O mundo é um Moinho
Há quase 30 anos, a ocupação da Empresa Moinho Santa Cruz deflagrava o surgimento de uma das maiores favelas no dilacerado coração da mais cosmopolita e desigual cidade da América do Sul. A comunidade, formada originalmente por catadores de materiais recicláveis, reunia ali admirável demonstração de respeito e preservação ao meio ambiente na cinzenta São Paulo, gerando empregos, renda e possibilitando a dezenas de famílias, que hoje somam-se quase 800, uma oportunidade de vida, ainda que severamente modesta.
Modesto cotidiano que sofreu substancial e negativa mudança na manhã de 22 de dezembro de 2011, quando labaredas e chamas reduziram concretos, madeiras, móveis, pertences, histórias e vidas a um cenário de destruição, desespero, desamparo e incertezas.
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O incêndio ocorrido no antigo prédio da empresa e adjacências da comunidade, espremida abaixo do viaduto Orlando Murgel, suscita uma série de perguntas sem respostas, abrindo diálogo para um debate que envolve interesses econômicos, especulação imobiliária, política de higienização, descumprimento de leis e, sobretudo, desrespeito à dignidade de homens, mulheres e crianças ali presentes.
A versão dos moradores, testemunha ocular das quase 2 mil pessoas dali, expõe a postura de uma gestão política voltada aos privilégios do setor imobiliário, cujo um dos principais interesses está na revitalização da região Central de São Paulo, a exemplo da “Operação Urbana Lapa-Brás”.
O projeto enfatiza a concretização das diretrizes do Plano Diretor, que propõe a ocupação da orla ferroviária entre os bairros da zona oeste da cidade e região Central. “As regiões próximas às linhas ferroviárias estiveram por décadas esquecidas, excluídas dos interesses políticos e deixadas à margem das condições básicas para a sobrevivência. Há décadas foi ocupada por trabalhadores e famílias que ali construíram suas vidas e conquistaram seu direito à moradia. Hoje, essas pessoas se tornaram vítimas de um jogo de interesses onde o que menos importa é a condição de seu futuro”, explica o secretário parlamentar da Câmara dos Deputados, Leonardo Pinho.
Do outro lado da linha do trem
A acusação dos moradores assume verossímil relevância quando desencontros de informações e uma atípica rapidez no processo de aprovação orçamentária para a implosão do Moinho Santa Cruz são levados ao debate público.
Realizado surpreendentemente durante a semana entre o Natal e Ano Novo, o projeto de derrubada da antiga empresa exigia, segundo informações cedidas pela própria prefeitura, cerca de R$ 3,5 milhões, pagos às empresas Desmontec, que detonou os explosivos, e Fremix, responsável por transformar os detritos em brita. Ao todo, 800 kg de explosivos foram usados em 2,2 mil furos feitos em 260 pilares do térreo e do primeiro andar.
Por outro lado, segundo declaração cedida ao site G1, o diretor técnico da empresa Desmontec, Wesley Bartoli, revela que foram utilizadas somente 400kg de explosivo na implosão – metade do que fora anunciado oficialmente.
O resultado, no entanto, revelou-se frustrado, atingindo apenas dois dos seis andares do antigo Moinho Central, no bairro de Campos Elísios. O restante da estrutura encontra-se praticamente intacta, conforme acompanhou a reportagem de Catraca Livre na tarde da última quarta-feira, 4 de janeiro de 2012.
Entre a linha de trem e os barracos de madeira, o controverso episódio de 22 dezembro destaca a atuação de personagens como Milton Sales, um dos mais importantes porta-vozes da cultura hip-hop no Brasil e responsável pela articulação do movimento desde a década de 80. “Este episódio revela apenas a face de um Estado que massacra e oprime a população pobre, em nome de politicagem e interesses econômicos”, analisa Sales.
Considerado uma das principais lideranças da comunidade, Sales destaca a importância da luta pela permanência no local, garantido pelo benefício da Lei do USUCAPIÃO, que se configura na posse e uso de um bem imóvel , durante um determinado período, dando o direito a essa pessoa de pedir ao Estado, através do Poder Judiciário, que usou a terra para o seu sustento ou moradia, como se dono fosse, garantindo o título de propriedade do imóvel. “A luta é o direito estabelecido pela constituição, que deve ser respeitado”, reforça.
E para que as ilusões e vidas de milhares não se reduzam a pó, a luta dos moradores continua ,porque como já diria o mestre Cartola, “O Mundo é um Moinho”.
A luta pela permanência da Favela do Moinho conta com o apoio do Movimento Hip Hop Revolucionário, da Rede de Saúde Mental e Economia Solidária e do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). O vídeo abaixo reúne depoimentos de moradores presentes no incidente de 22 de dezembro, ecoando a versão de vozes ainda não ouvidas.
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