visto

como a sua segunda chance. Estou a par deste ou daquele tratamento?

Conheço o novo tipo de medicamento antipsicótico

que poderia mudar a vida dele? Eu poderia fazer o favor de

publicar o meu endereço para que as pessoas pudessem enviar

cordas e instrumentos fora de uso, desenterrados de sótãos

empoeirados? Esquecido durante anos, Nathaniel tem agora

uma torcida. Quatro leitores se oferecem para empacotar e enviar

violinos para ele. Um fabricante se oferece para fazer um

instrumento novinho para ele. E um homem chamado Al Rich

envia o seguinte:

 

Steve,

Sou presidente do Pearl River Piano Group America Ltd. Somos

a divisão ocidental do Guanghou Pearl River Piano Group, o maior

fabricante de pianos e o segundo maior fabricante de instrumentos

musicais do mundo. Nossa filial americana fica em Ontário, na

Califórnia. Li esta manhã o seu artigo sobre o violinista de rua de

Los Angeles e, naturalmente, fiquei comovido com a matéria.

Rich diz que está enviando um violoncelo e um violino em

modelo para estudante por entrega rápida do correio, e, quando

acabo de ler todas essas ofertas, corro até a esquina da Second

com a Hill para contar as novidades.

— Ele vai enviar um violoncelo? — pergunta Nathaniel a respeito

do presidente do Pearl River, com o rosto franzido de dúvida.

Ele não leu a coluna e está tendo dificuldade para compreender

a sua repentina virada de sorte.

— Um violoncelo e um violino — confirmo —, e várias pessoas

também estão dizendo que enviarão violinos.

Nathaniel parece estar me examinando em busca de sinais de

que sou real e não uma ilusão cruel.

— As pessoas são incrivelmente generosas — diz ele, mas

sombras de dúvida lhe enchem os olhos e alguma coisa o está

preocupando. — Não tenho recursos para isso — diz, fazendo

sinal de não com a cabeça.

— Você não tem de pagar nada a elas — digo. — São pessoas

que leram no jornal a minha matéria a seu respeito e acham que

você parece um cara honesto. Elas não querem nada além da satisfação

de saber que ajudaram um colega músico.

Isso parece convencê-lo. Se são músicos, fazem parte de uma

confraria, e Nathaniel é obrigado a respeitar suas suscetibilidades.

— Como vão enviar os instrumentos para mim? — pergunta

ele, totalmente consciente de que está isolado das relações comuns,

vivendo sem endereço nem caixa postal.

— Vão enviá-los para mim e eu os trarei para você. Isso deve

acontecer lá pela semana que vem.

Ele assente, mas posso ver que não confia em mim. E por que

deveria confiar? De repente, um colunista meio careca e de barba

grisalha cai de paraquedas na sua vida, prometendo instrumentos

de graça em quantidade suficiente para ele montar a sua própria

orquestra de câmara. Desconfiança, para não dizer paranoia,

é uma reação inteiramente lógica.

Nos dias seguintes, pelas oito ou nove da manhã, Nathaniel se

instala perto do túnel, descarregando meticulosamente o carrinho

na calçada do tamanho de um pátio que lhe serve de palco.

Mas a sua primeira tarefa é catar compulsivamente todo fragmento

de sujeira, detrito e cigarro. Ele faz discursos contra a

linguagem obscena e o flagelo das drogas, mas as guimbas de cigarro

são uma obsessão, uma maldição, uma ameaça, e ele as recolhe

da calçada com as pontas dos dedos e as joga com nojo em

latas de lixo, como se coubesse a ele, sozinho, salvar o mundo da

disseminação da praga. De vez em quando, larga tudo e dispara

até a rua em busca de uma guimba que acaba de ser atirada de

um veículo em movimento, com o rosto liso contraído numa carranca

enquanto ataca os viciados em nicotina e sua fraqueza que

corrói os alicerces da sociedade civil. Sua corrida louca entre os

carros é um espetáculo, não só pelo perigo inerente, mas porque

ele às vezes se lança de um lado para o outro num roupão comprido

de veludo bordô, parecendo uma espécie de mago fantástico.

Outras vezes usa um saco de lixo preto sobre as costas, preso

em torno do pescoço com alfinetes de segurança, um guerreiro

de capa pela limpeza das ruas do centro de Los Angeles.

Com a aproximação da primavera, o sol nasce no leste de Los

Angeles e incide forte sobre o vão de concreto na entrada do

túnel, onde Nathaniel passou a apoiar dois cartazes de papelão,

anunciando os seus interesses musicais do momento.

