Trocamos uma ideia com Emerson Osasco, símbolo dos protestos por democracia
Em entrevista à Catraca Livre, Emerson Osasco falou sobre sua formação política e importância dos protestos pela democracia
Na manhã do último 31 de maio, Emerson Márcio Vitalino saiu de sua casa em Osasco, região metropolitana de São Paulo, com destino à Avenida Paulista.
Naquele domingo se juntaria a um grupo de manifestantes, em sua maioria formado por integrantes da Gaviões da Fiel, principal organizada do Corinthians, com um objetivo: gritar por democracia.
Não voltaria para casa como saíra naquela manhã. Emerson Osasco, como é conhecido entre os amigos de arquibancada, tornou-se símbolo de luta. Mesmo sem encostar um dedo naqueles que o insultaram, cuspiram e o empurraram em meio ao clima acirrado que marcaram os protestos.
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Bastou apenas o punho cerrado, inspirado no movimento norte-americano dos Panteras Negras, para que seu gesto fosse eternizado nas páginas dos jornais da manhã seguinte.
Diferentemente dos últimos domingos quando a presença de Jair Bolsonaro, em meio a apoiadores, sobressaía no noticiário, o episódio que envolveu Emerson deu novo significado à agenda de manifestações contra o governo. Com bandeiras em nome da democracia, e lembrando que vidas negras importam, abriu caminho para um novo capítulo da política nacional.
De Luther King a George Floyd
Questionado sobre o impacto do caso George Floyd, Emerson afirmou crer em mudanças. Apesar disso, questiona o que foi feito para acabar com o racismo nas últimas cinco décadas. Mais precisamente entre 1968_ano do assassinato de Martin Luther King_até a morte de Floyd, no último dia 25 de maio. “A gente sempre acredita. Mas em um passado não muito distante Martin Luther King foi assassinado, motivando ondas de protestos contra a morte de negros e negras que aconteciam, praticamente, todos os dias. Mas o que de fato mudou ? Algumas coisas continuaram as mesmas. O racismo aumentou, mais negros morreram. Quantos Kings e Floyds foram perdidos nesse período ? Muitos, vários, incontáveis.”
Emerson compara os assassinatos nos EUA a episódios de violência policial que vitimou pessoas negras nos últimos anos no Brasil. Cita os casos de João Pedro, Evaldo Rosa, Ágatha Félix e Marielle Franco. “O que essas pessoas têm em comum ? São negras, de origem pobre e pouco é feito para evitar a impunidade dos casos. Até hoje suas famílias não receberam sequer uma nota de pesar.”
Caos na pandemia
A política de Bolsonaro para o combate à pandemia, ou a falta dela, está entre os motivos que levaram ele e outras milhares de pessoas a saírem de casa naquele domingo. Avalia, no entanto, que até aquele momento, muitos opositores sentiam medo de se manifestar por conta do clima acirrado entre os grupos. “Muitas pessoas estavam com medo de sair às ruas em defesa da democracia, justamente, para não sofrer o que sofri. Ser agredido física e mentalmente como fui. Por outro lado, muitas pessoas não aguentam mais as atrocidades desse governo. Gente morrendo e eles desdenhando.”
Plantando sementes
Após a repercussão do protesto, Emerson acredita que uma semente foi plantada. “Muitos temem a violência por achar que ela é a parte mais forte de uma pessoa. Mas, na verdade, não. Ser uma pessoa coerente, firme, de ideais, e não violenta, é a maior força que você pode ter. É uma questão de caráter, de atitude. A violência não leva ninguém a lugar algum. As atitudes, sim.”
Emerson acredita que o presidente usa a polarização para perseguir opositores. Polarização, inclusive, que custou seu emprego como desenvolvedor de software em uma empresa de Alphaville (SP).
No dia seguinte ao protesto, Emerson foi informado pelo gerente de sua área sobre a demissão, motivada, segundo ele, pela presença no ato e por um vídeo onde aparece ao lado ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Bolsonaro usa polarização para perseguir e amedrontar pessoas e poderes. Mas mostramos que esse governo quase não tem apoio comparado ao que temos a favor da democracia e liberdade. Isso vai servir como incentivo para o projeto de impeachment de um presidente que tem um plano político genocida para nosso país.”
Violência policial
Ao falar sobre a truculência policial do dia 31, Emerson compara o tratamento dado a uma manifestante bolsonarista ao ataque sofrido pelos seus pares. Questiona qual seria a reação dos policiais se estivesse na manifestação carregando um taco de beisebol. “Você vê uma senhora com um taco de beisebol, em plena Avenida Paulista, sendo abraçada por um policial e retirada calmamente pela rua. Agora se fosse eu, negro, vestindo Malcom X, com um taco de beisebol, onde estaria neste momento? Quem começou a confusão foi um ex-comandante do Exército, que atravessou a Paulista para provocar. Em vez da polícia tomar alguma atitude contra ele, resolveu atacar o nosso lado. Ofereceu para o agressor água e conforto. Para quem lutava por democracia sobraram bombas, cassetete, gás de pimenta e bala de borracha.
