A mais emocionante resposta a Bolsonaro sobre trabalho infantil
Segundo o IBGE, o país tem quase 1 milhão de menores em situação de trabalho infantil e 800 mil, desempenhando atividades de acordo com a legislação
Em mensagem ao youtuber Henry Bugalho, publicada pela Carta Capital, a professora Dirce Pereira da Silva dá a melhor resposta à defesa do trabalho infantil de Jair Bolsonaro.
“Meu nome é Dirce Pereira da Silva e sou de Penápolis-SP, cidade em que nasci no dia 19 de dezembro de 1934. Diferentemente de você, portanto, não sou jovem: encontro-me a caminho dos 85 anos de idade e estou ciente de que cheguei ao rumo final de minha vida.
Justamente por me encontrar na etapa derradeira e última de minha existência, desejo complementar sua fala aos nossos irmãos brasileiros porque vivi o trabalho infantil na pele. Nunca mais terei cinco, dez ou quinze anos de idade –-todo esse tempo foi perdido para vencer a fome.
- Gaslighting: psicóloga de Harvard ensina como responder a um manipulador emocional
- Ator da Globo descobre doença crônica antes de cirurgia: ‘eu não sabia’
- 10 coisas sobre pessoas com depressão que você precisa saber
- Ucraniana entra para o Guinness Book ao correr 10 km com carrinho de bebê
O presidente da República, nascido aqui na vizinha cidade de Glicério-SP, disse que “desde os oito anos” fazia pequenos serviços rurais como colher e quebrar milho, apanhar bananas e as colocar em caixa, etc. Em tom irônico, afirmou que o dono da fazenda quase não estava por lá seu “capataz” (aquele que dá ordens no lugar do patrão) era Percy Geraldo Bolsonaro, ou seja, seu pai.
Aviso desde já que quem escreve esse texto é uma preta, neta de um casal de escravos que só foram alforriados após a Lei Áurea pelo lado paterno.
O meu avô João começou a vida sendo chamado de “preto João”, sem nome ou sobrenome – simplesmente apelidado como um animal qualquer. Começou a trabalhar com 4 ou 5 anos de idade, assim como a totalidade de minha família. Jamais soube quem eram os seus pais, pois negros existiam em senzalas apenas para que se reproduzissem.
A minha avó Rosa teve história bastante similar à do meu avô. A diferença foi apenas a de saber o nome de seu pai e de sua mãe, que sobreviveram até depois de 13 de maio de 1888. Nenhum deles, porém, teve infância, vida ou velhice. Ambos nasceram e morreram sem nunca ter aprendido a ler ou escrever, assim como jamais viram o mar. Meu pai, nascido em 1904, questionava-me se era verdadeiro o que ouvia falar“Dirce, aquela água toda é salgada de verdade?”.
Foi por pouco que não tivemos morte e vida severina – a vida foi longa para quase todos, exceto para meu avô e minha avó maternos, os quais morreram de fome bem antes dos 30. Minha avó materna, ao que sei, chamava-se Vitória e faleceu durante o parto da minha mãe, aos 24. Cinco meses depois, por tuberculose, morreu o meu avô Vicente, que à época somava 27 anos de vida.
Meu pai se chamava Marinho Aurélio da Silva e minha mamãe era Maria Rita Pereira da Silva, os quais nunca foram meus “capatazes”. Nunca possuíram terra que fosse deles e também nunca deram ordem em nome de seus chefes.
Meu avô, minha avó, meu pai, minha mãe, meus tios e meus primos trabalhavam sim, e muito, na colheita de café e de algodão nas fazendas aqui da região noroeste paulista, onde eu e o presidente Jair Bolsonaro nascemos.
Assim como toda minha família, eu fui também obrigada a trabalhar nisso desde meus 4 ou 5 anos.
Desejo sublinhar que o trabalho infantil não se tratava de uma escolha.
Trabalhar desde a infância era, para minha família, a única possibilidade de lutar organizadamente contra a fome. Meu trabalho vinha dessa necessidade e em nada me enobreceu, tal como jamais fez o mesmo com minha família toda.
