Trecho do livro “O Solista”
P a r t e Um
1
Não consigo tirar da cabeça a imagem, aquela estranha figura
de um refinamento desbotado. Mas, quando volto à praça
Pershing para procurar o violinista, não o encontro. O seu desaparecimento
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apenas torna o mistério mais instigante.
Quem era ele? Para onde foi? Qual é a sua história?
Três semanas depois, ele está de volta, reapareceu no mesmo lugar,
e eu o observo por algum tempo do outro lado da rua, antes de
me aproximar. Sua execução é um pouco áspera e hesitante, mas,
assim como da vez anterior, fica claro que não se trata de um iniciante.
Ali houve estudo sério, em algum momento da vida. Ele não
dá a impressão de estar tocando por dinheiro, o que parece estranho
para um sem-teto. Toca como se fosse um estudante, alheio a
todos à sua volta, compenetrado como se fosse uma aula prática.
Lugar estranho para tocar. O chão treme quando os ônibus
passam, e mal se ouvem as suas cordas em meio àquela orquestra
de buzinas, caminhões e sirenes. Contemplo o alto dos prédios
adornado com gárgulas e cornijas enormes. Homens e mulheres
passam apressados, a maioria sem prestar atenção alguma ao
músico enquanto desaparecem nas esquinas ou pelas entradas
de edifícios. O homem continua tocando, é um violinista solitário.
Ele joga a cabeça para trás, fecha os olhos, deixa-se levar.
Uma imagem de glória atormentada.
Quando ele faz uma pausa, eu me aproximo.
— Olá — cumprimento.
Ele recua estremecendo, alarmado como da vez anterior.
— Lembra-se de mim? — pergunto.
— Lembro da sua voz.
Ele ainda desconfia de mim, desconfia de tudo à sua volta, ao
que parece. Diz que estava tentando lembrar-se de uma peça de
Tchaikovsky que sabia muito bem, mas que agora é tão esquiva
quanto o significado de um sonho. É óbvio que ele sofre de algum
tipo de perturbação, como tantos outros que vagam pelas ruas
como se fossem habitantes de um planeta diferente do nosso, envoltos
em muitas camadas de roupa para impedir que sejam desvendados.
Está usando um suéter azul surrado com uma camiseta
marrom-clara por cima, e a gola de uma camisa aparecendo. Enrolada
no pescoço, como um cachecol, está uma toalha felpuda amarela.
A calça, de um tamanho três números acima do seu, fica caindo
abaixo da cintura, e os tênis brancos imundos não têm cadarços.
Ele me conta que o seu nome é Nathaniel Anthony Ayers. Que
é de Cleveland. Que vai continuar praticando até conseguir se
orgulhar do que ouve. E eu lhe digo que gostaria de escrever a
seu respeito para o L.A. Times.
— Sério? — pergunta ele. — Quer mesmo escrever sobre mim?
— Por que não? — contesto.
Ele é um sujeito bonito, magro e em boa forma física, com
o queixo forte, os dentes brancos e limpos. Lembra um pouco
Miles Davis. Pergunto onde mora, e ele diz que é na Midnight
Mission, um dos maiores abrigos das redondezas, no bairro de
Skid Row. Não lá dentro, detalha ele, mas na rua, embora tome
banho e faça algumas refeições lá.
— Por que você não dorme lá dentro?
— Ah, não — diz ele. — Eu não ia querer fazer isso.
Fico pensando na segurança de um homem que tenta restabelecer
contato com Tchaikovsky enquanto traficantes, prostitutas
e vigaristas fazem seus negócios em ruas apinhadas de aleijados e
miseráveis. Skid Row é um monturo onde vão parar os criminosos
soltos da prisão municipal vizinha e onde as sirenes nunca
param de soar.
— Talvez eu vá visitá-lo no abrigo — digo-lhe.
Ele faz que sim com a cabeça, mas posso ver que não acredita
em mim. Enfia o violino de novo sob o queixo, ansioso por voltar
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O SOLISTA
13
à sua música, e eu entendo que, se sair algum resultado daí, vai
levar tempo. Terei de voltar a falar com ele de vez em quando,
até que se sinta suficientemente à vontade para se abrir. Talvez
eu possa acompanhá-lo nas suas andanças durante alguns dias,
ver se alguém pode ajudar a preencher as lacunas no seu passado
ou explicar a sua situação. Quando ele começa a tocar, aceno um
adeus e ele responde com um rápido olhar desconfiado para o
meu lado.
Duas semanas depois, vou procurá-lo outra vez, e ele desapareceu
de novo. Caminho até o abrigo, entre as ruas Fourth
e Los Angeles, onde vejo dúzias de moradores de rua, alguns
acabados pelas drogas, alguns loucos delirantes, alguns deitados
tão imóveis na calçada que é difícil dizer se estão cochilando ou
esperando o transporte para o necrotério.
Converso com Orlando Ward, do setor de informações na
Midnight Mission. Ele diz que já viu o violinista por lá, mas não
conhece seus antecedentes. E não o tem visto ultimamente.
Agora fico preocupado por ter perdido a oportunidade de escrever
uma coluna sobre ele.
Semanas se passam e eu acabo me distraindo com outras coisas,
enfiando tudo que consigo arranjar naquele espaço vazio na
página. E então, um dia, enquanto dirijo até o trabalho, vindo
da minha casa em Silver Lake, um bairro oito quilômetros a
noroeste do centro, atravesso o túnel da Second Street e lá está
ele, apresentando um concerto solo em um local ainda mais barulhento
do que o anterior.
Dessa vez, ele se lembra de mim.
— Por onde você tem andado? — pergunto.
Ele diz que andou por aí, esteve aqui e ali. Nenhum lugar em
especial.
Um carro passa disparado e a mente dele rodopia.
— Carro azul, carro verde, carro branco — diz ele. — Ali vai
um carro da polícia, e Deus está do outro lado daquele muro.
Assinto, sem saber o que dizer. Talvez ele seja um pouco mais
inacessível do que eu imaginara. Será que faço anotações para
uma coluna, ou dou alguns telefonemas para ver se alguém pode
vir ajudá-lo?
— Ali vai Jacqueline du Pré — diz Nathaniel, apontando uma
mulher um quarteirão adiante. — Ela é mesmo maravilhosa.
