‘Vai jogar jogo da Barbie’: jogadoras relatam bullying nos games

Por: Guilherme Solari

Um estudo publicado em 2015 pelo Pew Research Center sobre os hábitos de gamers norte-americanos mostrou que metade dos jogadores na verdade são jogadoras. Mesmo assim, o mesmo estudo mostrou que 60% dos entrevistados veem “jogar videogame” como uma atividade masculina.

Um reflexo dessa atitude clube do bolinha de que videogame é coisa de HOMEM é que toda jogadora tem histórias de bullying machista. Não é uma questão de “se” uma jogadora sofreu assédio online, mas quais as suas histórias de assédio, principalmente quando é possível serem identificadas como mulheres, seja pela voz em chat online ou sexo e nome dos avatares.

O assédio a jogadoras não se resume às cantadas furadas ou “brincadeiras” machistas, mas evoluiu a todo um movimento de assediadores que atacam suas vítimas com verdadeiros exércitos de anônimos. Isso culminou em 2014 com o chamado Gamergate, movimento supostamente sobre ética no jornalismo de games mas que se transformou em um verdadeiro rolo compressor de chauvinismo contra desenvolvedoras e jogadoras.

O Dica Digital conversou com 4 jogadoras, streamers e pro players sobre suas experiências enfrentando assédio quando queriam apenas estar jogando videogame. Veja abaixo:


Claudia “santininha” Santini, jogadora profissional de “Counter-Strike: Global Offensive”

“Tente ser alguém na vida, ame algo e seja bem-sucedido porque lutou até o fim apesar das dificuldades. Agora faça a mesma coisa, mas adicione ódio, inveja, xingamentos e alguém no seu ouvido falando que você não pode, não vai conseguir, ofendendo sua família, colocando as pessoas que você ama no meio de tudo que você faz, mandando você desistir todos os dias e colocando todo seu psicológico no lixo a cada 5 minutos.” #BULLYINGNÃOÉMIMIMI

“Moral, psicológico, sexual… são todos os tipos de ofensas e perseguições que se possa imaginar,” diz a pro gamer Claudia “santininha” Santini quando perguntada que tipo de bullying sofre online. “Já fui xingada de todos os nomes possíveis, já me atacaram psicologicamente, já sofri ameaças de estupros, gente pedindo fotos do corpo, me chamando de todos os tipos de palavras de baixo calão”.

Assim como muitas outras jogadoras, Claudia diz ter tentado aprender a ignorar com o bullying online, mas teve um início difícil. “Era como se alguma coisa sempre puxasse você para baixo.”

“Se um homem não joga bem, tudo bem, ele teve um dia ruim. Se uma mulher não joga bem: ‘VAI LAVAR LOUÇA’. É assim que a maioria dos jogadores nos vê,” diz a jogadora. “Sem contar os mal-intencionados que foram criados em uma sociedade machista, pensam em pornografia o dia inteiro e ofendem ou assediam as meninas. Infelizmente, e eu digo isso com dor no coração, é algo ‘normal’.”

A sorceress de “Dragon’s Crown”. Representações hipersexualizadas de mulheres continuam comuns nos games.

Giulia Henne DJ, produtora de eventos geek e gamer

“Bullying é uma insegurança própria que te faz rebaixar pessoas à sua volta com o intuito de que você se sinta melhor. Bullying é estar numa corrida e passar a perna na pessoa ao seu lado, porque você não é bom o suficiente pra chegar em primeiro. Então é muito fácil dizer que é mimimi quando você já se coloca numa situação de vantagem.” #BULLYINGNÃOÉMIMIMI

“Todo o assédio que acontece online é só um reflexo do que acontece todos os dias no mundo real,” diz Giulia.

A produtora diz ter desistido de tentar argumentar com assediadores e hoje tenta ignorar o bullying online. “Não faz muito sentido na minha cabeça retribuir palavras com uma pessoa que já chega com pedras nas mãos. Se a pessoa é ignorante ao ponto de se comportar dessa forma, ela não irá abrir a cabeça para escutar o que tenho a dizer.”

Além dos xingamentos machistas, “cantadas” agressivas, ela conta um caso de assédio no qual foi perseguida simplesmente por mostrar o seu conhecimento de videogames. Ao participar em um site de um desafio de ligar todos os consoles aos seus respectivos controles, ela começou a receber centenas de mensagens ofensivas a chamando de “attention whore” (termo pejorativo para indicar que uma mulher está tentando chamar a atenção).

“Mulheres sempre foram vistas como um entretenimento para os homens. Além disso o mundo dos games, durante muito tempo, foi dominado pelo sexo masculino. Acho que eles se sentem no direito de tratar as mulheres como bem entendem, afinal é supostamente um ‘território masculino’.”

“As mulheres também precisam provar que jogam,” continua. “Normalmente quando digo que gosto de jogar recebo perguntas como ‘mas você realmente joga?’. E acho que é aí que começa esse bullying, porque a mulher já precisa entrar mostrando que joga. Não existe espaço para uma mulher que está jogando a primeira vez, ou que está querendo aprender, porque já escuta um ‘desencana, volta pra cozinha que você é melhor lá’.”