Talvez esta necessidade de trabalhar para não passar fome venha desde quando meus ancestrais africanos vieram para o Brasil. Dentro de minha família e de tantas outras similares a ela jamais escutei que alguém se sobressaiu. A história parecia infinita: todos nasciam para trabalhar, reproduzir-se e, em seguida, morrer.
Se não houvesse fatalidades excepcionais em minha família, muito provavelmente eu mesma não conseguiria libertar-me desses grilhões da escravidão porque, embora ela já não existisse formalmente desde 1888, ainda havia a fome… e esta, impiedosamente, sempre nos rondava.
Quando o senhor presidente falou em “apanhar milhos”, confesso que senti um imenso vazio. Nunca tive um único brinquedo na vida que não fossem espigas de milho para que fossem as minhas filhas. Todas as minhas bonecas de milho tinham um nome, mas, já aos cinco anos de idade, eu era obrigada a acostumar-me com a ideia de ser a pior de todas as mães, pois sequer conseguia garantir algum futuro breve para essas “filhas”.
Será que o presidente da República ou alguém que jamais tenha passado fome conseguirá imaginar uma criança com 4, 5 ou 6 anos de idade que tinha espigas como filhas, e sentia a dor mais profunda que existe quando a própria mãe as arrancava das mãos de uma menina para cozinhá-las e as comer… e eu sequer podia lhes ofertar um velório digno?
Sentia-me canibalesca por ver que teria de comer minhas próprias “filhas” ou permitir que meus pais, avós ou tios as comessem. Enquanto isso, eu chorava. Muito. O senhor presidente não deve imaginar – e espero que jamais tenha de pensar – no quanto é traumático para uma criancinha ter de mastigar seus brinquedos, amados como filhos, e se calar… porque a mesa era grande, a família idem e a fome ainda maior.
Nasci no campo, mas durante o impulso da industrialização brasileira. Os trabalhos começavam a ficar cada vez mais escassos, e aí a fome começou a nos matar de forma literal.
Embora esse fato tenha ocorrido em 1939, jamais conseguirei esquecer-me dele: muito de longe avistei meu pai chorando enquanto conversava com minha mãe, pois ele sempre foi ensinado a não demonstrar fraqueza perante sua família, o que incluía desde meu avô, seu pai, até mim, a filha. Meu pai tinha medo, muito medo mesmo de que eu morresse, tal como as outras onze gravidezes que minha mãe perdeu.
Eu poderia ter onze irmãos, mas sou e fui filha única de um casal em plena década de 1930. Isso não era planejamento familiar – ninguém da minha família imaginava o que era isso. Muito ao contrário: faziam piadas sobre uma suposta ausência de virilidade do meu pai, ou então que a mamãe era amaldiçoada, pois “matou” sua mãe justamente no momento em que nasceu.
Até eu tinha medo de morrer, porque se minha mãe não conseguiu levar adiante os meus possíveis onze irmãos… por qual razão eu seria a mais forte? Somente pudemos descobrir que minha mãe nunca teve outros filhos porque, em 1996, num exame de rotina, o médico constatou que ela teve eritroblastose fetal. O problema é que, em 1996, minha mãe já vivia em estado vegetativo por sofrer do mal de Alzheimer. Eu somente pus fim àquele pesadelo da minha infância aos quase 62 anos de idade; meu pai pôde saber de tudo cerca de três meses antes de sua morte, a qual se deu em 01.05.1996.
Voltando ao passado, meu pai e minha mãe se mudaram para a cidade a fim de procurar trabalho: ele capinava terrenos, varria, carregava lixos, até que começou a trabalhar numa olaria. A mamãe não: era lavadeira e eu, ao seu lado, permitia-lhe ampliar o número de “freguesas”, como ela dizia.