Eu digo que não acredito que seja a violoncelista, falecida em
1987.
Nathaniel diz que não tem muita certeza.
— Não sei como Deus age — diz ele sinceramente, com uma
expressão que indica que tudo é possível.
Anoto isso apressadamente no meu bloco e também copio o
que ele escreveu no carrinho de compras com um marcador de
texto.
“Little Walt Disney Concert Hall — Beethoven.”
Pergunto a Nathaniel se ele se mudou para este lugar a fim de
ficar perto da sala de espetáculo, e ele diz que não, nem mesmo
sabe exatamente onde fica o Disney Hall.
— É por aqui? — pergunta ele.
— Logo ali, no alto da colina. O grande prédio prateado que
parece uma escuna.
— Ah, é isso?
O violinista diz que se mudou para este local porque dava para
ver o edifício Los Angeles Times dois quarteirões adiante.
— Não trabalha ali? — pergunta ele.
Depois de viver em Cleveland, Nova York e Los Angeles, diz
Nathaniel, é tranquilizador poder olhar para o edifício L.A. Times
e saber onde está.
Ele toca um pouco; conversamos brevemente, uma experiência
que é como entrar num sonho. Nathaniel toma rumos
absurdos, indo e vindo entre assuntos desconexos. Deus,
Cleveland Browns, os mistérios da viagem aérea e a glória de
Beethoven. Continua voltando à música. O propósito da sua
vida, ao que parece, é organizar as notas que estão espalhadas
na sua cabeça.
Reparo pela primeira vez que seu violino, com crostas de sujeira
e uma substância branca como giz que parece um fungo,
está sem uma ou duas peças importantes.
— O seu violino só tem duas cordas — digo. — Faltam as outras
duas.
Sim, diz ele. Sabe disso perfeitamente.
— Tudo o que eu quero é tocar, e a crise que estou sofrendo
está bem aqui. Esta sumiu — diz ele sobre a corda superior que
falta —, essa outra sumiu, e essa sobrevivente aqui está quase
imprestável.
O seu objetivo na vida, Nathaniel me conta, é descobrir como
repor as cordas. Mas ele se acostumou a tocar instrumentos defeituosos
quando tinha aulas de música nas escolas públicas de
Cleveland, e pode-se fazer muito, me garante, com apenas duas
cordas.
Enquanto converso com ele, reparo que alguém rabiscou nomes
na calçada em que estamos. Nathaniel diz que fez isso com
uma pedra. A lista contém Babe Ruth, Susan, Nancy, Kevin e
Craig.
— De quem são esses nomes? — pergunto.
Ah, essas pessoas, diz ele.
— Esses eram os meus colegas na Juilliard.
2
Volto quase correndo para o edifício do Los Angeles Times, um
ponto de referência no centro da cidade que ocupa a maior parte de
um quarteirão, na diagonal da Prefeitura. Essa tem sido minha base
há quase quatro anos, o lugar onde tenho suado para escrever centenas
de colunas para o caderno da Califórnia. Este é o meu sétimo
jornal, em uma carreira de trinta anos que incluiu um período de
quatro na revista Time. Apesar de não ter passado muito da casa dos
cinquenta, há dias, para ser sincero, em que me pergunto quantos
anos ainda me restam. Vontade não é problema. A questão é se os
jornais ainda terão importância numa época em que os leitores estão
migrando em massa para a internet e o nosso grupo mais sólido
de assinantes está desaparecendo aos poucos, com a diminuição
das redações de jornal no mesmo ritmo.
O antídoto para tal incerteza e relutância é, obviamente, uma
boa história. Quando se está na caçada, a adrenalina dispara, os
minutos parecem segundos e, nessa fixação obstinada, a pessoa
vira praticamente um zumbi, alheia a tudo ao redor e incapaz de
fazer qualquer coisa além de conferir a matéria. Entro esbaforido
pelos fundos do cinzento edifício do Times, pensando o tempo
todo que a Juilliard, em Manhattan, é uma das mais conceituadas
escolas de música do mundo e, se Nathaniel realmente estudou
lá, com um pouco mais de pesquisa arranjo uma boa coluna.
Apesar de já ter escrito milhares de reportagens numa carreira
que incluiu passagens por The Philadelphia Inquirer, Oakland
Tribune e San Jose Mercury News, ainda me atiro sobre cada uma
como um garoto numa caça aos ovos de Páscoa, como se achasse
que nunca mais viria a topar com outra.
Uma das grandes alegrias do meu trabalho é a possibilidade de
colocar políticos na berlinda. Também adoro expor as futilidades
dos ricos e famosos, e distribuir chicotadas públicas a empresários
pilantras e tolos pretensiosos que merecem no mínimo isso,
mas nada satisfaz tanto quanto descobrir a história que se acha
bem à sua frente, tão óbvia que é praticamente invisível. Um
mendigo com um violino, vivendo de um carrinho de mercado e
idolatrando uma estátua de Beethoven, vem a ser um ex-aluno
da Juilliard. Meu encontro casual confirmara uma regra de ouro
no jornalismo: todo mundo tem uma história, portanto saia da
sala de redação e converse com as pessoas. Nunca se sabe o que
se pode descobrir.
Minha mesa fica no terceiro andar da redação. Jornalistas engraçadinhos
e piadistas chamam a área de Baja Metro, porque fica
ao sul da seção principal da editoria “Cidade”. O cumprimento
típico entre os colegas jornalistas é um resmungo ou um “Oi”,
não mais que isso, e eu solto alguns antes de afundar na minha
cadeira e jogar o meu notebook sobre a pilha de entulho com que
convivo. Pesquiso sobre a Juilliard no Google, mas não há uma
lista de ex-alunos no seu site. Ligo para lá, deixo uma mensagem
para alguém de relações públicas e também envio a pergunta por
e-mail. Já é tarde em Nova York e ninguém na Juilliard parece
disposto a deixar tudo de lado e averiguar a minha indagação.
Faço nova tentativa por telefone e por fim consigo uma resposta,
mas não é a que estou esperando.
Sinto muito. Parece não haver nenhum registro de um aluno
com o nome de Nathaniel Anthony Ayers.