“Bach e Brahms” — está escrito num deles.

 “Oitava de Beethoven” — está escrito no outro.

Ele os pintou com tintura de cabelo preta. Ali perto, ele coloca

no chão uma revista japonesa, dizendo que é um tributo a Little

Tokyo, um pequenino bairro comercial a apenas alguns quarteirões

para leste. Lá todos se parecem com Yo-Yo Ma, me conta

ele.

— Já recebeu o violoncelo? — pergunta ele mais de uma vez,

com a expectativa de uma criança. — O violoncelo e os violinos?

Ainda não, Nathaniel. Estão para chegar.

Confie em mim.

Ele faz que sim com a cabeça, sem conseguir disfarçar a decepção

ou dúvida.

Se ele está com insetos na calça, ele me conta. Se acabou de

cavar um buraco no canteiro de hera para enterrar fezes humanas

de moradores do túnel que não tiveram a decência de usar

banheiros adequados, ele me conta. Na sua desinibição e despretensão

reconfortantes, Nathaniel solta qualquer coisa que lhe

passe pela cabeça. Não há filtros nem limite entre real e imaginário.

Uma simples pergunta sobre o seu amor por Beethoven o

lança num voo por pensamentos desordenados que flutuam pela

sua mente como nuvens impelidas pelo vento.

— Cleveland não tem a estátua de Beethoven. É uma cidade

voltada para o exército, ocupada, preocupada, com todas as

figuras militares da história americana, os grandes soldados e

generais, mas ninguém vê os músicos em exibição, apesar de

ter Severance Hall, Cleveland Music School Settlement, Bobcats

da Universidade de Ohio, Buckeyes do Estado de Ohio. Todos

os grandes soldados estão lá, vindos do exército dos Estados

Unidos, Segunda Guerra Mundial, guerra da Coreia, enquanto

em Los Angeles há o Departamento de Polícia de Los Angeles, a

Prisão do Condado de Los Angeles, o Los Angeles Times, o sr. Steve

Lopez. É um exército, não é? O L.A. Times? Los Angeles é inclinada

para baixo como um vale, montanhas de Santa Mônica, centro

de Los Angeles, Honolulu. Não vi o oceano em Los Angeles.

Imagina-se que haja um oceano, o Pacífico, mas não há lugar

para o oceano na área central. Você não vê estátuas de militares

como há em Cleveland, onde esses são os chefes da cidade e mantêm

o exército por toda a cidade com muitos cavalos. Cleveland

Browns, Los Angeles Rams, esses também são exércitos, arregimentação

militar, experimentação, com o sr. Roman Gabriel

como zagueiro, Roman, romanos, Império Romano, Coronel

Sanders, o sr. Roman Gabriel planejando uma jogada em seus

sonhos. Olhe. Lá vão todos os recebedores abertos rua abaixo.

Este sujeitinho aqui é o zagueiro da orquestra, este violino que

eu comprei alguns anos atrás na Motter’s Music, em Cleveland,

Ohio. Um violoncelo pode apoiar este sujeito com os mesmos

movimentos, mas o violoncelo não é o primeiro violino. Quem

vai à frente é este rapazinho aqui. Itzhak Perlman, Jascha Heifetz,

eles são como deuses para mim. Quem me dera ter esse talento

mas, mesmo se eu praticasse pelos próximos dez mil anos,

nunca conseguiria ser tão bom. Em Cleveland não se pode tocar

música no inverno por causa da neve e do gelo, e é por isso que

eu prefiro Los Angeles, a cidade de Beethoven, onde o sol brilha

e, se chover, você pode entrar no túnel e tocar à vontade. Aquela

estátua me deixa completamente abismado. Fico impressionado

que alguém tão importante quanto Beethoven seja o líder de Los

Angeles. Tem alguma ideia de quem o colocou ali?

Santo Deus. No que fui me meter?

Nathaniel solta esse e outros fluxos de pensamentos fragmentados

com o entusiasmo e a graça de um conversador fluente,

uma ênfase aqui, um sorriso ou gesto com a mão ali, e nem sombra

de consciência da natureza caótica da apresentação. Às vezes

eu o encontro em conversa empolgada com alguém que não está

ali, num papo fácil e animado com a parede, com uma árvore ou

com absolutamente nada. Não sei se ele está respondendo a vozes

ou apenas externando os seus pensamentos. Sei pouco sobre

a sua doença, como ela age, o que fazer ou a quem perguntar.

