Arte e oportunidade saem do lixo e do esgoto de São Paulo
A amizade entre um carroceiro morador da região mais inóspita da cidade e um artista de rua criado no esgoto dá ao sertanejo Cícero Rodrigues, o Índio, a chance de sair da Cracolândia e ganhar o mundo com sua arte
Zezão vem andando apressado pela rua enquanto falamos ao telefone. Cruza comigo, mas não percebe. “Desculpa a demora, mas deu um puta rolo ali. Roubaram a carroça do Índio”. O grafiteiro havia passado as últimas horas entrando e saindo das bocas da Cracolândia à procura do instrumento de trabalho do homem que ele considera colega, funcionário, amigo, parceiro, irmão e filho.
O motivo da satisfação – e de minha visita – é que o carroceiro morador de uma das regiões mais degradadas da cidade é hoje, também, um artista que já vem sendo chamado de “Bispo do Rosário da Cracolândia”, apesar de rechaçar qualquer comparação do tipo.
Há seis meses, Índio e Zezão dividem tempo e espaço num protótipo de ateliê que na verdade é um estúdio em construção. Mas, além dos trabalhos do grafiteiro e das montagens experimentais do carroceiro, o que surgiu naquele até então inóspito local foi uma relação de amizade, confiança, autoconhecimento e esperança.
Irmãos de lixo
O número 280 da Alameda Nothmann era um daqueles locais em que a maioria das pessoas tem medo de entrar. Um edifício de três andares que servia unicamente como abrigo para o consumo de drogas. “Um clima terrível, pesado mesmo”, define Zezão, que resolveu enfrentar o recinto para criar ali um estúdio e um ateliê.
Ele conhecia a história do local, mas não poderia prever que a transformação do espaço viria acompanhada de duas outras: a dele próprio e a de Índio, o único “noia” que voltou para trabalhar no dia seguinte à sua chegada. “Pedi para um conhecido meu arranjar uns ‘noias’ para ajudarem a limpar o prédio, tirar entulho daqui”, conta o grafiteiro. “A maioria dizia ‘vou ali e já volto’, mas desaparecia. O único que apareceu às 8h do dia seguinte foi o Índio.”
Durante a reforma, Índio se oferecia para fazer qualquer tipo de serviço. Cimentava pisos, trocava fiações, pintava paredes e, principalmente, trazia para Zezão seu “material de trabalho”. “Eu contei pra ele que queria começar a pintar em coisas retiradas do lixo, como cabeceiras de cama”, explica o artista. “Então ele começou a trazer pra cá tudo que achava interessante, tudo que ele já encontrava quando era carroceiro.”
Além das cabeceiras – que servirão de telas para a próxima exposição do grafiteiro – tudo o que se pode encontrar no local foi retirado das ruas da Cracolândia. Sofás, mesas, luminárias, espelhos, uma pequena televisão e cadeiras que outrora foram de uma barbearia.
Os mais próximos alertaram Zezão para que ele não confiasse em um “noia”, mas, conforme o tempo passava e os dois iam se conhecendo, o grafiteiro apostava cada vez mais em Índio. “No começo, Índio falava ‘vou ali resolver um negócio’ e eu já sacava que ele ia fumar pedra”, conta o grafiteiro. “Até que um dia virei pra ele e falei que se era pra fazer as merdas dele, que fizesse comigo olhando, aqui dentro do estúdio.”
Antes de tudo, um forte
Os olhos puxados, a pele morena e os cabelos negros renderam ao sertanejo Cícero Rodrigues, de 37 anos, a alcunha de Índio. Mesmo que entre familiares e amigos mais próximos, como Zezão, o pernambucano seja conhecido por Negão, suas feições caboclas e portinarescas dão ainda mais sentido ao apelido que ganhou no Sudeste. Nascido em Rajada, um pequeno vilarejo próximo de Petrolina, Índio foi ainda pequeno morar com os pais, irmãos e avós no sertão da Bahia. Na “terra boa” de propriedade da avó, ele cresceu aprendendo a tirar da natureza ao seu redor o sustento.