Que diabo. Lá se vai um bom gancho. Se o pobre coitado está
delirando assim, ele está ainda mais doente do que pensei. Será
demência? Transtorno bipolar? Não sou médico, mas posso diagnosticar
o leve receio que me toma, acompanhado de um frio no
estômago. Esses são os sintomas de um colunista sem coluna.
Felizmente, não estou escalado para escrever hoje, e sem dúvida
vai aparecer alguma coisa até a próxima entrega de matéria.
Sempre aparece alguma coisa.
Pego o bloco de papel ofício amarelo, mas a minha lista de
ideias para a coluna parece requentada, sem uma única aposta
certa no grupo. Talvez seja porque não consigo tirar Nathaniel
da cabeça. Não sou um mau conhecedor das pessoas, habilidade
adquirida com muita leitura, e ele dava a impressão de ser um
cara honesto, carismático e convincente à sua maneira, subindo
ao palco todo dia no seu Little Walt Disney Concert Hall. Com
ou sem Juilliard, ele ainda me intrigava, e sua decisão de passar
da estátua de Beethoven para o túnel me parecia estranha. Com
muito menos pedestres ali, ele não arranjaria muito dinheiro e
nunca reporia as duas cordas perdidas.
Espera aí.
Será que ele passou para o túnel para ficar mais perto de mim?
No dia seguinte, alguém da Juilliard liga para dizer que houve
um engano. Sim, verificou-se que de fato já houve um estudante
com o nome de Nathaniel Anthony Ayers. Não há outras informações
disponíveis, nem mesmo os anos em que ali estudou.
Mas ele está incluído na relação de ex-alunos.
Desligo o telefone e fico de pé junto à minha mesa, procurando
alguém com quem partilhar a notícia. Conto a Jim Rainey, o repórter
mais próximo, que o cara frequentou a Juilliard. Encontrei
esse cara tocando um violino escangalhado e sebento, cheio de
manchas e rabiscos, ele me diz que frequentou a Juilliard e isso
bate. Pode acreditar nisso? Ele está lá agora, riscando na calçada
os nomes dos seus colegas.
— Parece que pode dar uma boa história — diz Rainey, um
mestre da inexpressividade calculada.
Chego à conclusão de que a história é boa demais para agir
com precipitação, de modo que, nas semanas seguintes, empurro
algumas colunas mais fáceis para publicação enquanto levanto
mais detalhes sobre a vida de Nathaniel. Depois de me encontrar
com ele mais algumas vezes, ele já não recua quando me aproximo;
fica cada vez mais receptivo.
— Ah, sr. Lopez — diz ele —, como vai hoje?
Aprendo que existe uma regra inegociável com Nathaniel. Enquanto
está tocando, ele é um artista em ação e não gosta de
ser interrompido, um erro que sempre provoca um olhar de desprezo.
Às vezes, enquanto espero por uma pausa dele, faço um
inventário dos objetos atulhados no carrinho de mercado. É nada
menos do que uma obra de arte e hábil engenharia, com um número
espantoso de coisas precisamente arrumadas. Cobertores,
um saco de dormir, roupas, dois bastões de quase um metro, uma
lona azul, uma pistola d’água do tamanho de um revólver pequeno,
uma calota de automóvel, um pé de bota preta. Baldes de
vinte litros pendem do carrinho como alforjes, e flores artificiais
presas no alto da pilha dão um efeito de “lar doce lar”. No estojo
aberto do violino, que Nathaniel deixa sobre o carrinho enquanto
toca, vejo um pequeno saco de papel branco e vazio, com os dizeres
“Studio City Music”.
— Um negro? — pergunta Hans Benning, proprietário do
Studio City Music, quando eu telefono. — Conhecemos, sim,
um cara que toca um violino bastante castigado. Ele vem aqui
de vez em quando. É muito afável, muito tranquilo e muito decente.
É um encanto… Fala sobre as sonatas de Beethoven, e em
seguida escapa de novo para um outro mundo.
É ele mesmo.
Seja o que for que Nathaniel esteja tocando na esquina da
Second com a Hill, pode ser deslumbrante ou horrível. Mas não
esqueçamos que ele está com duas cordas a menos. Tenho um
bom ouvido para tom, mas não sou músico, e vários anos de
aulas de violão anos atrás não me adiantaram muito. Desejaria
agora conhecer alguma coisa de música clássica para poder avaliar
melhor o trabalho de Nathaniel. Mas a música que eu adoro
e conheço um pouco é o jazz. Assim, só posso fazer que sim com
a cabeça, calado mas com admiração, quando ele responde a uma
das minhas perguntas.
— Essa foi uma ideia que tirei de Ernest Bloch — conta ele.
— B-L-O-C-H. Compositor nascido na Suíça que foi diretor do
Instituto de Música de Cleveland.
Quando lhe digo como fico impressionado pelo fato de ele ter
estudado na Juilliard, Nathaniel se enche de modéstia.
— Fiquei lá uns poucos anos.
Mas só uma percentagem mínima dos maiores violinistas do
mundo poderia ter esperança de entrar para a Juilliard, digo eu,
portanto ele devia ter um talento excepcional.
— Ah, eu não tocava violino — diz ele. — Eu tocava contrabaixo.
— Então onde você aprendeu a tocar violino?
— Eu não sei tocar violino — diz ele. — Tenho tentado aprender
sozinho, mas é difícil transpor a música do contrabaixo para
o violino. Ajudaria se eu tivesse algumas partituras, mas não sei
como arranjar.
Pouco depois de sair da Juilliard, Nathaniel tentou o violoncelo
e adorou, conta ele, mas o violino era mais fácil de levar
para cima e para baixo em um carrinho de mercado. Não há
como continuar tocando um contrabaixo grande e vertical, diz
ele, quando se vive na rua. Mas ele ainda guarda na cabeça
Saint-Saëns, Mozart, Brahms, Dvořák, Haydn e Beethoven, por
isso tenta tocar um pouco das composições deles no violino
de duas cordas que afirma ter comprado, há muitos anos, na
Motter’s Music House, em Cleveland.
