Violência doméstica não é só agressão física; saiba identificar
"São diversas violências domésticas, como física, verbal, psicológica, moral ou patrimonial. Elas vão minando sua autoestima", afirma a psicóloga
Há dois anos, Maria conheceu um rapaz encantador, que dizia o que ela queria ouvir. Parecia o companheiro perfeito e a entendia completamente, mais do que outras pessoas e até do que ela mesma. Ele a apoiava e fazia promessas de que tudo iria ficar lindo para sempre. Para a jovem, era a melhor pessoa que já havia conhecido.
Aos poucos, em meio a esse “conto de fadas”, o homem tentava controlar a vida de Maria, fazendo com que acreditasse que era apenas para o bem dela. Certo dia, disse à companheira: “Olha, eu te amo e te conheço tanto, não seria melhor você parar de falar com essa sua amiga? Ela não te valoriza”.
Em outra ocasião, pediu que ela trocasse de roupa porque “não ficava boa em seu corpo”. Assim, a mulher passou a se afastar dos amigos, da família e do trabalho, mas o amado a fazia acreditar que tudo isso era para o seu bem e que essas pessoas estariam tentando manipulá-la e enganá-la de alguma forma.
Maria entrou nessa “teia” sem perceber, pois estava apaixonada, e o parceiro era alguém maravilhoso para ela. A partir daí, começaram as cobranças. Já não eram mais pedidos, mas, sim, ordens. Não era mais: “Essa roupa não te cai bem”, mas sim: “Você não vai sair com essa roupa”.
As demonstrações de ciúmes exageradas passaram a ser rotina, junto dos xingamentos e ofensas, seguidos dos pedidos de perdão. “Eu faço isso porque te amo demais, então fico perdido”, dizia o rapaz. Ela se sentia responsável por esses comportamentos violentos, afinal de contas ele afirmava que só fazia isso por causa de um amor tão grande e incontrolável.
A jovem era culpada por tudo o que estava acontecendo. Ele explicava que suas atitudes só ocorriam porque queria o bem dela e sempre a protegeu das pessoas, mas ela não estava retribuindo e não se esforçava para ajudar. Por isso, segundo o homem, ele ficava nervoso e perdia o controle.
Nesse momento, Maria já se encontrava sozinha, sem amigos, sem família e até sem emprego — a pressão era tanta que ela acabou sendo demitida, uma vez que não conseguia se dedicar ao trabalho. Ela já estava tão envolvida que não sabia mais quem era ela e apenas conseguia se culpar por aquela situação. Seu corpo e sua mente se prenderam nesse relacionamento completamente abusivo.
A história acima não é verídica, mas poderia, pois, infelizmente, se repete dia após dia no ciclo da violência doméstica.
Este ciclo é composto por uma primeira fase, em que há o aumento da tensão e o homem começa a ter um comportamento violento, seguida da fase 2, em que a tensão acumulada culmina no ato de agressão, e, em seguida, ocorre uma terceira fase, da “lua de mel”, na qual o agressor diz estar arrependido e busca a reconciliação. Aos poucos, o casal retorna à fase 1, de tensão e, assim, às agressões novamente.
Muitas mulheres são vítimas de relacionamentos abusivos e, em grande parte dos casos, demoram certo tempo para perceber e buscar ajuda. Segundo a psicóloga Kátia Braz, especialista em saúde mental e dependência química, após essa série de violências psicológicas relatadas na história narrada no início da reportagem, as agressões físicas podem vir a acontecer, e até um feminicídio, em alguns casos.
De acordo com a psicóloga, o relacionamento abusivo está interligado à violência doméstica. No entanto, é equivocado pensar que esse tipo de violência acontece somente quando o homem bate na mulher ou a mantém em cárcere privado.
A violência doméstica também pode estar inserida em uma violência patrimonial, por exemplo, que ocorre quando o indivíduo impede que a mulher trabalhe ou que tenha acesso ao próprio salário, pois é ele quem controla seu dinheiro.
“São diversas violências [como física, verbal, psicológica, moral ou patrimonial], não tem uma específica. Elas vão se aglomerando e, por vezes, são maiores num ponto e menores em outro. Isso vai se alterando conforme a necessidade do abusador”, explica Kátia.
Inclusive, como ressalta a especialista, há muitos relacionamentos que não chegam à violência física, mas permanecem nas demais agressões. “Por acompanhar mulheres vítimas desse tipo de situação, e por eu mesma ter vivido a violência de forma muito grave, eu penso que por mais que a violência física seja horrível, muitas vezes é o que te machuca menos”, comenta.
“Violência verbal, a indiferença, a intolerância, discriminação, perseguição, chantagem, se tornar dependente do outro por imposição dele… Tudo isso vai minando sua autoestima, vai minando você como pessoa. Você se despersonaliza.”
Muitas vezes, a própria vítima passa a acreditar que os relacionamentos são assim mesmo, que essa é a única solução. “A gente normatiza a violência: relacionamento é assim mesmo, marido é assim mesmo, ele controla meu celular, vê com quem eu converso e responde minhas mensagens por mim, mas é assim mesmo, quando a gente ama a gente faz isso, quer proteger o outro, quer cuidar….Isso pode ser muito pior do que tomar um soco”, conclui.
Será que fui ou sou vítima de agressões?
Mas como identificar as situações de violência que não são tão explícitas? A especialista citou comportamentos recorrentes que caracterizam um relacionamento abusivo, como o sujeito oferecer algo à companheira que não vai entregar, vender uma ideia de si mesmo totalmente errada e prometer amor e companheirismo eternos.
