Primeiro capítulo de “A Espera do Tempo”

Por: Catraca Livre

1. Mansaku Itami – Meu primeiro mentor

Cartas

Durante as filmagens, é agradável esperar pela chegada do tempo ideal. É quando a gente faz um intervalo. Se o técnico de iluminação, um homem na casa dos quarenta, estreita os olhos, encara o céu e diz: “É… Por enquanto, não será possível…”, todos exclamamos: “Ah, que bom!”.

O sol se escondeu atrás de uma grande nuvem. Todos se mexem, à procura de um lugar para sentar. Três homens dividem uma pequena caixa de equipamentos, as costas de um se poiando nas dos outros. Antigamente, os assistentes recém-contratados se sentavam nos ripezinhos da equipe de filmagem e recebiam broncas homéricas dos câmeras.

Nos dias de hoje, dizem que é inviável, que esperar pelo tempo ideal é ccontraproducente. É algo que só a equipe de filmagem de Akira Kurosawa faz. Em algumas circunstâncias, porém, eles esperam pelas nuvens. Um céu de brigadeiro não é o quadro que se deseja. Também existem vezes em que esperam para rodar quando aquela, aquela nuvem passar para o outro lado da montanha. Que não se diga que é extravagância. Afinal, é cinema.

Quando Kurosawa era assistente de direção, soube que o diretor Sadao Yamanaka filmava Ninjo kami fusen [1937] num set ao ar livre e foi lá para ver.

Ele disse que construíram uma rua cheia de depósitos, então a cena devia ser aquela em que o ator Chojuro Kawarasaki faz o papel do desempregado Matajuro Unno, quando parte atrás do sujeito, “senhor Mori, senhor Mori”, e tenta entregar-lhe uma carta em mãos.

O tempo estava bom, contudo todos olhavam o céu, despreocupados, e nada de a filmagem começar. Kurosawa perguntou qual era o motivo, e disseram que esperavam que uma nuvem surgisse sobre os depósitos.

Quando se espera pelo tempo, o tema preferido das conversas são fofocas. Naquela época, não havia programa de variedades na televisão, então a gente especulava sobre quem estava de caso com quem, fulano que terminou com sicrano, aquele disse me disse que todos conhecem. Também dividíamos histórias de como ingressamos no ramo. Enfim, eram os sewaba, termo do teatro e do cinema que caracteriza condições de pobreza, doença, sofrimento e separação, porém eram os sempiternos sewaba da vida real.

Minhas histórias de vida não são lá muito interessantes, então não desejo torná-las públicas, mas devo mencionar um filme em particular que acabou por determinar o curso da minha história. Tratase de Akanishi Kakita, do cineasta Mansaku Itami.

O filme é de 1936, mas só pude assisti-lo em 1941, se não me engano. Quem me falou dele foi meu pai, que lera uma resenha favorável na revista de economia Diamond. Minha memória não é uma fonte confiável, mas acho que fui assistir a esse filme num cinema que tinha um nome estranho, o Tokyo Club. Nessa época, eu era estudante secundarista de um colégio para meninas, e não sei onde arranjei coragem para ir sozinha. Acho que o culpado foi o escritor Naoya Shiga, pois eu tinha adoração por ele e o filme era baseado num de seus contos.

Dois guarda-chuvas feitos de papel impermeável se movimentam sob a chuva, vistos de cima. Os bambus e as telhas com padrões de pardais são açoitados pelas gotas. Um gato vadio procura abrigo. A dupla sob os guarda-chuvas comenta sobre o recémchegado, o tal Akanishi Kakita, enquanto caminha de volta às suas residências contíguas.

Fiquei em choque: não sabia que existiam filmes japoneses assim interessantes. Sem deixar a coisa esfriar, peguei papel e caneta e escrevi uma carta de fã para Itami, que morava em Kyoto.