Ligo para a Motter’s, e Ron Guzzo, um dos gerentes, se lembra
da compra. Guzzo conta que o violino foi um dos muitos instrumentos
que Nathaniel comprou dele ao longo de um período
de quase vinte anos. Ele voltava para comprar novos instrumentos
porque os outros lhe eram roubados nas ruas de Cleveland.
Nathaniel arranjava um serviço de tirar neve das ruas, conta
Guzzo, ou um trabalho na lanchonete Wendy’s, até economizar
o suficiente para comprar outro instrumento.
— Pelo que sei, ele estava na Juilliard e ficou doente, por isso
voltou para casa — diz Guzzo sobre Nathaniel, conhecido por ele
como Anthony, o seu segundo nome, ou Tony.
O pessoal da Motter’s sempre se espantava com a facilidade
com que Nathaniel passava de um instrumento para outro.
— Ele sentava no nosso estacionamento num dia bonito, tocava
violoncelo, e nós ficávamos nos perguntando de onde vinha
aquilo. Era o Tony.
A doença na Juilliard era um assunto que eu não sabia como
abordar com Nathaniel, nem se devia fazê-lo. Seria demasiadamente
pessoal? Iria perturbá-lo? Posso confiar na resposta de
um homem que tem problemas mentais? Mas preciso saber mais
para a minha coluna, então pergunto se era verdade que ele deixou
a Juilliard antes de terminar os estudos.
— Ah, sim, caí fora de lá — diz ele.
— O que aconteceu?
— Nem me lembro mais, já faz tanto tempo.
Pergunto se ele tem parentes com quem eu possa conversar,
e Nathaniel recita o número decorado do telefone de seus tios
Howard e Willa, em Cleveland. Eles me dizem para falar com
Jennifer, a irmã mais nova de Nathaniel, que é assistente social
em Atlanta, e a voz dela manifesta alívio quando lhe digo que
conheci o seu irmão.
— Ele está bem? —pergunta ela com uma voz trêmula, acrescentando
que há anos ninguém tem notícias dele.
Era o segundo semestre de 1972, o terceiro ano de Nathaniel
na Juilliard, e ele vinha sendo atormentado por meses de confusão,
ansiedade e alucinações. Certa noite, no apartamento
de um colega da Juilliard e de sua noiva, no Upper East Side,
Nathaniel começou a tirar a roupa sem nenhum motivo aparente.
Alarmados com esse comportamento bizarro, o colega e
a noiva não conseguiram fazer com que Nathaniel parasse de
se despir. Ele não estava zangado nem agressivo, mas parecia
estar tendo um acesso inexplicável, e, à medida que se tornava
mais distante, seus amigos ficaram ainda mais assustados e
preocupados. Sem saber o que fazer, o colega chamou a polícia
e Nathaniel, com 21 anos de idade, foi transportado para a sala
de emergência psiquiátrica do Hospital Bellevue. O diagnóstico
foi esquizofrenia paranoide, e a sua vida, tal como ele a levara
até então, estava terminada. Assim também as suas esperanças
de uma carreira como músico.
Sem poder fazer nada, durante anos Jennifer viu o irmão mais
velho, o artista inteligente e de fala mansa, ser levado de um
tratamento a outro em Cleveland, experimentando remédios, terapia
e eletrochoques, nenhum deles com resultado duradouro.
O rapaz sempre bem-arrumado virou um caco maltrapilho que
perambulava pelas ruas com instrumentos musicais, dormia no
mato e gravava nomes nas árvores. Era incoerente, zangado e
sujeito a surtos violentos que magoaram sua mãe milhares de
vezes. Floria, que tinha um salão de beleza em Cleveland, cozinhava
para ele, arrumava a casa para ele, cobria-o de amor e
continuava a lhe dar mais uma chance, e em troca Nathaniel
destruiu a mobília, quebrou as lâmpadas e danificou as paredes
com desenhos sem sentido. No entanto, apesar dos desmandos,
Nathaniel adorava a mãe e sentiu-se totalmente perdido quando
ela morreu em 2000, após uma longa doença.
E então ele seguiu para o Oeste, à procura do pai que abandonara
a família quando Nathaniel tinha apenas nove ou dez anos.
Mas havia tantos anos que eles perderam contato que Nathaniel
não sabia que o pai, um motorista de caminhão de lixo aposentado
de Los Angeles, já se instalara em uma comunidade de idosos
em Las Vegas. Nathaniel ficou por pouco tempo na garagem da
filha de um segundo casamento de seu pai; depois decidiu que
queria viver por conta própria no centro de Los Angeles. Por vários
anos ele perambulou pelas ruas até que, naquele dia na praça
Pershing, os nossos caminhos se cruzaram pela primeira vez.
Um jato sobrevoa o centro de Los Angeles, fazendo a grande
curva antes de voltar na descida até o aeroporto da cidade.
Nathaniel olha fixamente para cima, como uma criança, depois
se vira para mim, com uma sobrancelha erguida, e pergunta se
estou pilotando o avião.
É um momento desalentador que oferece um vislumbre do
delírio com que ele convive. Pergunto-me se devia responder,
mas não o faço. Pergunto-me se devia ficar com medo, mas não
estou. Estou curioso demais para ficar com medo e gostaria
de saber mais sobre como um garoto negro criado na década de
1960 — quando o movimento pelos direitos civis e a guerra do
Vietnã dividiam o país, e cidades como Cleveland estavam em
pé de guerra — superou as dificuldades e acabou no curso de
música clássica da Juilliard. Era um menino-prodígio? A mãe
e o pai eram músicos ou admiradores que enchiam a casa com
os sons de Beethoven e Ernest Bloch, B-L-O-C-H? Não fosse o
colapso nervoso, Nathaniel estaria no alto da colina, de smoking,
tocando com a Filarmônica de Los Angeles, em vez de estar se
virando como pode aqui embaixo, no seu Little Walt Disney
Concert Hall?
Não posso deixar de pensar na dor de sua família, e me pergunto
se, no começo da sua vida, houve sinais de que poderia haver
algo errado com ele. Ou a loucura se manifesta numa pessoa
de forma aleatória e sem aviso? Talvez esperar que eu consiga
arrancar isso dele seja querer demais. Quem sou eu, afinal, para
tornar minha a sua história?
