Slams e saraus dessacralizam literatura em Feira do Livro de Ribeirão
Literatura periférica é destaque na 19ª edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto; confira o que está rolando no evento que acontece até domingo
Da ancestralidade africana fincada na oralidade dos griôs _ tradição secular que consiste no compartilhamento de histórias, conhecimentos ou tradições de um determinado povo_, a poesia ganhou as ruas de Chicago, na década de 1980, em forma de batalha.
Dali para o mundo surgia o movimento do spoken words que, em 2008, sob regência da atriz paulista Roberta Estrela D’alva, chegaria a São Paulo, abrindo caminho para a dessacralização da literatura.
Bares, praças, esquinas, vielas, becos se tornaram palco de resistência e panfletagem da poesia falada. Versos e rimas, inspirados na rotina periférica de seus porta-vozes, ganham eco.
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Como os baianos da Tropicália ou os mangueboys recifenses, ergue-se um novo estandarte da cultura à margem. Surge, de São Paulo para o Brasil, a insurreição dos slams e saraus da periferia – a resposta de uma geração que optou desobedecer os parâmetros tradicionais da linguagem culta.
Na 19ª edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (SP), que acontece até o próximo domingo, 16, a literatura periférica tem lugar cativo.
Com o tema “Entre uma História e Outra, uma Nova História”, a programação da segunda maior feira literária do país reúne mesas de debate, oficinas, apresentações literárias e protagonistas do movimento como Sérgio Vaz, Amara Moira, Luiza Romão, Ni Brisant, Slam da Cana, Disseminas entre tantas outras atrações.
Literatura dos canaviais
Realizado todo último domingo do mês, o Slam da Cana surgiu para incluir Ribeirão Preto na etapa estadual de poesia falada, a SLAMSP.
Organizado por Beto Souza e Natália Marques, membros do coletivo Encontrão Poético, o projeto resgata a memória dos trabalhadores da cana-de-açúcar, responsáveis por uma das principais atividades agrícolas e econômicas da região. “Toda essa tecnologia, conhecida hoje como mar de cana, foi trazida por africanos e desenvolvidas pelos afrodescendentes. Ou seja, o facão é um instrumento, uma tecnologia africana desenvolvida no Brasil. Por isso nosso símbolo é o facão, em memória daqueles que viveram e vivem derrubando cana. Às pessoas que construíram esse país”, destaca Natália.
Sobre a participação na feira, Souza ressalta a promissora cena de slams e saraus da cidade. “Se você andar por aí, vai achar uma batalha de poesia por semana, fora os saraus. Tem muita iniciativa da literatura periférica acontecendo. É importante que os coletivos ocupem esses espaços para as pessoas conhecerem e saberem o quanto isso é nosso”.
Natália chama atenção para a função da oralidade como resistência e preservação da ancestralidade africana. “A gente ressalta muito essa relação da resistência, e não só essa que é importante agora; falamos também da que sempre existiu – a resistência do povo negro. E a poesia, nada mais é que a oralidade. Então acho que é muito importante nesse momento preservar essa tradição que acontece há mais de 400 anos no Brasil e o quanto é necessário ver esse movimento da literatura periférica feito por jovens”.
Destaca também a relação da ancestralidade em manifestações culturais como o rap e o samba. “Para a gente poder conectar nossa ancestralidade com isso que acontece agora, no contemporâneo, com o rap, a poesia e os slams, tem uma potência ainda maior. Se a gente pensar, a relação da poesia sempre existiu, no samba, no partido alto. O que a gente tá fazendo é dar sequência a essa manifestação de resistência.”
Literatura periférica x geração Manguebeat
Para o jornalista e escritor Xico Sá, um dos destaques da programação, o movimento dos slams e saraus pode ser considerado uma resposta ao atual momento do país. “Eles estão dizendo: ‘Olha, nós temos uma literatura, nós temos uma história para mostrar’.”