Em outras palavras, tenho um problema. Vários instrumentos

estão a caminho do meu trabalho e ainda nem pensei sobre

o que poderia fazer com eles quando chegarem. Nathaniel precisaria

enganchar um reboque no seu carrinho alaranjado para

arrastá-los de um lado para outro. Acho que vou lhe entregar o

violoncelo e talvez um dos violinos novos e conservar o restante

na redação. Mas há outro probleminha que nem sequer levei

em consideração e agora me está apavorando. Um homem que

vive nas ruas e dorme em um submundo perigoso e dominado

pelo crime, com viciados e ladrões à espreita, será um alvo bem

convidativo para agressão e roubo. Afinal, não dá para esconder

instrumentos no carrinho. Cogito guardar todos os instrumentos

no meu trabalho e dizer-lhe para passar lá quando quiser

tocar um deles, mas isso é impossível. Fico apenas metade do

expediente lá e, no tempo que estou, não tenho como bancar o

monitor de sala de música.

Sem saber, preparei uma armadilha para mim mesmo, e os

leitores não me deixam esquecer isso. Ainda chovem mensagens,

com simpatizantes querendo saber como vai Nathaniel e

quando eles poderão ler as novidades. A coluna é um ponto de

vista pessoal e, como tal, é menos imparcial do que um relato

direto de uma notícia. Mas, ao narrar o caso de Nathaniel, assumi

inadvertidamente certa responsabilidade pelo seu bem-estar,

uma tarefa para a qual clara, perceptível e indiscutivelmente não

estou habilitado. Pretendo, sem dúvida, contar as novidades do

caso. Mas não tenho intenção nenhuma de adotar um doente

mental de meia-idade e sem-teto. Tenho uma esposa, Alison, e

uma filha de dois anos, Caroline, e não consigo passar com elas

o tempo que gostaria, graças a uma agenda que, muitas vezes,

me faz chegar em casa depois que Caroline já foi dormir.

Menciono minha enrascada a um colega chamado Tom Curwen,

que havia sido editor assistente do caderno de livros do Times e

depois se tornou editor do caderno “Outdoors”. Ele conta que

outro dos nossos colegas reconheceu, entre os muitos mendigos

perto do edifício Times, um ex-companheiro de escola e ligou

para a Lamp Community, uma entidade no centro de Los Angeles

que atende doentes mentais sem-teto. O mendigo está agora indo

muito bem em seu tratamento.

Conheço vagamente a entidade, tendo uma vez me encontrado

com a ex-diretora, Mollie Lowery, que havia sido freira. Mas não

sei muito sobre o programa e não conheço as duas funcionárias

da Lamp que atendem ao meu pedido de ajuda e aparecem na esquina

da Second com a Hill para dar uma olhada em Nathaniel.

Ele está concentrado demais em sua música para notar a chegada

de Shannon Murray, a diretora assistente, e Patricia Lopez, administradora

do programa. Ficamos os três a alguns metros de

distância, assistindo ao concerto, e, quando ele faz uma pausa,

aproveito para apresentá-los. Nathaniel é afável e encantador. Ele

repete várias vezes os nomes de Murray e Lopez, decorando-os.

Parece ter a impressão de que Patricia Lopez é minha mulher.

Digo a Nathaniel que falei maravilhas sobre seu talento e que

Murray e Lopez atravessaram cerca de dez quarteirões para ver

por si mesmas. Ele dá de ombros timidamente, depois enfia o

violino sob o queixo, fecha-se ao barulho do tráfego e abandona

o mundo conhecido. Arranha um pouco as cordas, perseguindo

ideias que não se reúnem, mas então, como sempre, acha uma

passagem que atua como uma droga e a música o deixa livre de

qualquer distração. Olhos fechados, cabeça virada para o céu,

ele parte. Então, eu sussurro às duas visitantes: vocês acham que podem

ajudá-lo?

Murray demora para responder. Ela está observando Nathaniel

atentamente, como se estudasse um quadro cubista. Estou curioso para

conhecer os seus pensamentos, seu diagnóstico, seu

prognóstico, sua prescrição. Ela é jovem, talvez ainda não tenha

chegado aos quarenta, mas já tem vinte anos de experiência com

casos como esse.

Como sabe, diz ela, a Lamp procura realizar duas coisas, entre

muitas outras. Procura ajudar os assistidos a estabelecer relações

sociais em um ambiente propício e também sugerir uma

missão ou um objetivo, junto com um plano para alcançá-lo.