Uma pessoa com prazos, eu lembro a mim mesmo. Uma pessoa
que reconhece uma boa história quando se depara com ela.
Uma pessoa que imagina um leitor fazendo uma pausa na história
da queda sofrida por Nathaniel, da sua elevada aspiração, e
dizendo: “Assim seria comigo, não fosse a graça de Deus.”
Bem, me informa Nathaniel, havia Joseph Russo. Ele era um
bom amigo. E Joseph Bongiorno era outro contrabaixista na
Juilliard. B-O-N-G-I-O-R-N-O. Pergunto-lhe se sabe se eles ou
algum dos outros colegas continuaram na música.
Ele perdeu o contato e não sabe onde foram parar, conta ele.
Mas “um garoto chamado Yo-Yo Ma” tem se saído muito bem.
— Você conheceu Yo-Yo Ma?
Na verdade, não, diz Nathaniel. Mesmo naquela época, o violoncelista
estava numa classe diferente.
— Mas nós tocamos na mesma orquestra — diz Nathaniel. —
Eu admirava muito o rapaz.
Ele me conta que o seu professor de contrabaixo foi Homer M-EN-
S-C-H, que, com mais de 90 anos, ainda ensinava na Juilliard.
— Ele tinha talento, não resta dúvida — diz Mensch sobre
Nathaniel, perguntando o que aconteceu com o garoto de
Cleveland.
Conto a ele que Nathaniel vive em Skid Row e toca um violino
sem duas das cordas, e fica um silêncio no outro lado da linha.
— Transmita a ele os meus melhores votos — diz Mensch. —
Eu gostaria muitíssimo de ter notícias dele.
Se eu quiser falar com o homem que melhor o conhece, diz
Nathaniel, devo ligar para Harry Barnoff. Em Cleveland. É B-AR-
N-O-F-F.
— Vou tentar descobrir o número — digo-lhe.
Com o dedo indicador, ele escreve o número de dez algarismos
no seu quadro-negro imaginário.
— Você telefona com frequência para ele? — pergunto.
— Faz anos que não falo com ele.
Ligo do meu trabalho para o número e uma mulher atende.
— É da residência de Harry Barnoff? — pergunto.
— Sim — responde ela. — É a filha dele quem fala.
Harry Barnoff havia se aposentado recentemente, depois de
tocar contrabaixo durante 46 anos na Orquestra de Cleveland.
Nathaniel foi encaminhado a ele quando era adolescente, e
Barnoff foi seu professor e amigo durante muitos anos. Quando
descrevo a situação atual de Nathaniel, Barnoff fica tão abalado
que começa a chorar.
— Por favor — pede o músico, aliviado por saber que Nathaniel
está vivo, mesmo que em circunstâncias não muito boas —, o
senhor precisa lhe dizer o quanto penso nele e que ainda me
lembro de como ele era um excelente músico.
Nem sempre Nathaniel era o melhor aluno, relembra Barnoff,
que foi seu professor particular na Cleveland Music School Settlement,
uma instituição sem fins lucrativos do Círculo da Universidade
de Cleveland. Nathaniel era relaxado nos exercícios e tinha
dificuldade para se concentrar, segundo Barnoff, que acha que talvez
ele fosse talentoso demais para o seu próprio bem. Barnoff nunca
vira um aluno passar meses sem praticar, como às vezes Nathaniel
fazia, e depois pegar um instrumento e tirar um som tão bom.
— Você tem mesmo alguma coisa — dizia ele a Nathaniel, insistindo
com ele para respeitar e desenvolver o seu dom.
Essa combinação de elogio e confiança atraiu a atenção de
Nathaniel. Ainda na adolescência, Nathaniel declarou, meio
com arrogância, meio com admiração, que queria ser como o sr.
Barnoff e tocar numa orquestra importante. Barnoff relutava em
animá-lo para uma decepção. Sem dúvida, disse ele a Nathaniel,
você tem talento, mas é preciso mais do que isso.
— Você tem de fazer da música a sua vida. Você tem de praticar,
praticar, praticar.
No seu próprio caso, Barnoff disse a Nathaniel, ele se empenhara
bastante para conseguir entrar para essa escola de elite em
Nova York, chamada Juilliard.
— Também quero ir para a Juilliard — disse Nathaniel a
Barnoff.
Barnoff recorda que, enquanto Cleveland estava explodindo,
com a polícia de choque arrastando os manifestantes, incêndios
proliferando e carros sendo virados, Nathaniel estava frequentemente
no seu refúgio na instituição. O rapaz havia sofrido
uma mudança. Estava mais maduro e menos inquieto e, depois
do ensino médio, ganhou uma bolsa para o curso de música da
Universidade de Ohio. Barnoff ficou felicíssimo por seu protegido,
mas Nathaniel estava ainda em busca de um prêmio maior.
No meio do seu primeiro ano na Universidade de Ohio, ele voou
até a Juilliard para uma audição.
— Soube em seguida — diz Barnoff com voz trêmula —: ele
tinha ganhado uma bolsa de estudos.
Dou a Nathaniel duas cordas de violino novas, da Studio Music
Center, e ele as experimenta tocando Mendelssohn, Brahms e
Beethoven.
— Não sei como lhe agradecer — diz ele. — Aqui é um sonho
perfeito, e eu noto que todos estão sorrindo. O sol brilha o dia
inteiro, e as noites são frescas e serenas.
Acompanho com paciência enquanto ele coloca as cordas no
violino e tagarela amigavelmente, animado por tocar um instrumento
devidamente equipado. No alto da colina, o Disney Hall
é um grande navio atracado, com velas de mercúrio, uma visão
cintilante na linha do horizonte. Aqui embaixo, carros cruzam
em disparada o túnel da Second Street, caminhões passam com
estrondo, sirenes ressoam, e Nathaniel começa a tocar, abrindo
caminho através da loucura. Seus olhos estão fechados e no seu
mundo vedado existe ordem, lógica, sanidade, doce alívio. Ainda
que por um breve momento.