Apesar disso, rejeita o rótulo “marginal” atribuído ao movimento. “Não podemos ficar só nesse rótulo de literatura marginal. É literatura. Eu não gosto muito disso de rótulo porque é pequeno e deixa circunscrito a um certo tipo de consumo.”
Ressalta ainda que o movimento não se restringe a Rio de Janeiro ou São Paulo, mas que acontece no Brasil inteiro. E o comparou à geração Manguebeat, da qual foi um notório entusiasta no início dos anos 1990 na capital pernambucana. “Esse movimento todo, que não é só no Rio ou em São Paulo, é muito parecido com o que aconteceu naquele período. O núcleo da Manguebat tinha a classe média do Recife, mas junto ao pessoal de Peixinhos, um bairro pobre quase alagadiço entre Olinda e Recife, que foi muito significativo para a Manguebeat, por meio dessa união”.
Ao avaliar a contribuição do movimento para os dias atuais, vê nos poetas anônimos a chance de renovação para o hip hop brasileiro. Sobretudo, devido à fusão da literatura com o rap. “São essas coisas que dão esperança, que vão organizar uma resistência, um sarau, com a molecada do Nordeste. É daí que virá uma bela de uma resposta.”
Literatura é gentileza
Criado há 19 anos com o objetivo de reunir artistas da periferia e desconstruir o estereótipo elitista associado à cultura, o Sarau da Cooperifa se tornou símbolo de resistência artística. Para o poeta Sérgio Vaz, seu idealizador, a literatura periférica pode ser encarada com um canal de entrada na mente dos jovens.
É onde a literatura é tratada com gentileza. “Eu faço a gentileza de falar, e você, a de ouvir. É nessa troca que entra a literatura. Então, de alguma forma, a gente está dessacralizando algo muito sagrado. Para nós, do sarau, sagrado não é quem escreve, é quem lê”.
Rap, o primeiro grito de independência
Porta-voz de uma geração de poetas e escritores, Vaz credita ao rap nacional a principal inspiração para o surgimento da Cooperifa. “A Cooperifa é fruto do rap. Vem das posses, de ocupar o lugar simples, que era o bar. Tem a ver também com os griôs, da ancestralidade da fala, da poesia oral. Até porque o rap foi o primeiro grito de independência da periferia, uma coisa que trouxe voz, gritando lá no passado, e a gente se juntou a isso. Por esta razão, acho que os slams e os saraus não só bebem como devem a essa fonte.”
Responsável por um dos mais importantes projetos literários do país, Vaz acredita que o movimento representa a ressignificação da rua, do bar, das praças, dos viadutos e de espaços onde são realizados slams e saraus. “Lugares que não eram reconhecidos como ponto de cultura hoje fomentam a literatura. Se tornou antídoto contra o que está acontecendo no país.”
Poesia da diversidade: ou a construção de uma nova narrativa
Vice-campeã da etapa nacional de slams _ a primeira mulher _, Luiza Romão, que também foi destaque da programação em Ribeirão, ressaltou o caráter diversificado da poesia periférica. Destacou também a importância da criação de uma nova narrativa e como esta diversidade reverbera nos temas abordados. “É muito interessante quando a feira convida autores periféricos, feministas, trans, abrindo espaço para vozes que durante muito tempo foram silenciadas _ mas que sempre existiram. É importante porque estamos combatendo uma história única.”
O impacto
Segundo pesquisa recente, os slams acontecem em mais de 149 comunidades no Brasil inteiro. Em 18 estados, entre os quais Acre, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, evidenciando a potência da literatura periférica. “Se você olhar para a história da literatura, existia uma relação muito privada com o livro – você lê o livro sozinho, no silêncio da sua casa. E o slam e o sarau, em geral, promovem a literatura no espaço público. A literatura volta a ter o aspecto coletivo que sempre teve. Como experiência coletiva e pública”, explica Luiza.