O vô João ainda estava vivo quando entrei para a escola e aprendi a ler e escrever, graças a uma das “freguesas” de minha mãe. Ela comprou cadernos e lápis. Quando vi a professora, pensei que havia encontrado finalmente o que desejava ser mas, ao comentar isso em casa, minha avó já aconselhou o papai a não permitir que eu sonhasse tão alto assim, pois sofreria. Nem meu pai acreditava nisso: “uma professora preta? Acho que nem pode ter alguém assim”. Meu pai disse isto não por ser racista, mas por ser um preto analfabeto que nasceu em 1904 e que tinha, como única visão de mundo, a necessidade de trabalhar e sobreviver. O que se poderia esperar de um dos filhos de um casal de escravos supostamente libertos em 13.05.1888?
Só que houve, sim, a primeira professora preta: eu. Meu pai teve muito orgulho disso até a última frase de sua vida, quando disse “obrigado por existir, minha filha”.
Mas, enfim, naqueles tempos a escola pública era direcionada apenas à elite e, por isso, o ensino era bom e os professores, todos eles, recebiam bons salários. Dedicavam-se e eram existentes, tanto que com eles aprendi a aprender sempre. Se sou capaz de enviar um e-mail, algo impensável na década de 1940, é porque aprendi as lições primeiras e indispensáveis de qualquer aluno.
Havia um único problema: os cursos eram diurnos, todos eles, porque eram destinados a quem não trabalhava. Só vi cursos noturnos a partir da década de 1970 e, ainda assim, com reservas. Meus pais só me permitiram estudar se eu, pela manhã, frequentasse as aulas, mas, durante a tarde e o começo da noite, lavasse e passasse roupas junto com minha mãe… e então, madrugada adentro, fazia minhas lições e estudava à luz de lamparina. Minha média de sono era de aproximadamente três horas por dia.
O sono e a dor em meus músculos e em minhas mãos foram gritos sufocados em meu peito até dezembro de 1954, quando me tornei professora normalista (que lecionava para primeira a quarto anos do ensino primário). Meu avô não pôde ter o orgulho de me ver sendo respeitada pelas mesmas pessoas que sempre desrespeitaram a ele e à minha família toda.
Enquanto meu pai trabalhou na olaria, seu patrão mandava-nos as roupas de sua casa para que lavássemos. Acho que não chegava a somar 15 anos de idade quando aquele velho perguntou ao papai por quanto ele me “venderia”. Muita gente pensa que pobre não é honesto, mas a minha família toda sempre foi. O motivo era simples: a única coisa que possuíamos em nossas vidas era honra. Por isso mesmo o papai disse ao patrão que, se ele repetisse aquela pergunta novamente, seria morto… e quase foi: houve a demissão. Foi inevitável.
Trabalhei como professora efetiva da rede pública do estado de São Paulo por 49 anos e 08 meses, do início de 1955 até 2004, poucos antes da minha aposentadoria compulsória (que se daria quando completasse 70 anos de idade, em 19.12.2004). Nunca faltei ou cheguei atrasada a uma única aula durante todo esse período. Jamais deixei de estar dentro de uma sala de aula, em contato direto com meus alunos, e até negligenciei minha própria saúde para jamais me ausentar. Sabe por quê? Porque, como dizia minha mãe, se eu quisesse ser respeitada por meus colegas de trabalho, todos brancos, eu deveria ser dez vezes mais correta e proba que eles.
Meu salário de professora permitiu-me cuidar melhor do papai e da mamãe, a fim de que eles pudessem ter uma velhice tranquila. Consegui fazê-lo, mas ninguém imagina o preço que tive de pagar. Meus parentes e amigos pobres afastaram-se de mim porque se sentiam envergonhados em falar com uma professora, ao passo que colegas de trabalho não aceitavam a cor da minha pele.
Essa história poderia ser interessante caso considerássemos que minha conduta permitiu me transformar na professora que por maior tempo continuado lecionou na rede pública em toda a história do Estado de São Paulo.
Fui homenageada pelo governador do Estado em pessoa, durante um almoço especialmente dirigido a mim, mas… trocaria aquele almoço, aquela homenagem e qualquer outra coisa para não sofrer o que sofri.