3
O jornal de domingo atinge a entrada da minha casa com um
ruído surdo que abre um olho, paga a hipoteca e coloca em jogo
trinta anos de trabalho. As colunas da semana anterior não existem,
desbancadas por um constante e frenético feixe de notícias
e informações que embaralham a história. Você vale apenas tanto
quanto a sua tentativa de estabelecer alguma ligação com o
mundo, e a história de Nathaniel tem um impacto diferente de
tudo o que eu escrevi antes. Enquanto leio um e-mail, outros
dois chegam, um fluxo contínuo que se estende pelo almoço e
depois pelo jantar, até o dia seguinte. Sei que é uma matéria
forte, e o título certeiro, dado pelo editor Saji Mathai, ajudou a
atrair atenção para ela:
ELE TEM O MUNDO EM DUAS CORDAS
Mas a reação supera as minhas expectativas e me faz pensar
sobre o que eu teria subestimado na matéria. A resposta está nas
reações. Os leitores veem a história de um homem, atordoado
por um golpe trinta anos atrás, que prossegue com coragem e
dignidade, com o espírito intacto. É simples assim, com uma falha.
O meu encontro casual e auspicioso com Nathaniel é visto
como a sua segunda chance. Estou a par deste ou daquele tratamento?
Conheço o novo tipo de medicamento antipsicótico
que poderia mudar a vida dele? Eu poderia fazer o favor de
publicar o meu endereço para que as pessoas pudessem enviar
cordas e instrumentos fora de uso, desenterrados de sótãos
empoeirados? Esquecido durante anos, Nathaniel tem agora
uma torcida. Quatro leitores se oferecem para empacotar e enviar
violinos para ele. Um fabricante se oferece para fazer um
instrumento novinho para ele. E um homem chamado Al Rich
envia o seguinte:
Steve,
Sou presidente do Pearl River Piano Group America Ltd. Somos
a divisão ocidental do Guanghou Pearl River Piano Group, o maior
fabricante de pianos e o segundo maior fabricante de instrumentos
musicais do mundo. Nossa filial americana fica em Ontário, na
Califórnia. Li esta manhã o seu artigo sobre o violinista de rua de
Los Angeles e, naturalmente, fiquei comovido com a matéria.
Rich diz que está enviando um violoncelo e um violino em
modelo para estudante por entrega rápida do correio, e, quando
acabo de ler todas essas ofertas, corro até a esquina da Second
com a Hill para contar as novidades.
— Ele vai enviar um violoncelo? — pergunta Nathaniel a respeito
do presidente do Pearl River, com o rosto franzido de dúvida.
Ele não leu a coluna e está tendo dificuldade para compreender
a sua repentina virada de sorte.
— Um violoncelo e um violino — confirmo —, e várias pessoas
também estão dizendo que enviarão violinos.
Nathaniel parece estar me examinando em busca de sinais de
que sou real e não uma ilusão cruel.
— As pessoas são incrivelmente generosas — diz ele, mas
sombras de dúvida lhe enchem os olhos e alguma coisa o está
preocupando. — Não tenho recursos para isso — diz, fazendo
sinal de não com a cabeça.
— Você não tem de pagar nada a elas — digo. — São pessoas
que leram no jornal a minha matéria a seu respeito e acham que
você parece um cara honesto. Elas não querem nada além da satisfação
de saber que ajudaram um colega músico.
Isso parece convencê-lo. Se são músicos, fazem parte de uma
confraria, e Nathaniel é obrigado a respeitar suas suscetibilidades.
— Como vão enviar os instrumentos para mim? — pergunta
ele, totalmente consciente de que está isolado das relações comuns,
vivendo sem endereço nem caixa postal.
— Vão enviá-los para mim e eu os trarei para você. Isso deve
acontecer lá pela semana que vem.
Ele assente, mas posso ver que não confia em mim. E por que
deveria confiar? De repente, um colunista meio careca e de barba
grisalha cai de paraquedas na sua vida, prometendo instrumentos
de graça em quantidade suficiente para ele montar a sua própria
orquestra de câmara. Desconfiança, para não dizer paranoia,
é uma reação inteiramente lógica.
Nos dias seguintes, pelas oito ou nove da manhã, Nathaniel se
instala perto do túnel, descarregando meticulosamente o carrinho
na calçada do tamanho de um pátio que lhe serve de palco.
Mas a sua primeira tarefa é catar compulsivamente todo fragmento
de sujeira, detrito e cigarro. Ele faz discursos contra a
linguagem obscena e o flagelo das drogas, mas as guimbas de cigarro
são uma obsessão, uma maldição, uma ameaça, e ele as recolhe
da calçada com as pontas dos dedos e as joga com nojo em
latas de lixo, como se coubesse a ele, sozinho, salvar o mundo da
disseminação da praga. De vez em quando, larga tudo e dispara
até a rua em busca de uma guimba que acaba de ser atirada de
um veículo em movimento, com o rosto liso contraído numa carranca
enquanto ataca os viciados em nicotina e sua fraqueza que
corrói os alicerces da sociedade civil. Sua corrida louca entre os
carros é um espetáculo, não só pelo perigo inerente, mas porque
ele às vezes se lança de um lado para o outro num roupão comprido
de veludo bordô, parecendo uma espécie de mago fantástico.
Outras vezes usa um saco de lixo preto sobre as costas, preso
em torno do pescoço com alfinetes de segurança, um guerreiro
de capa pela limpeza das ruas do centro de Los Angeles.
Com a aproximação da primavera, o sol nasce no leste de Los
Angeles e incide forte sobre o vão de concreto na entrada do
túnel, onde Nathaniel passou a apoiar dois cartazes de papelão,
anunciando os seus interesses musicais do momento.
“Bach e Brahms” — está escrito num deles.
“Oitava de Beethoven” — está escrito no outro.
Ele os pintou com tintura de cabelo preta. Ali perto, ele coloca
no chão uma revista japonesa, dizendo que é um tributo a Little
Tokyo, um pequenino bairro comercial a apenas alguns quarteirões
para leste. Lá todos se parecem com Yo-Yo Ma, me conta
ele.
— Já recebeu o violoncelo? — pergunta ele mais de uma vez,
com a expectativa de uma criança. — O violoncelo e os violinos?
Ainda não, Nathaniel. Estão para chegar.
Confie em mim.
Ele faz que sim com a cabeça, sem conseguir disfarçar a decepção
ou dúvida.