A resposta de Itami foi rápida e inesperada, pois ele se encontrava acamado por motivo de doença, e junto veio um de seus livros, Kage-e zakki [Notas de filmes]. Quando abri a capa azulmarinho, encontrei o meu nome e a assinatura “Mansaku Itami” ocupando todo o verso da capa, escritos numa caligrafia linda feita com pincel. Meu coração palpitou, emocionado.

Aproveitei a oportunidade e comecei a me corresponder com Itami, mas já não possuo nenhuma das cartas. Para meu grande ressentimento, perdi todas.

No entanto, li as cartas de Itami tantas e tantas vezes que mesmo hoje ainda as guardo na memória – a caligrafia, as frases, tudo: sou capaz de revivê-las em pensamento sempre que desejo.

Em uma delas, havia a seguinte passagem:

Nas suas cartas, não há sequer uma letra errada. Nas suas cartas, você nunca me pede coisa alguma. Você é minha discípula. Mas, se vier me perguntar o que devo lhe ensinar, não saberia a resposta. Bem, acho que não há nada de errado em se ter uma discípula e não precisar ensinar coisa alguma…

E, no entanto, as coisas que eu escrevia em minhas cartas eram todas bobas: um erro engraçado que o professor cometeu, o gato que peguei no campo e depois abandonei, esse tipo de amenidade.

Em algumas respostas de Itami vinha um poema waka anexado. Um deles dizia que, se o destino do gato era ser abandonado, então ele não deveria ser resgatado. Na margem superior da carta estava colada a foto de um gato. “Meu Teko”, dizia a legenda.

As cartas eram sempre em papel de lauda, de ótima qualidade, quadriculado em vermelho, com espaço para quatrocentos caracteres e o nome de Itami impresso no centro. Depois, por causa do racionamento, o papel passou a vir cortado pela metade, e os lindos katakana escritos a lápis, espremidos, preenchiam frente e verso.

No período entre fevereiro de 1943 e maio do ano seguinte, quando a guerra se agravava dia após dia, Itami passou um tempo com parentes em Oshima, na província de Yamaguchi, para melhorar de saúde com uma mudança de ares.

Numa carta que me enviou nesse período, expressava sua preocupação com sua família, que permanecera em Kyoto.

Ouvi dizer que em Kyoto a distribuição de comida se resume a uma única cebolinha, e não consigo viver tranquilo por causa disso.

O coração de Itami era um aperto só.

Após graduar no colégio para meninas, me matriculei num curso preparatório para bibliotecárias, com duração de um ano, em Ueno, e em 1945 consegui emprego na biblioteca da escola secundária Yamaguchi, onde meu pai estudara.

Eu morava ali quando chegou o fim da guerra, e descobri que uma colega do curso preparatório se casara e havia se mudado para Oshima. Então, antes de retornar para Tóquio, aproveitei para visitar o lugar. Oshima é uma ilha pequena e consegui localizar rapidamente a residência dos parentes de Itami, mas ele já regressara para Kyoto.

Quando voltei para Tóquio, a cidade era um redemoinho de desordem e entusiasmo pós-guerra. Caí de paraquedas num jornal chamado Jinmin Shinbun, um periódico que flertava com o Partido Comunista. Nesse período tão empachado de coisas importantes, não me recordo em absoluto de me corresponder com Itami.

Certo dia, numa coluna em destaque no jornal, publicaram um poema de Itami chamado “Chiisai nozomi“[Pequeno desejo]. Fiquei paralisada. O poema começava assim:

Uma tigela de leite quente

e uma torrada com manteiga cheirando bem

ah, vejo-os até em sonhos!

Esposa, não ria

da pequenez desse desejo.

Filhos, não riam

da mesquinhez desse desejo.

Então eu, depois de muito tempo, escrevi uma carta para Itami. Não houve resposta, e numa manhã qualquer soube de sua morte pelo jornal.

No dia 21 de setembro de 1946, faleceu Mansaku Itami, um artista que deixou como legado 21 obras-primas, como Kokushi muso [1932] e Kimagure kaja [1935]. Tinha apenas 46 anos.

1 Gênero 2