Não sou tola. Sei que minha história é bonita e pode ser tocante. Tenho ciência até mesmo de que minha trajetória poderia ser utilizada como exemplo de alguém que veio da miséria extrema, superou tudo e encerrou sua carreira com muita dignidade, mas somente eu sei o preço que paguei por isto. Infelizmente só me apaixonei uma vez na vida e fui correspondida, mas ele era branco e eu não. A mãe dele foi contrária ao casamento e, sem forças para mais lutar, eu o vi partir para a cidade de São Paulo, onde morreu anos depois.
Não tive amores, não tive filhos, fui ignorada durante meus primeiros vinte anos de trabalho como professora e, às vésperas de completar 70 anos de idade, conquistei o que me negaram ao longo de toda a vida: respeito.
A solidão maltrata demais. Quantas pessoas deixaram de ser meus amigos por medo? Durante minha infância, todos, sem exceção. Se minha trajetória pode ser vista como um belo romance, asseguro: vivê-la na minha pele negra fez a carne que há por debaixo dela sentir muita, muita dor.
Nenhuma criança possui vocação para o crime: em 84 anos de vida posso testemunhar que nunca tive um único cheque devolvido. Se algum dia praticasse crimes, minha mãe e meu pai morreriam de desgosto, pois viveram honestamente… tão honestamente que, em nove décadas de vida, jamais viram o mar.
Não sou tola para pensar que a realidade cultural, social e política é, hoje, similar àquela de minha época. Já não estamos em 1934. O que isto significa? Que o senhor presidente e muitos outros já deveriam ter solucionado essa questão há muitos anos, até mesmo para “enobrecer” seres humanos, mas na época correta.
Lugar de criança não é no trabalho, nem no crime, nem em qualquer coisa diferente de escola e formação.
Esforce-se para que o Estado ofereça estudo de boa qualidade, universidade para quem assim desejar, cursos técnicos, etc. O senhor, ao naturalizar sem pudor algum a necessidade de trabalho infantil, dizendo que ele “não faz mal a ninguém”, oferece às crianças e aos jovens deste país somente a servidão!
O que pensar sobre isso? Gostaria que o presidente Jair Bolsonaro me oferecesse uma única resposta: se uma criança com 8, 10, 12 ou 14 anos de idade perguntar-me se vale a pena trabalhar para receber UM SALÁRIO MÍNIMO (ou menos) como retribuição de seu trabalho, mas ao mesmo tempo um traficante garantir e provar a essas mesmas crianças que, no mundo do crime, elas receberão 10 MIL REAIS MENSAIS… o que elas optariam?
O presidente acredita, de fato, que trabalhar por 998 reais ou até menos que isso “enobrece” alguma criança ou jovem? Não estou falando aqui de adultos, porque esses – na maioria dos casos – já têm discernimento sobre as consequências de se envolver no mundo do crime. Provavelmente, aliás, envolveram-se com o crime porque jamais mostraram a essas pessoas, quando ainda eram crianças, uma outra forma de mundo que não fosse a barbárie.
Crianças e jovens ainda estão em processo de formação de valores e caráter. A escola, garanto, é o único local em que aprenderão valores mais “nobres”. Ao propor trabalho às crianças e aos jovens, o Presidente da República incentiva a maior chaga desse país, que é a “opção” entre perpetuar-se na miséria física ou na miséria moral.
Peço ao senhor presidente que tome vergonha na cara!
Perdoe-me, jovem Henry, por considerações tão extensas, mas… não cheguei aos 84 anos de idade para ser covarde. Demorei muitas horas para escrever tudo isso porque tive de contar com a ajuda de terceiros para digitar. Está frio e, por tal razão, minhas mãos estão mais trêmulas que de costume, tenho mal de Parkinson, mas estou viva, sou cidadã e nunca compactuei com regimes ditatoriais como esses que o presidente idolatra – incluindo a ditadura militar deste país.
Vale lembrar que eu já era professora e tinha 30 anos de idade em 1964, quando depuseram João Goulart e implementaram uma ditadura civil-militar no país. Um dia, se você quiser, contarei em detalhes o quão horrível foi aquele período – chegaram a ameaçar de MORTE minha mãe, meu pai e minha velha avó Rosa caso eu não denunciasse meus colegas “subversivos”.
Abraços,
Dirce Pereira da Silva”