“Tudo que não tem comum acordo pode ser caracterizado como uma violência. Ele querer controlar a sua vida, ter posse sobre você e fazer com que tudo que você faça seja para o prazer dele são alguns pontos a se destacar”, afirma.
A psicóloga listou alguns exemplos de situações vistas com frequência em relacionamentos abusivos. Não é possível afirmar que as pessoas com essas atitudes virão a praticar violência física, mas são alguns dos caminhos que historicamente resultaram nesse tipo de situação.
“Quanto mais eu estudo esse tema e mais tenho contato com essas mulheres, mais percebo a sutileza de violências que a gente vai sofrendo no dia a dia. É muito característico, bem triste”, completa.
Veja abaixo alguns indícios:
Demonstra amor de forma exagerada
As demonstrações de amor de forma exagerada, com pedidos de casamento, noivado ou namoro muito prematuros são indícios de um relacionamento que pode vir a ser abusivo.
Se dedica 100% à relação
Sabe aquela pessoa que parou de jogar futebol com os amigos, parou de ir aos passeios e fica 100% do tempo com a namorada, observando tudo o que acontece com ela? Isso é outro indício de uma tentativa de controle e, portanto, de violência.
Faz uso de um falso moralismo
O sujeito fala para que você precisa respeitar a sua família, mas ele não fala com a mãe dele há 5 anos e nunca a tratou bem. É algo que não se encaixa muito bem.
Utiliza chantagens frequentes
Chantagens, muitas chantagens. Para que a mulher não termine, o homem usa aspectos e pessoas essenciais da vida dela e a chantageia. Inclusive, em certos casos, o agressor chega a inventar que está com uma doença grave ou até mesmo ameaça se matar.
Se vitimiza sempre
O homem sempre se coloca como vítima. Às vezes de antigas namoradas, em outros casos de familiares ou chefes mulheres. Todas causaram mal a ele. Ou seja, a raiva com que ele trata a companheira e o resto das pessoas é justificada como se fosse uma reação ao sofrimento que enfrentou ao longo da vida. No entanto, a mulher precisa prestar atenção, pois, após certo tempo, ela mesma será colocada como mais um algoz na vida do rapaz.
Desqualifica a mulher em público
A todo momento, ele tenta desqualificar a vítima em público e deslegitimar todos seus sentimentos, desde a dor, o sofrimento e até a alegria.
Por exemplo: a mulher chega toda feliz em casa porque será promovida no emprego, e ele responde: “Não tem nada a ver com talento, mas sim porque seu chefe está querendo te pegar”.
Além disso, o companheiro passa a minar todas as coisas que são básicas a ela: faz silêncios violentos, ameaça ficar sem falar com ela caso não siga um pedido seu, entre outros comportamentos.
Trai com frequência
Um aspecto que aparece frequentemente são as traições. O indivíduo tem o hábito de trair e colocar essas traições como culpa do outro: “Olha, eu te traí porque você ficou diferente comigo, porque você está muito fria”.
Um caso que acontece sempre é o homem ter brigado o dia todo com a mulher, aí chega à noite e quer ter relação sexual, mas ela nega. Então, ele a trai e ainda diz que fez isso porque ela não tem mais interesse e o jogou nos braços de outra mulher.
É válido tentar conversar com o homem?
Para a psicóloga, é positivo tentar estabelecer um diálogo com o homem, mas há de se tomar muito cuidado. “Eu posso chegar para o meu filho e falar: isso é um comportamento abusivo e está permeado de machismo, de um controle que não lhe cabe, de uma falta de respeito. É importante a gente falar porque às vezes eles estão reproduzindo comportamentos e não percebem”, explica.
Porém, de acordo com ela, um ponto fundamental é prestar atenção no momento. Se a situação está já na explosão, ou na iminência de uma violência física, que pode ser grave ou até fatal, então é melhor a vítima primeiro se fortalecer, resgatar sua autoestima e se refazer como mulher, para, depois, voltar aos poucos a ser a pessoa que era antes. Assim, conseguirá desmontar essa dominação do outro sobre ela.
Apoio da família e amigos
A mulher que sofre violência doméstica pode ter dificuldade em falar sobre o assunto com pessoas próximas e pedir ajuda para romper esse ciclo. Kátia ressalta que, muitas vezes, a vítima tem uma dependência afetiva e financeira do parceiro, além da falta do apoio familiar para sair da situação.
“A vítima tem medo e acredita que esse homem vai mudar a partir do amor dela. Ela sente muita vergonha, está com a autoestima muito baixa. No entanto, mesmo assim, o melhor remédio é falar”, diz a psicóloga.
“Essa mulher precisa ampliar sua rede de apoio, precisa descobrir pessoas de confiança para relatar o que está acontecendo.”
Kátia, que atua diariamente com mulheres que sofrem relacionamentos abusivos, afirma que quanto menos a pessoa fala, mais solitária e mais dentro dessa teia ela fica. Falar significa, também, perceber os absurdos que está vivendo. “Se ela fala com pessoas que têm sensibilidade na escuta e no acolhimento, vai conseguindo entender ainda mais sobre si mesma. Isso também dá condições de readquirir a força e tomar uma atitude assertiva.”
“Mesmo que a vítima não queira se separar, mas sim, que aquele momento passe, nós precisamos ajudá-la com uma forma de lidar com aquela situação, até o dia em que ela resolver que aquilo não serve para ela”, completa.
Campanha #ElaNãoPediu
Nenhuma mulher “pede” para apanhar. A culpa nunca é da vítima. A campanha #ElaNãoPediu, da Catraca Livre, tem como objetivo fortalecer o enfrentamento da violência doméstica no Brasil, por meio de conteúdos e também ao facilitar o acesso à rede de apoio existente, potencializando iniciativas reconhecidas.