Se ele está com insetos na calça, ele me conta. Se acabou de
cavar um buraco no canteiro de hera para enterrar fezes humanas
de moradores do túnel que não tiveram a decência de usar
banheiros adequados, ele me conta. Na sua desinibição e despretensão
reconfortantes, Nathaniel solta qualquer coisa que lhe
passe pela cabeça. Não há filtros nem limite entre real e imaginário.
Uma simples pergunta sobre o seu amor por Beethoven o
lança num voo por pensamentos desordenados que flutuam pela
sua mente como nuvens impelidas pelo vento.
— Cleveland não tem a estátua de Beethoven. É uma cidade
voltada para o exército, ocupada, preocupada, com todas as
figuras militares da história americana, os grandes soldados e
generais, mas ninguém vê os músicos em exibição, apesar de
ter Severance Hall, Cleveland Music School Settlement, Bobcats
da Universidade de Ohio, Buckeyes do Estado de Ohio. Todos
os grandes soldados estão lá, vindos do exército dos Estados
Unidos, Segunda Guerra Mundial, guerra da Coreia, enquanto
em Los Angeles há o Departamento de Polícia de Los Angeles, a
Prisão do Condado de Los Angeles, o Los Angeles Times, o sr. Steve
Lopez. É um exército, não é? O L.A. Times? Los Angeles é inclinada
para baixo como um vale, montanhas de Santa Mônica, centro
de Los Angeles, Honolulu. Não vi o oceano em Los Angeles.
Imagina-se que haja um oceano, o Pacífico, mas não há lugar
para o oceano na área central. Você não vê estátuas de militares
como há em Cleveland, onde esses são os chefes da cidade e mantêm
o exército por toda a cidade com muitos cavalos. Cleveland
Browns, Los Angeles Rams, esses também são exércitos, arregimentação
militar, experimentação, com o sr. Roman Gabriel
como zagueiro, Roman, romanos, Império Romano, Coronel
Sanders, o sr. Roman Gabriel planejando uma jogada em seus
sonhos. Olhe. Lá vão todos os recebedores abertos rua abaixo.
Este sujeitinho aqui é o zagueiro da orquestra, este violino que
eu comprei alguns anos atrás na Motter’s Music, em Cleveland,
Ohio. Um violoncelo pode apoiar este sujeito com os mesmos
movimentos, mas o violoncelo não é o primeiro violino. Quem
vai à frente é este rapazinho aqui. Itzhak Perlman, Jascha Heifetz,
eles são como deuses para mim. Quem me dera ter esse talento
mas, mesmo se eu praticasse pelos próximos dez mil anos,
nunca conseguiria ser tão bom. Em Cleveland não se pode tocar
música no inverno por causa da neve e do gelo, e é por isso que
eu prefiro Los Angeles, a cidade de Beethoven, onde o sol brilha
e, se chover, você pode entrar no túnel e tocar à vontade. Aquela
estátua me deixa completamente abismado. Fico impressionado
que alguém tão importante quanto Beethoven seja o líder de Los
Angeles. Tem alguma ideia de quem o colocou ali?
Santo Deus. No que fui me meter?
Nathaniel solta esse e outros fluxos de pensamentos fragmentados
com o entusiasmo e a graça de um conversador fluente,
uma ênfase aqui, um sorriso ou gesto com a mão ali, e nem sombra
de consciência da natureza caótica da apresentação. Às vezes
eu o encontro em conversa empolgada com alguém que não está
ali, num papo fácil e animado com a parede, com uma árvore ou
com absolutamente nada. Não sei se ele está respondendo a vozes
ou apenas externando os seus pensamentos. Sei pouco sobre
a sua doença, como ela age, o que fazer ou a quem perguntar.
Em outras palavras, tenho um problema. Vários instrumentos
estão a caminho do meu trabalho e ainda nem pensei sobre
o que poderia fazer com eles quando chegarem. Nathaniel precisaria
enganchar um reboque no seu carrinho alaranjado para
arrastá-los de um lado para outro. Acho que vou lhe entregar o
violoncelo e talvez um dos violinos novos e conservar o restante
na redação. Mas há outro probleminha que nem sequer levei
em consideração e agora me está apavorando. Um homem que
vive nas ruas e dorme em um submundo perigoso e dominado
pelo crime, com viciados e ladrões à espreita, será um alvo bem
convidativo para agressão e roubo. Afinal, não dá para esconder
instrumentos no carrinho. Cogito guardar todos os instrumentos
no meu trabalho e dizer-lhe para passar lá quando quiser
tocar um deles, mas isso é impossível. Fico apenas metade do
expediente lá e, no tempo que estou, não tenho como bancar o
monitor de sala de música.
Sem saber, preparei uma armadilha para mim mesmo, e os
leitores não me deixam esquecer isso. Ainda chovem mensagens,
com simpatizantes querendo saber como vai Nathaniel e
quando eles poderão ler as novidades. A coluna é um ponto de
vista pessoal e, como tal, é menos imparcial do que um relato
direto de uma notícia. Mas, ao narrar o caso de Nathaniel, assumi
inadvertidamente certa responsabilidade pelo seu bem-estar,
uma tarefa para a qual clara, perceptível e indiscutivelmente não
estou habilitado. Pretendo, sem dúvida, contar as novidades do
caso. Mas não tenho intenção nenhuma de adotar um doente
mental de meia-idade e sem-teto. Tenho uma esposa, Alison, e
uma filha de dois anos, Caroline, e não consigo passar com elas
o tempo que gostaria, graças a uma agenda que, muitas vezes,
me faz chegar em casa depois que Caroline já foi dormir.
Menciono minha enrascada a um colega chamado Tom Curwen,
que havia sido editor assistente do caderno de livros do Times e
depois se tornou editor do caderno “Outdoors”. Ele conta que
outro dos nossos colegas reconheceu, entre os muitos mendigos
perto do edifício Times, um ex-companheiro de escola e ligou
para a Lamp Community, uma entidade no centro de Los Angeles
que atende doentes mentais sem-teto. O mendigo está agora indo
muito bem em seu tratamento.
Conheço vagamente a entidade, tendo uma vez me encontrado
com a ex-diretora, Mollie Lowery, que havia sido freira. Mas não
sei muito sobre o programa e não conheço as duas funcionárias
da Lamp que atendem ao meu pedido de ajuda e aparecem na esquina
da Second com a Hill para dar uma olhada em Nathaniel.
