Verão em Realengo: quando as periferias do Rio são esquecidas
O Parque de Realengo consta no Plano Estratégico 2017-2020 da cidade do Rio, mas promessas não estão se sustentando, nem se desenvolvendo
Imagine: um parque verde no meio do subúrbio, no verdadeiro e geográfico “centro da cidade”. Numa zona conhecida pelas maiores temperaturas do Rio de Janeiro e pelas maiores distâncias físicas para boas opções de lazer e de trabalho. Não à toa, o lugar ganhou fama e nome em função dos transportes. A abreviação do letreiro do bonde com destino ao “Real Engenho” passou a ser escrita também em letras de música e hoje, alguns se transportam pra cá pelos trilhos dos trens, outros só pelas trilhas sonoras que atravessam o bairro.
Em “Engenho de Dentro, quem não saltar agora só em Realengo”, de Jorge Ben, as duas estações citadas mostram um recorte que se tornou icônico na cidade: uma é olímpica, a outra não. Seria literalmente uma bad trip se não fossem os Espaços Culturais do Viaduto e do Arlindo Cruz, para nos salvar das sombras da estação e nos lembrar que, assim como Madureira, Realengo é o “meu lugar” para muita gente. E assim, o recado irônico de “Aquele abraço”, do ministro Gil, volta como símbolo da segregação e repressão nestas terras realengas, da realeza e da lonjura. Antes visitadas pelos monarcas, ontem pelos coronéis e hoje pelos pastores, vemos um terreno vasto para retrocessos.
Ali, no calor da emoção, o atual prefeito nos prometeu um bosque urbano, tal como o imperial Parque municipal da Quinta da Boa Vista, no 4º bairro mais populoso do Rio, onde moram quase 200 mil pessoas. O Parque de Realengo consta no Plano Estratégico 2017-2020 da cidade do Rio de Janeiro, documento em que a prefeitura se compromete com metas e objetivos para um desenvolvimento sustentável, como proposto pela ONU na Agenda 2030. Mas as promessas não estão se sustentando, nem se desenvolvendo.
A união e o município cederam à especulação militar-imobiliária que hoje está ofertando apartamentos “na planta” do Parque Verde. Derruba-se a floresta para promover o aquecimento local através de blocos de cimento em forma de condomínio para servir à Fundação Habitacional do Exército, privada, e sua ‘associação de poupança e empréstimo’, a POUPEX. Trata-se de uma transação ilegal, assim como o desmatamento da área, que já pode ser detectado a olhos nus, pelos drones e pelo satélite do Google. A “terraplanagem”, neste caso, é real, tá tendo. Juntamente com uma frota potencial de mais 2.000 carros dos novos condôminos, a destruição e a poluição, certamente, virão e farão muito mal.
Vocês verão que não se trata de ilusão, porque na realidade de Realengo, não precisamos de mais moradia e sim de mais verde, mais lazer, mais cultura, mais instituições de ensino e de mais emprego, conforme também nos foi prometido, na primeira linha do “bendito” Plano de Metas. Este planejamento até agora não foi revisado, divulgado ou monitorado pela prefeitura, apenas deixado de lado, assim como nós.
De janeiro a janeiro, as periferias do Rio são esquecidas pelas políticas públicas estruturantes, mas religiosamente lembradas pelas migalhas e pelos “cala-bocas”. Até chegar o próximo outubro, quando uma chuva de promessas cai novamente sobre este território já sem árvores e sem esperanças. E no calor da eleição, o risco é maior: quando o povo tem de ir às urnas, o bairro fica ainda mais cheio porque os currais e os domicílios eleitorais ainda residem nele e aí, o estrago vem tão grande quanto das águas de março que fecham o verão e fazem muitas famílias perderem tudo.
Para nos livrarmos desse mal, além de rezarmos, poderíamos imaginar nossa atualmente desafinada democracia como uma orquestra que ainda nos rege o ano inteiro, a qual possui diversos instrumentos possíveis de alterar a melodia do dia a dia. Os maestros e maestras precisam vir de várias partes da metrópole para afinarmos, com diversidade, os diferentes ruídos com os quais nos deparamos no cotidiano.
Nosso repertório deve ir além das melancolias, além das críticas, sem depressão, em direção à construção de propostas em cenários de transformação. Precisamos ser capazes de pedir a música, protagonizar a mudança, compor planos, partituras. Produzir sons e soluções para melhorar a qualidade de vida do público, de forma coletiva.
Nesses sentidos, o Movimento Parque de Realengo 100% Verde (MPRV), o Meu Rio, o Lata Doida, o Sarau do Calango, a Charanga Talismã, o Espaço Cultural Viaduto de Realengo, a Casa Fluminense e uma rede de parceiras têm feito um convite para que a sociedade civil dê um novo tom à política, para que façamos ressoar a participação popular nas decisões.
Essa panela de pressão da sociedade civil, as ocupações, do entorno do Parque de Realengo, da Câmara de Vereadores, da Assembleia Legislativa e do Congresso Nacional com a nossa petição, são formas de chamar atenção (assine aqui!). Até na ONU já fomos, porque a audiência global é necessária para um desafio nesse país gigante, que se vê diante do desmatamento cada vez mais alarmante. Seja na Floresta do Camboatá ou da Amazônia, é literalmente “de matar” o abandono do recurso mais natural e a privatização de toda e qualquer relação social, econômica e ambiental.
Das nossas esperanças para este novo ano, desejamos não receber mais nenhuma bomba em nenhum campo, pela nossa saúde, preventiva, até porque o Albert Schweitzer, hospital estadual do nosso bairro, também está em estado crítico. Desejamos que a decisão do CONSEMAC, Conselho de Meio Ambiente, dos poucos que não foram extintos, seja respeitada. Ela aprova o projeto, 100% verde. Sendo assim, nosso pedido é que ganhemos o Parque. Não porque nos comportamos durante o ano, mas porque precisamos mesmo. Vai ficar mais quente do que nunca, vocês verão.
Esse clamor é uma palhinha, para dizer que o pedido dos moradores de Realengo, que em outros tempos assistiam ao Tim Maia na Praça do Canhão, nada mais é que o “retorno” das atividades culturais e ecológicas. Canjas de mais preservação, mais apoio, mais fomento e mais equipamentos, como a lona cultural e as históricas salas de cinema do bairro (hoje igrejas fundamentalistas), serão realmente salvadoras. Contudo, nossa necessidade é de políticas públicas estruturais, estruturantes. O Colégio Pedro II, ali ao lado do futuro Parque, é fruto da ação de moradoras e moradores atentos e fortes, que sonharam e realizaram, deixando um legado real, para as próximas gerações.
Nesse longo caminho, todas as demandas estão sintonizadas com o permanente uso público dos espaços seja para estudo, lazer e para geração de renda, entre outros desejos que façam reduzir a necessidade de longos deslocamentos para acessar esses e quaisquer outros serviços. Reduzir essas desigualdades, aumentando as oportunidades para os moradores, vizinhos e vizinhas é o clamor que ecoa não só na Zona Oeste e na Zona Norte, como na Baixada, em São Gonçalo e em outras periferias e regiões metropolitanas do país. Em grupo, seguiremos tocando em frente.
Por Vitor Mihessen, cria de Realengo, cavaquinista, economista e coordenador na Casa Fluminense