Ao que parece, Nathaniel já tem um defensor e conhecido confiável,

isto é, eu. E ele tem uma missão — sua música —, que é

nada menos que uma paixão arrebatadora. Sob certos aspectos,

diz Murray, Nathaniel seria considerado um caso bem-sucedido

na Lamp.

Só que, naturalmente, ele é mais do que um pouquinho louco

na definição popular. Deve haver alguma coisa que elas possam

fazer por ele. Não é?

Quando Nathaniel acaba de tocar, Murray e Lopez o cumprimentam,

e ele responde com um Ora, bobagem, visivelmente

deliciado com a glória do seu crescente fã-clube. Mas quando

elas lhe dizem para passar na entidade se precisar de alguma coisa,

ele estremece, afirmando que isso não deverá acontecer.

Eu também estremeço, espantado. Por que não?

Ao partirem, Murray e Lopez dizem a Nathaniel para considerar

essa opção.

Esperem um pouco. É só isso?

Não tenho certeza do que eu estava esperando, mas era algo

mais concreto do que uma sugestão casual de que Nathaniel passasse

na Lamp se por acaso estivesse ali perto. Acho que as imaginei

levando-o imediatamente para um lugar onde ele receberia

algum tipo de remédio e dormiria sob um teto enquanto fazia a

transição para uma vida nova e mais produtiva. Evidentemente,

sei que esse processo não ocorre da noite para o dia, mas então

não é um motivo a mais para começá-lo o quanto antes?

Murray e Lopez me dizem que mandarão uma pessoa ali de

vez em quando, para tentar convencer Nathaniel a ir buscar ajuda.

Mas se já levou tanto tempo até Nathaniel se sentir à vontade

comigo, de quanto tempo outra pessoa precisará?

Depois que as emissárias da entidade vão embora, sinto-me

abandonado e sozinho, e Nathaniel não está contribuindo em

nada para melhorar o meu ânimo.

— Eu não vou até lá — diz ele de forma decidida e desafiadora.

— Mas elas só estão tentando ajudar — digo-lhe.

— É, eu entendo, mas não preciso de ajuda.

— É só um lugar para comer um sanduíche e tomar um banho.

Shannon e Patricia pareciam bastante simpáticas, não é?

— É, mas eu não preciso de todas as amolações que teria de

enfrentar se fosse até lá, com toda aquela besteira. Aqui não é

Cleveland, Ohio. É uma cidade de Beethoven que não tem toda

aquela neve e gelo. Los Angeles Times. Roman Gabriel. Jackie

Robinson. Eu gosto daqui, dos túneis, onde posso tocar o dia

inteiro e ninguém vai me aborrecer.

Em todos os meus anos de colunista, nunca topei com consequências

involuntárias dessa magnitude. Estou numa esquina

discutindo com um esquizofrênico paranoide e, como não sei

mais o que dizer, me despeço.

— Hum… sr. Lopez? — chama-me Nathaniel. — Acha que o

violoncelo e os violinos ainda vão chegar?

Uma coluna de jornal é a ocupação perfeita para um homem

impaciente com baixa capacidade de concentração. Há pouco

tempo para ruminar as coisas. Pega-se um assunto e pronto,

passa-se ao próximo como um motorista que bate e foge. Mas

Nathaniel me atraiu para um beco sem saída. Por sorte, a impaciência

não é o meu único defeito. Também sou teimoso. Então

ele pensa que vai descartar a Lamp, depois que Murray e Lopez

tiveram a gentileza de ir oferecer-lhe ajuda? Vamos ver…

Quando chego de volta ao trabalho, ligo para Patricia Lopez e

pergunto se ela quer aderir ao meu planinho ardiloso. Quando

os instrumentos chegarem, direi a Nathaniel que eles serão todos

dele, mas terão de ficar guardados na entidade. Direi que os

doadores e eu queremos ter certeza de que tanto os instrumentos

quanto Nathaniel estão em segurança. Imagino que ele fará

o que for necessário para pôr as mãos nos instrumentos novos,

e as suas visitas à Lamp por fim o deixarão receptivo à ideia de

participar dos seus programas de tratamento e moradia.

Patricia Lopez topou. Ela diz que arranjarão um lugar para

guardar os instrumentos e ele poderá tocar à vontade dentro da

propriedade da Lamp, mas não fora dali.

É simples. É subversivo. É engenhoso.