Jessica Lopes Schmidt, tradutora e gamer

“Esse papo de ‘mimimi’, na minha opinião, vem justamente das pessoas que não tem capacidade o suficiente pra saber se divertir sem a necessidade de ofender alguém. Das pessoas que estão muito confortáveis para se imaginarem no lugar do outro. Não é tão difícil, é só não fazer o que você não gostaria que fizessem com você.” #BULLYINGNÃOÉMIMIMI

Primeiro, vêm os pedidos de contatos pessoais do WhatsApp, Facebook ou Instagram de homens quando só se quer jogar. Na negativa, humilhações do tipo “nossa, você joga muito mal, só podia ser mulher mesmo”, “vai jogar jogo da Barbie” ou “deve ser uma gorda que não consegue nem levantar do sofá”.

Pelo assédio, Jessica evita hoje jogar online, e antes evitava até falar que gostava de videogames. “Vejo muito cara menosprezando e diminuindo meninas gamers e se unindo em ‘times’ masculinos para humilhar e atacar as minas.”

“O mundo dos games sempre foi muito masculino e voltado pros homens. Eu mesma cresci ouvindo que videogame era coisa de menino. Morria de medo e de vergonha de ir sozinha comprar meus jogos, e quando eu pedia algum que fosse considerado violento ou difícil, era mais estranho ainda. Era como se aquilo não fosse pra mim.”

“Acho que, como em tantas situações, a maioria dos caras não está acostumado e muito menos gosta de perder pra uma mulher. Mulheres deviam estar lavando a louça, cozinhando, sendo mães, não ganhando partidas online e sendo viciadas e bem sucedidas nos games. Como em tudo nessa vida, as mulheres precisam provar constantemente que podem, devem e são extremamente capazes de fazer algo (nesse caso, de jogar tão bem quanto um homem, ou melhor).”

Mulheres que questionam o machismo nos games vivem com ameaças diárias de morte e estupro, como a feminista Anita Sarkeesian do canal “Feminist Frequency”.

Raphaella “Queen Bee” Love, streamer de “League of Legends”

“Coloque seu nickname com qualquer coisa que remeta ao feminino, entre em um jogo e só aguarde. Se você é um homem, peça pra alguma amiga entrar em um teamspeak ou canal de voz público e dizer algo.” #BULLYINGNÃOÉMIMIMI

Ser uma mulher trans nos videogames é duplamente difícil, por não só enfrentar o machismo e misoginia como também a transfobia. É o caso da streamer Raphaella Love.

“Apesar do carinho imensurável dos meus fãs, sempre tem algum engraçadinho que fala ‘traveco’, ‘não perco pra traveco’, ‘mulher não tem que jogar League of Legends’, ” conta. ”Tiro um screenshot e ignoro, abro um ticket para o suporte do jogo e fico no aguardo de uma resposta/punição, não tem muito o que fazer nesse tipo de situação, temos que manter a calma e respirar fundo. Nós mulheres temos o péssimo costume de nos calarmos diante a assédios e abusos, sejam eles online ou na vida real, temos que mudar isso e expor esses babacas.”

Sobre o motivo que o bullying contra gênero existe de forma tão disseminada nos games, a streamer é categórica: “é uma insegurança patética que muitos homens têm.” Ela também chama atenção ao fato de como o preconceito está não apenas nos ataques diretos, mas nas pequenas coisas. “A mudança está em você deixar de fazer um comentário maldoso, uma piada estúpida e machista, um slutshaming, a mudança vem muito mais dos seus hábitos como uma pessoa no dia-a-dia do que no game em si.”


O tratamento das jogadoras nos videogames está mudando?

“Está longe do ideal, mas acho que as pessoas estão se solidarizando mais com a causa,” diz santininha. “É preciso acabar de vez com esse ódio gratuito e acho que o jeito eficaz é as pessoas começarem a repudiar e defender mesmo que seja alguém que você não goste ou não conheça.”

“Eu acho que está melhorando sim,” diz Giulia. “O feminismo está muito mais presente nas discussões e nas redes sociais, o que faz as pessoas se questionarem e mudarem. Ainda falta muito pra uma igualdade, mas pelo menos acho que estamos no caminho certo.”

“Realmente não sei se está diminuindo muito, não,” diz Jessica. “Pelo que leio e vejo em sites, blogs, páginas do Facebook, as mulheres ainda são bastante desrespeitadas e menosprezadas. Até evito ler comentários, pra não passar raiva e tristeza. Se não somos as gostosonas que usam biquíni, somos as burrinhas que não tem capacidade pra ganhar. E, se reclamamos do assédio e das ofensas, somos as vitimistas, exageradas. A sociedade parece não querer evoluir, mas sim zombar de quem busca a evolução.”

“Acho que ‘diminuindo’ é uma palavra muito extrema para se usar,” fala Raphaella Love. “Ainda há muito machismo e discriminação, portanto acho que ‘conscientização’ é a palavra certa. Vejo uma conscientização maior entre pessoas e amigas/conhecidas tomando atitudes perante esse tipo de problema.”

Caminhamos para uma era que a tecnologia do século 21 está chegando aos games, como realidade virtual, gráficos fotorealistas e inteligências artificiais avançadas. Vamos torcer que também consigamos levar para além do século 19 a forma como as mulheres são tratadas nos games e fora deles.