Visibilidade trans: conheça a história de Daniela Andrade

Por Karina Oliveira

Por karina
27/03/2017 16:28 / Atualizado em 16/04/2019 15:21

“Eu não nasci homem nem mulher. Eu nasci gente, careca, sem dente e sem saber o que era ser homem ou ser mulher. Isso tudo eu aprendi com a sociedade na qual cresci”, diz Daniela Andrade, 36, analista de sistemas, criadora do primeiro portal de empregabilidade trans e uma ativista assídua pelos direitos transexuais no Brasil.

Muito vaidosa, engana-se quem pensa que para ela falar da idade é sinônimo de problema. Muito pelo contrário! De acordo com Daniela, quando se mora em um país onde as estatísticas do IBGE  apontam que a expectativa de vida de uma travesti e de uma mulher transexual é de apenas 35 anos, ultrapassar essa idade é motivo de orgulho. “Quando você vê que a maioria dessa população está sendo assassinada ou se suicidando, ou seja, muitos não estão chegando nem sequer à velhice, então, não tem por que existir vergonha de se falar sobre a idade”, diz ao Catraca Livre.

Daniela Andrade, 36 anos, é uma mulher transexual, analista de sistemas, membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS) e criadora da primeira plataforma de empregabilidade trans
Daniela Andrade, 36 anos, é uma mulher transexual, analista de sistemas, membro do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS) e criadora da primeira plataforma de empregabilidade trans

Dona de um sorriso leve e largo, quem a conhece não imagina as extremas dificuldades que ela passou, tanto físicas quanto psicológicas, até conseguir alcançar uma parte de seus direitos como cidadã e, principalmente, como mulher. 

Sofreu humilhações, violências e abusos; teve seu nome social desrespeitado e viu diversas amigas morrerem à margem da sociedade. Essa realidade deu forças à Daniela para lutar por seus direitos e os de toda a comunidade trans em busca de visibilidade e respeito.

Vida e dores

Nascida e criada na periferia de São Paulo, em São Miguel Paulista, a analista de sistemas não teve uma infância fácil, até porque era extremamente pobre e convivia lado a lado com o preconceito. Seus pais, um pedreiro e uma dona de casa semianalfabeta, resolveram sair das terras quentes da Bahia para tentar a sorte na capital paulista. Extremamente religiosos, desde muito cedo educaram-na com base nos ensinamentos da Bíblia, obrigando-a a fazer o catequismo, a primeira eucaristia e a ir todos os domingos à Igreja Católica.

Daniela acredita que esse fanatismo religioso somado à falta de informação sobre questões de gênero, que até então não eram passadas à sociedade, cooperaram para o preconceito que tinham contra ela. “A religião, no meu caso, não foi uma salvação. Ela foi um impulsor de toda a violência que eu sofri morando com eles. Eu fui agredida pelos meus pais tanto fisicamente quanto verbal e psicologicamente”, desabafa.

Desde criança, ela não se identificava com as brincadeiras e os brinquedos considerados masculinos. E, por não se encaixar ao padrão de homem heterossexual e cisgênero, sofria diariamente enormes represálias também fora de casa. “Eu apanhava em casa, na escola, era apontada como a ‘bichinha’ do bairro, o ‘viado’ da rua, o ‘traveco’ da escola e todo o tipo de esconjurações possíveis”, conta.

Entre as paredes das salas de aula, local onde deveria se sentir acolhida, Daniela se via, na realidade, coagida e sufocada, sofrendo humilhações dos alunos, dos professores e até mesmo dos diretores do local. Durante esse período, ela ainda não podia usar o banheiro. “Eu não podia ir ao feminino porque eu não nasci com vagina; tampouco o dos meninos porque lá, como já havia me acontecido, eu seria abusada e violentada”. Assim, ela passou 11 anos de sua vida escolar sem usar o banheiro e tantos anos sendo privada de suas necessidades básicas resultaram em uma incontinência urinária, problema que ela trata até hoje.

Mas, infelizmente, era necessário passar por aquilo tudo, pois ela não queria fazer parte dos 90% da população de travestis e trans que são expulsas das escolas e empurradas à prostituição, à mercê da violência. Ela afirma que se já era difícil ser uma mulher trans com estudo, imagina se não o tivesse.

Descobertas e transição

“Eu levei 18 anos da minha vida para me encontrar”, afirma Daniela que, por ter que se adultizar tão cedo, não teve adolescência e rapidamente se inseriu no mercado de trabalho. De lá, fez amizades com um grupo LGB e acreditou que, enfim, sentir-se-ia representada, até porque escutou tanto em sua vida que era gay, que acreditou que realmente fosse. Porém, como nem tudo são rosas, com o tempo ela via que a narrativa LGB não era a dela e, com isso, passou a se questionar: “Se não sou gay, tampouco hétero, então, o que eu sou? Eu não sou nada…”

Foi aos 17 anos que esse sentimento começou a mudar, quando ela ouviu, pela primeira vez, alguém falar sobre transexualidade. Foi uma amiga trans, que tinha a mesma idade de Daniela e fez uma cirurgia de transgenitalização para, enfim, sentir-se quem realmente era. Naquele momento, ela percebeu que aquela também era a sua história.