Ele está concentrado demais em sua música para notar a chegada
de Shannon Murray, a diretora assistente, e Patricia Lopez, administradora
do programa. Ficamos os três a alguns metros de
distância, assistindo ao concerto, e, quando ele faz uma pausa,
aproveito para apresentá-los. Nathaniel é afável e encantador. Ele
repete várias vezes os nomes de Murray e Lopez, decorando-os.
Parece ter a impressão de que Patricia Lopez é minha mulher.
Digo a Nathaniel que falei maravilhas sobre seu talento e que
Murray e Lopez atravessaram cerca de dez quarteirões para ver
por si mesmas. Ele dá de ombros timidamente, depois enfia o
violino sob o queixo, fecha-se ao barulho do tráfego e abandona
o mundo conhecido. Arranha um pouco as cordas, perseguindo
ideias que não se reúnem, mas então, como sempre, acha uma
passagem que atua como uma droga e a música o deixa livre de
qualquer distração. Olhos fechados, cabeça virada para o céu,
ele parte. Então, eu sussurro às duas visitantes: vocês acham que podem
ajudá-lo?
Murray demora para responder. Ela está observando Nathaniel
atentamente, como se estudasse um quadro cubista. Estou curioso para
conhecer os seus pensamentos, seu diagnóstico, seu
prognóstico, sua prescrição. Ela é jovem, talvez ainda não tenha
chegado aos quarenta, mas já tem vinte anos de experiência com
casos como esse.
Como sabe, diz ela, a Lamp procura realizar duas coisas, entre
muitas outras. Procura ajudar os assistidos a estabelecer relações
sociais em um ambiente propício e também sugerir uma
missão ou um objetivo, junto com um plano para alcançá-lo.
Ao que parece, Nathaniel já tem um defensor e conhecido confiável,
isto é, eu. E ele tem uma missão — sua música —, que é
nada menos que uma paixão arrebatadora. Sob certos aspectos,
diz Murray, Nathaniel seria considerado um caso bem-sucedido
na Lamp.
Só que, naturalmente, ele é mais do que um pouquinho louco
na definição popular. Deve haver alguma coisa que elas possam
fazer por ele. Não é?
Quando Nathaniel acaba de tocar, Murray e Lopez o cumprimentam,
e ele responde com um Ora, bobagem, visivelmente
deliciado com a glória do seu crescente fã-clube. Mas quando
elas lhe dizem para passar na entidade se precisar de alguma coisa,
ele estremece, afirmando que isso não deverá acontecer.
Eu também estremeço, espantado. Por que não?
Ao partirem, Murray e Lopez dizem a Nathaniel para considerar
essa opção.
Esperem um pouco. É só isso?
Não tenho certeza do que eu estava esperando, mas era algo
mais concreto do que uma sugestão casual de que Nathaniel passasse
na Lamp se por acaso estivesse ali perto. Acho que as imaginei
levando-o imediatamente para um lugar onde ele receberia
algum tipo de remédio e dormiria sob um teto enquanto fazia a
transição para uma vida nova e mais produtiva. Evidentemente,
sei que esse processo não ocorre da noite para o dia, mas então
não é um motivo a mais para começá-lo o quanto antes?
Murray e Lopez me dizem que mandarão uma pessoa ali de
vez em quando, para tentar convencer Nathaniel a ir buscar ajuda.
Mas se já levou tanto tempo até Nathaniel se sentir à vontade
comigo, de quanto tempo outra pessoa precisará?
Depois que as emissárias da entidade vão embora, sinto-me
abandonado e sozinho, e Nathaniel não está contribuindo em
nada para melhorar o meu ânimo.
— Eu não vou até lá — diz ele de forma decidida e desafiadora.
— Mas elas só estão tentando ajudar — digo-lhe.
— É, eu entendo, mas não preciso de ajuda.
— É só um lugar para comer um sanduíche e tomar um banho.
Shannon e Patricia pareciam bastante simpáticas, não é?
— É, mas eu não preciso de todas as amolações que teria de
enfrentar se fosse até lá, com toda aquela besteira. Aqui não é
Cleveland, Ohio. É uma cidade de Beethoven que não tem toda
aquela neve e gelo. Los Angeles Times. Roman Gabriel. Jackie
Robinson. Eu gosto daqui, dos túneis, onde posso tocar o dia
inteiro e ninguém vai me aborrecer.
Em todos os meus anos de colunista, nunca topei com consequências
involuntárias dessa magnitude. Estou numa esquina
discutindo com um esquizofrênico paranoide e, como não sei
mais o que dizer, me despeço.
— Hum… sr. Lopez? — chama-me Nathaniel. — Acha que o
violoncelo e os violinos ainda vão chegar?
Uma coluna de jornal é a ocupação perfeita para um homem
impaciente com baixa capacidade de concentração. Há pouco
tempo para ruminar as coisas. Pega-se um assunto e pronto,
passa-se ao próximo como um motorista que bate e foge. Mas
Nathaniel me atraiu para um beco sem saída. Por sorte, a impaciência
não é o meu único defeito. Também sou teimoso. Então
ele pensa que vai descartar a Lamp, depois que Murray e Lopez
tiveram a gentileza de ir oferecer-lhe ajuda? Vamos ver…
Quando chego de volta ao trabalho, ligo para Patricia Lopez e
pergunto se ela quer aderir ao meu planinho ardiloso. Quando
os instrumentos chegarem, direi a Nathaniel que eles serão todos
dele, mas terão de ficar guardados na entidade. Direi que os
doadores e eu queremos ter certeza de que tanto os instrumentos
quanto Nathaniel estão em segurança. Imagino que ele fará
o que for necessário para pôr as mãos nos instrumentos novos,
e as suas visitas à Lamp por fim o deixarão receptivo à ideia de
participar dos seus programas de tratamento e moradia.
Patricia Lopez topou. Ela diz que arranjarão um lugar para
guardar os instrumentos e ele poderá tocar à vontade dentro da
propriedade da Lamp, mas não fora dali.
É simples. É subversivo. É engenhoso.