Retrato da vida rural sertaneja, Índio ia com o pai extrair mel de abelha para vender, sentia medo das histórias de fantasmas da avó, que era curandeira e médium local, e sofria com problemas familiares. “Meu pai era um homem bom, mas gostava de uma cachaça e, quando bebia, batia na minha mãe e nos meus irmãos”, conta. “Eu não sabia o que fazer, porque não podia levantar a mão contra meu pai nem assistir calado àquela situação. Foi então que eu resolvi vir para o sul.”
E não foi qualquer migração. Por cinco vezes, Índio fez o trajeto Nordeste-Sudeste a pé, encarando as intempéries climáticas e antrópicas do caminho interestadual. A duração média de cada viagem, ele conta, foi de 70 dias. “A pior coisa é o sol”, diz. “Ele acaba com você. Queima a pele, esquenta o chão, dá dor de cabeça e dor de dente. O sol incha tanto o corpo que desfigura uma pessoa.”
Em uma dessas viagens, acompanhado de mulher e três filhos, Índio sofreu um tipo de abordagem (aparentemente) incomum enquanto dormiam todos na beira da estrada. “Mais de uma vez uns turistas chegaram e ofereceram dinheiro por algum dos meus filhos. Era uma bolada, mas fiquei tão puto que fui pra cima deles”, conta o caboclo.
Entre idas e vindas, Índio acabou na Cracolândia, onde vive há quatro anos. Acabou se envolvendo com o crack, como tantos outros da região. Mas nunca roubou, tem orgulho de falar. “Não nasci para ser bandido”, afirma. “Se tem uma coisa que eu sempre fiz e vou continuar fazendo é confiar nas pessoas. Hoje mesmo já emprestei de novo a carroça para os meus ajudantes – de acordo com Zezão, os mesmos noias que tinham roubado ela de manhã – porque eu sei que eles também precisam trabalhar.”
O sonho do mundo, o sonho da terra
Índio divide seu tempo entre a carroça e o trabalho com Zezão. À noite, enquanto está sozinho, espalha vários objetos pelo chão e começa a pensar que tipo de montagens pode fazer. Assim nascem quadros e gavetas que se assemelham a pequenos oratórios. Estas são suas obras de arte. “São coisas que eu acho bonito e que ornam bem umas com as outras”, explica o novo artista, que já ganha fama na região. “O Índio anda na rua e já chamam ele de ‘prefeito da Cracolândia’”, brinca Zezão.
O grafiteiro explica que o objetivo é que cada trabalho seu – feito com a ajuda de Índio – e que cada obra própria do carroceiro rendam a ele um bom dinheiro. “Vou levar o Índio para expor comigo na Alemanha, ele vai conhecer a gringa”, fala Zezão em tom sério. “Tá louco, nunca andei nem de metrô, imagina pegar avião”, responde Índio rindo enquanto sai encabulado.
O caboclo ri, mas reconhece a mudança que acontece em sua vida. “Meu sonho sempre foi comprar de volta a terra onde cresci, que minha família descuidou e foi obrigada a vender”, conta, “e agora eu acho que isso vai ser possível um dia, por causa desse homem que sei lá como caiu na minha vida. Esse companheiro, irmão mesmo.”
Índio já conseguiu, pelo menos, voltar a falar com a mãe. “Achamos a mãe dele lá no sertão”, conta Zezão. “Pedimos pra ela mandar a certidão de nascimento dele pra fazer um RG, coisa que nunca teve. Os dois se falaram pelo telefone depois de não sei quantos anos, foi uma choradeira só.”
Zezão saiu do esgoto e, por isso, sabe como é difícil ser levado a sério pela sociedade. Ele, todo tatuado e sujo de tinta, e Índio, maltrapilho, com barba por fazer e cabelo por cortar, ainda hoje são olhados com desconfiança quando entram, por exemplo, em uma loja de parafusos. Juntos, Índio e Zezão aprendem, ensinam, convivem e planejam um futuro melhor, no qual o caboclo conhece o mundo e volta de cabeça erguida para suas abelhas.
“Mas agora é uma coisa de cada vez e o futuro ninguém sabe como vai ser”, alerta o grafiteiro. “A única coisa certa é que o Índio precisa sair para ganhar um dinheiro com a carroça e eu preciso ligar pra minha mulher, senão ela reclama que eu passo mais tempo com ele do que com ela.” Os dois se despedem rindo, com um brilho diferente nos olhos. O brilho do animal que vê a chance de sair da toca para comer no mundo.