“Compreendi que você não necessariamente precisa nascer com uma vagina para ser mulher; porque as vaginas não determinam mulheres, assim como pênis não determinam homens”, conta Daniela. Ela acrescenta que, ao entender que podia fazer um tratamento hormonal, começou a estudar mais sobre o assunto e se sentiu liberta.

Aos 18 anos, já empregada, Daniela se assumia como uma mulher trans, deixando seus cabelos crescerem e usando maquiagens. Porém, sua família não aceitou tal mudança e, em vista disso, ela resolveu sair de casa e enfrentar sozinha os caminhos da vida. Depois de passar por altos e baixos, ela resolveu fazer o que sempre quis, que era subir no salto, colocar roupas femininas e abusar na make. E assim fez, a fim de conhecer uma casa frequentada por travestis e trans; lá ela realmente se sentiu em casa e foi tratada de igual para igual. A partir daí, começou a usar hormônios e a frequentar o Ambulatório de Travestis e Transexuais. Com isso, passou a não se sentir mais culpada por quem era.

Em 2013, conseguiu uma grande realização: a mudança de nome em seus documentos, sendo reconhecida finalmente como Daniela Andrade. Ela diz que teve sorte, pois muitas trans veem com freqüência seus pedidos indeferidos. Agora, sua próxima conquista será a cirurgia de transgenitalização, que está há oito anos na fila do SUS para ser realizada.

Mercado de trabalho

Colecionadora de graduações e pós-graduações, Daniela é formada em Letras com pós em Língua Portuguesa; e Tecnologia da Informação, pós-graduada em Engenharia de Software. Mas, mesmo com tantos diplomas, ela enfrentou incontáveis preconceitos no mercado de trabalho até conseguir seguir com sua carreira de analista de sistemas, exercida atualmente.

Durante o QCon SP, maior evento para desenvolvedores de software do Brasil, representando sua atual empresa, a ThoughtWorks

Daniela já passou por diversas situações constrangedoras em que funcionários olhavam seu RG e se negavam a chamá-la pelo nome social, alegando que seria falsidade ideológica. Segundo o Código Penal, porém, o crime se dá pelo uso de documento falso, o que não era verdade. “Em momento algum eu quis passar por alguém que eu não era.”

Ela conta que foram diversas entrevistas vendo seu currículo sendo descartado ou tal vaga sendo cancelada, ao perceberem que ela era uma mulher. Sempre havia alguma desculpa para ser tirada do processo seletivo e, quando contratada, os colegas, e até mesmo a gerência, a discriminavam, além de ignorarem-na no ambiente de trabalho.

Um olhar para a mudança

 Apoiada em sua história e de várias outras trans e travestis sobre as dificuldades no mercado de trabalho, Daniela, com os militantes Paulo Bevilacqua e Márcia Rocha, criou o projeto Transempregos, uma plataforma para empresas divulgarem oportunidades de trabalhos para a população travesti e transexual. “Ter uma empresa minimamente comprometida com essa população era o mínimo que eu poderia construir”, conta.

Após esse site, ela ainda criou o Transerviços com o apoio da empresa em que trabalha atualmente; nesta plataforma, são ofertados serviços para aqueles que não têm formação e também profissionais que se disponham a atender este público. Isso tudo para oferecer uma alternativa para a população “T” se inserir no mercado de trabalho e ter mais oportunidades com empresas e profissionais que não os discriminem.

Daniela em um de seus discursos sobre o direito e visibilidade da população trans
Daniela em um de seus discursos sobre o direito e visibilidade da população trans

Além dos portais, a ativista atua como membro do Grupo dos Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS) que, para enfrentar a homofobia e a transfobia e obter a igualdade de direitos para a população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexuais), dão assistência e visibilidade à causa. Também participa de palestras falando sobre os direitos trans. “Quando você percebe o que significa ser travesti e transexual no Brasil e dá de cara com milhares de relatos de violações de direito, dificilmente você vai conseguir ficar impune àquilo e fingir que nada está acontecendo. Daí o ativismo.”

Com Djamila Ribeiro no evento Narrativas Feministas
Com Djamila Ribeiro no evento Narrativas Feministas

Hoje, Daniela está em sua terceira graduação, cursando Direito, e optou por este curso porque, quando se faz parte de uma minoria social, diz ela, é de grande importância ter consciência de seus direitos para conseguir também ajudar mais pessoas.

  • Neste Mês da Mulher, o Catraca Livre vai prestar homenagens diárias a personagens do gênero feminino que nos inspiram. Saiba mais sobre a campanha #MulheresInspiradoras e leia outros perfis aqui.