Influências e inspirações
Questionado sobre suas principais influências e inspirações políticas, Emerson recorda a infância na cidade de Osasco para refletir os dias atuais. Considera as músicas ouvidas em um antigo toca-fitas as primeiras lições que tomaria para a vida. E enxergava nas letras do grupo Racionais Mc’s o espelho de sua realidade. “Nasci, cresci e vivo na periferia. Muita informação falta pra nós. A luta política que tínhamos todo dia quem nos ensinava quanto, quando e como lutar contra o sistema era o Racionais Mc’s. Quando eu chegava da escola colocava no toca-fita a música ‘Fim de Semana no Parque’. Ali eu entendia como nosso povo era tratado. E ouvir aquelas músicas era saber o que me esperava, já com aquela idade, sofrendo tantas agressões. Aos sete anos sofrer racismo e preconceito de muitas pessoas. Então, o Racionais foi minha primeira inspiração. Com o tempo o Rap brasileiro se tornou uma grande inspiração. E depois, quando começamos a ter acesso à internet na periferia em meados de 2009, 2010, começamos a ouvir outras vozes: Luther King, Malcom X, Muhamad Ali, Mandela, pessoas que lutavam pelo direito do povo, mas principalmente da população negra, que é quem mais sofre nessas questões de opressão e ódio que existe no nosso país.”
Periferia e Bolsonaro
A falta de informação, ele acredita, foi o que motivou os votos da periferia em Jair Bolsonaro. A isso inclui a propagação de fake news em redes sociais como o WhatsApp, que chegou aos moradores de periferia de forma massiva e sem qualquer filtro. “A grande maioria das pessoas acorda de madrugada e chega em casa tarde da noite. No pouco tempo que resta janta, toma banho, brinca com as crianças, fala com a esposa e volta ao trabalho no dia seguinte. Essa rotina deixa a pessoa isolada de qualquer informação sobre o mundo externo a não ser aquele que já faz parte. Com isso, devido às fake news dos outros candidatos, ficou apresentada a versão de que o Bolsonaro era a pessoa mais correta para aquele momento. Se tem poucas informações e o que era passado vinha do WhatsApp, como a história das mamadeiras, os kit gays. Quantos amigos, até os mais informados, não caíram naquilo ? A desinformação fez Bolsonaro eleito.”
Torcidas pela democracia e contra a discriminação
O protagonismo das torcidas nas manifestações em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e outras capitais motiva um importante e necessário debate sobre a marginalização de grupos sociais formados por jovens periféricos e, em sua maioria, negros.
Se a união entre rivais históricos era algo até então impensável, a reivindicação contra o governo levou às ruas antigos desafetos em um grito uníssono por direitos e democracia.”É possível falar em união, sim. Tanto que tivemos torcedores de São Paulo, Palmeiras e Santos com corintianos. Pessoas de todos os setores da sociedade, juntas, lutando por único ideal. As organizadas têm um papel essencial na luta contra o fascismo, porque são politizadas em sua grande maioria. Muitos líderes conversam com os associados e conseguem mostrar pra eles a qual parte da sociedade eles pertencem. Um exemplo, no começo de maio, tínhamos 70 corintianos, em um grupo de torcedores politizados. Esse grupo começou a conversar com outros torcedores e amadurecemos as ideias. Um mês depois chegamos a quase mil torcedores na Paulista.”
“Gaviões me tornou mais solidário”
Associado aos Gaviões da Fiel desde os 18 anos, Emerson lembra a própria experiência dentro da organizada para falar sobre formação política. E nesse ambiente, muitas vezes estigmatizado pela violência, tornou-se uma pessoa mais solidária e com uma visão de mundo diferente. “Eu creio que nada é feito de uma única forma. Tudo é processo e junção de fatores. Eu tinha minha formação dentro de casa, que adquiri com meu pai e minha mãe. Tive formação através do Rap, que me influenciou positivamente a viver na periferia. A como crescer, porque naquela época era raro um negro passar dos 20 anos aqui, e sobreviver às estatísticas. Tudo ajudou a moldar meu caráter como cidadão. Mas também foi essencial para minha formação política as conversas que tive com o fundador da Gaviões, Chico Malfitani. Foi quando comecei a conhecer de perto a luta da nossa sociedade, por meio de ações sociais, palestras, tudo que nos permitiu ter contato com o sofrimento do nosso povo. E a partir do momento que se tem contato com uma realidade tão sofrida é difícil voltar uma pessoa que não seja solidária. O Gaviões me tornou uma pessoa mais solidária, serena, com uma visão de mundo diferente.”
Após quase duas décadas de vivência nos Gaviões, marcada por jogos, viagens, festas e ações sociais, Emerson descreve com nitidez a estrutura de um movimento social que se faz presente não só nas arquibancadas. E hoje protagoniza um renascido movimento de oposição ao governo até então desmobilizado frente aos ataques à democracia. “Todo movimento social que engloba pessoas periféricas e negros já sofre com o preconceito enraizado da sociedade. Nas organizadas não é diferente, porque as torcidas são igualitárias. Temos desde morador de rua a empresário. Homens, crianças, mulheres, como é a sociedade. Aí pegam o que a grande maioria da sociedade não vê com bons olhos e tentam discriminar. Mas nós não discriminamos ninguém, pelo contrário, nós lutamos e atuamos. E através da nossa luta de vivência diária acompanhamos de perto o sofrimento do povo e pelas ações sociais tentamos minimizar isso_coisa que o estado não faz. Nós sentimos que não existe outro lado que não seja o do povo. O lado do menos favorecido. E essa bagagem contribuiu pra tudo. Não só o que sou hoje, mas pra todos os dias da minha vida. Eu levo minha vida sempre pautado nas coisas que vivi e vivo. Sempre pensando no povo, no menos favorecido, porque eles são o elo mais fraco da sociedade.”