Se eu fosse puta

21/07/2016 22:21 / Atualizado em 07/05/2020 03:44

 
 

Medo de quê? De tudo. Mas sobretudo de ter que do nada me prostituir, ter que ir da noite pro dia buscar cada centavo do meu sustento na prostituição. E não eram os corpos sem nome, vários, variados, via de regra fora do padrão, em diversos graus de higiene e saúde, o que me assustava. Com esses me dou bem, e até prefiro, anônimos, fora do padrão (como eu própria me sentia sempre, ainda mais agora). Sexo nunca foi foda (…). Meu medo era, antes, a violência da exclusão, me ver pária da noite pro dia, tratada feito lixo, perder família, amigos, círculo social, não ter um teto pra chamar de meu, o direito de continuar estudando, de poder buscar emprego que não fosse esse que não consideram emprego: puta.

Esse é um trecho do livro autobiográfico “Se eu fosse puta”, escrito pela doutoranda em crítica literária pela Unicamp — e prostituta em Campinas (SP), Amara Moira.  Ela relata  sua transição de gênero  – virou travesti – e das  experiências como profissional do sexo. Leia um capítulo do livro aqui

 
 

“Antes [de assumir a Amara], eu não chamava atenção na rua. E de repente, quando você se coloca como mulher e, mais especificamente, como travesti, todos os olhos se voltam a você para tentar te entender”, afirma Amara.

“E há todo tipo de olhar: mais hostil, mais curioso… Esse olhar constante é um lembrete de que você é considerada uma aberração.”

O livro é, em essência, o relato de desprezos e angústias. Um dos poucos prazeres:  sentir-se valorizada quando visitava as amigas prostituta.

“Era único momento em que “os homens me abordavam publicamente”.

As imagens são da fotógrafa Lígia Francisco

 
 
 
 

Até que, enfim, assumiu ser prostituta.  E não assumiu por dinheiro. Foi o jeito que encontrou para enfrentar a solidão.

 
 

O livro usa o título de seu blog, onde saíram textos como você lê abaixo.

“Vinte nove anos vivendo como homem, mais especificamente o homenzinho padrão, cis, branco, não-afeminado, lido como hétero, classe média, e foi só eu transicionar e passar a ser lida como travesti para viver minha primeira experiência de violência sexual. Eu, que me achava poderosona, em condições de peitar quem quer que fosse por conta da socialização que tive, não dei conta de evitar que o cliente me forçasse a seguir com o programa mesmo depois dele ter me machucado, eu sentindo as dores não só físicas, mas também as de não conseguir dizer não. Sinalizar o sofrimento não foi o bastante para evitar que ele continuasse e, na verdade, me pareceu até que ele se excitou mais em imaginar que, com seu pinto, conseguia machucar uma profissional do sexo.

A facilidade com que ele me machucou e seguia me machucando, sentindo prazer nesse movimento, me fez gelar, mas não só por pensar em mim, na situação que eu vivia ali, e sim por imaginar quão fácil era uma mulher se ver naquela mesma posição, ter que seguir com o sexo mesmo quando o sexo já tinha deixado de ser prazer pra se tornar violência. Pensa-se o estupro como coisa longínqua, o ataque dum estranho numa rua deserta, e com isso não se percebe o quanto ele acompanha o nosso dia a dia, o quanto ele se faz presente mesmo dentro de relacionamentos tido como amorosos.

O que é a primeira relação sexual para uma mulher a quem a experiência da sexualidade foi desde sempre negada, essa mulher que vai descobrir na hora H, nas mãos do marido bruto ou namorado, o que isso significa? No mais das vezes, significa violência, o que é muito conveniente para o sistema patriarcal: o homem, para garantir que seus filhos são seus, precisa controlar com cuidado o corpo da mulher “sua”… e há maneira mais eficaz de controle do que uma experiência traumática, do que conhecer o sexo apenas em termos de violência? Que mulher iria buscar um amante quando o sexo a que tem acesso se resume a isso? Deixa-se o prazer mútuo para ser vivido com a amante, a prostituta, pois a mulher que se preze, a mulher que se dê ao respeito, a mulher propriedade do marido, essa não possui grandes interesses eróticos. Sexo é pra reprodução, lembram? Ideia perfeita pra justificar o controle do corpo e da sexualidade da mulher.

Mas, homens dirão, os tempos são outros, isso era na época de nossas avós, bisavós. Sim, mas a pergunta que minha garganta coça em fazer a esses homens é: você seria capaz de fazer sexo com alguém que não está sentindo prazer e, mais, você seria sequer capaz de se dar conta de que ela não está sentido prazer? Quem penetra não tem como fingir orgasmo, fingir ereção, se não der pra rolar não há como forçar a barra… mas do outro lado a realidade é bem outra e estão aí para prová-lo os números alarmantes de mulheres que, apesar de transarem rotineiramente, têm que sempre fingir orgasmo, mulheres que muitas vezes nem sabem o que orgasmo quer dizer (seguiremos chamando isso de sexo?).

Essa mulher que você diz amar, será que ela tem prazer em transar contigo? O meu medo é descobrir que a resposta a essa pergunta talvez não interesse à maioria dos homens.”