Professor rompe barreira do preconceito e ensina crochê na prisão
Gustavo Silvestre, de 40 anos, sempre trabalhou como estilista, mas há dois anos se tornou também professor voluntário dentro da penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos (SP). Ele rompe as barreiras do preconceito e, com uma agulha e renda em mãos, transforma a vida de seus alunos detentos levando o conhecimento das técnicas do crochê.
Tudo começou há cinco anos, quando o crochê, de fato, entrou em sua rotina. “Fui fazer uma aula na Novelaria (loja que oferece oficinas de artes manuais), e talvez tenha sido o primeiro aluno homem que tiveram”, relembra Gustavo ao Catraca Livre.
O resgate de uma tradição familiar também conduziu o professor neste caminho. “A partir disso nunca mais parei de fazer crochê. Era uma coisa que já estava na minha família, isso também facilitou, uma memória, um laço afetivo com meu passado, com minha bisavó que eu não conheci e que deixou trabalhos lindos.”
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A desilusão e a busca pela moda consciente e responsável
“Eu trabalhei com moda convencional durante uns 10 anos e teve um momento que comecei a questionar o sistema de produção dela, como polui. Poxa, olha o que está por trás daquilo que eu me propus a fazer?”, conta. Este foi o despertar para que ele buscasse alternativas que fugissem da efemeridade da moda e do fast fashion.
“O que eu vou fazer com todo esse conhecimento que eu tenho sobre moda? Jogar fora tudo o que eu estudei e tudo o que aprendi nesses anos de trabalho?. Aí comecei a ver que no mundo e aqui no Brasil surgiram algumas tentativas de elaborar uma moda que tivesse um pouco mais de consciência, menos impacto e mais responsabilidade social”, diz.
Então, ele se aproximou desses projetos, com o objetivo de fazer algo que pudesse ao menos contribuir para a diminuição desse impacto da indústria da moda em massa. “Foi aí que comecei a ver que as práticas manuais, o retorno dessa coisa feita à mão, o slow fashion e técnica como o crochê dariam conta dessas questões”, resume.
Como são as aulas de crochê na penitenciária
A proposta de montar um curso de crochê dentro da penitenciária chegou aos ouvidos de Gustavo por meio de Lica Isak, uma das proprietárias da Novelaria. “Eu topei”, afirma orgulhoso. “Das coisas que geram renda, dos cursos técnicos que eu poderia pensar, acho que crochê é uma coisa incrível porque é uma agulha e uma linha. Com pouquíssimas ferramentas você consegue mudar a realidade de uma pessoa”, completa.
Assim nasceu, em 2015, o Projeto Ponto Firme. Inserido na categoria de ensino, o curso técnico de formação acontece uma vez por semana e são duas aulas por dia. A cada 12h que os detentos passam no curso há um dia de remissão de pena. Atualmente, a turma possui 26 pessoas.
Mais de 150 alunos já passaram pelo curso, cujo formato é bem orgânico. “Tem alunos que estão lá e que vão ficar mais tempo comigo, tem alunos que já estão com liberdade provisória, prestes a sair. Então é muito dinâmico, pois cada um tem uma pena específica”, explica Gustavo.
“Eu imaginei que seria uma janela no tempo e no espaço e quando eles entrassem naquela sala tinha que ser um outro clima. Eles já seguem regras o tempo inteiro, um sistema cheio de formalidades e regras, de funções. Poxa, aqui é um lugar deles serem livre”, define ele.
A cada seis meses são distribuídos os certificados, com a quantidade de horas que todos compareceram ao curso. Para marcar os estágios também são organizadas exposições na penitenciária com as peças produzidas durante as aulas.
Além disso, os participantes recebem material para o curso e também para usarem em seus projetos pessoais. Disso, conseguem gerar um benefício. Eles trocam por sabonete, itens de higiene no geral ou roupa, sapato, dentro do ambiente da cadeia.
Sobre ensinar uma habilidade dita feminina, o estilista diz que “trabalha com muito humor”. “Se alguém falar, deixa falar. Eles são muito apropriados àquilo que estão fazendo. É muito legal ver uma técnica como essa sendo efetuada por um homem”.
Transformação de dentro e de fora
“Eu tenho hérnia de disco e tem dias que tem que carregar umas sacolas pesadas, com vários materiais. Onde eu fui me meter, que loucura, né?”, ele se indaga vez ou outra. “Mas eu saio de lá justamente agradecendo: que bom que eu vim”, então vem a recompensa do trabalho realizado.
“Eu falo muito para eles [os alunos], crochê é melhor que videogame, você entra e quer passar de fase. Tem muitos artistas lá dentro [da prisão], que me surpreendem demais. Tem muita potência, muita vida, muita verdade nesse trabalho deles”, comenta.
A reinserção social de quem sai do presídio é uma perspectiva para o projeto de Gustavo. “Em dois anos conseguimos ver algumas sementes e algumas respostas. Os que já são melhores viraram monitores e ajudam a ensinar os demais. Já tenho três alunos, um está em liberdade, trabalhando, inclusive fazendo trabalhos comigo no Ateliê Vivo”, exemplifica.
Os caminhos do fio
“Ninguém nasce para o crime. Há uma série de questões sociais, políticas, culturais e históricas que levam a pessoa a ter mais probabilidades de entrar no crime. A pergunta não é o que o cara fez, mas o que levou ele a fazer”, diz Gustavo. “Precisa levá-los para uma corrente positiva, de construção, não de destruição”, reitera.
“Eu digo que eu não ensino nada. Eu vou lá para aprender. Estou há dois anos aprendendo nesse curso. Estou ali como uma ferramenta, como um meio. O que eles me ensinam ali todos os dias que é o grande aprendizado”, conclui.