Leia trecho da autobiografia de Matthew Perry, o Chandler de Friends

Ator relatou batalha contra o álcool e drogas em memórias francas e comoventes

29/10/2023 13:48

No livro de memórias “Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível”, Matthew Perry, o ator que ficou famoso por interpretar Chandler Bing, na série “Friends”, relatou a sua batalha contra o vício em álcool de forma franca e comovente. O ator também contou sobre sua família, seus relacionamentos amorosos e sua carreira.

Perry, morreu no último sábado, 28, aos 54 anos.

Abaixo, leia trecho do primeiro capítulo:

detalhe da capa da autobiografia "Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível"
Capa da autobiografia “Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível” - Divulgação/bestSeller

“Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível”

Oi, meu nome é Matthew, embora talvez você me conheça por outro nome. Meus amigos me chamam de Matty. E eu devia estar morto. Se quiser, pode considerar o que vai ler agora como uma mensagem do além, do meu além. É o Sétimo Dia da Dor. E, quando digo Dor, não estou falando de bater o dedão em uma quina nem do filme Meu Vizinho Mafioso 2. Escrevo Dor com letra maiúscula porque foi a pior Dor que já senti- era o Ideal Platônico da Dor, a Dor primordial. Já ouvi as pessoas dizerem que a pior dor é a do parto: bem, aquela era a pior dor imaginável, mas sem a felicidade de ter um recém-nascido nos braços no fim de tudo. E era o Sétimo Dia da Dor, mas também era o Décimo Dia Sem Movimentos. Se é que você me entende. Fazia dez dias que eu não cagava – pronto, explicado.

Havia alguma coisa muito, muito errada. Não era uma dor lânguida, latejante, como uma dor de cabeça; também não era uma dor aguda, penetrante, como a da pancreatite que tive aos 30 anos. Era uma Dor diferente. Parecia que meu corpo estava prestes a explodir. Que minhas entranhas tentavam escapar de mim. Era uma Dor séria pra caralho. E os sons. Meu Deus, os sons. Em geral, sou um cara bem quieto, tranquilo. Mas naquela noite eu berrava a plenos pulmões. Em certas noites, quando o vento sopra na direção certa e os carros já estão todos na garagem, é possível ouvir os sons horríveis de coiotes estraçalhando algo que uiva em Hollywood Hills. No começo, parece o barulho de crianças rindo, muito ao longe, até você perceber que não é bem isso – são os sinais da morte. Mas a pior parte, sem dúvida, é quando os uivos param, porque aí você sabe que a criatura que estava sendo atacada já morreu. É um inferno. E, sim, existe um inferno. Não acredite em ninguém que diga algo diferente disso. Eu já estive lá, ele existe e ponto final. Naquela noite, eu era o animal sob ataque. E ainda gritava, lutando com unhas e dentes para sobreviver.

O silêncio significaria o fim. E mal sabia eu o quanto estava próximo disso.

Na época, eu morava em uma casa de reabilitação no sul da Califórnia. Isso não era surpresa – passei metade da minha vida em centros de tratamento ou casas de reabilitação. É uma situação aceitável quando você tem 24 anos, mas nem tanto aos 42. Naquele momento eu tinha 49 e continuava lutando para me livrar do fardo do vício. Àquela altura, eu já sabia mais sobre dependência química e alcoolismo do que todos os orientadores e a maioria dos médicos desses estabelecimentos. Infelizmente, esse autoconhecimento não serve de nada. Se o segredo para a sobriedade fosse esforço e informação, esse monstro não passaria de uma lembrança distante e desagradável para mim. Minha estratégia para continuar vivo tinha sido me transformar em um paciente profissional. Não vamos medir as palavras aqui. Aos 49, eu ainda tinha medo da solidão. Quando ficava sozinho, meu cérebro maluco (maluco apenas nesse sentido, aliás) encontrava qualquer desculpa para recorrer ao impensável: álcool e drogas.

Depois de ter décadas da minha vida arruinadas por esse hábito, sinto pavor de retomá-lo. Não sinto medo algum de falar na frente de vinte mil pessoas, mas basta uma noite sentado no sofá, vendo TV, para ficar apavorado. Tenho medo da minha própria mente; medo dos meus pensamentos; medo de a minha cabeça me incentivar a recorrer às drogas, como já fez tantas vezes. A minha mente quer me matar, e eu sei disso. Sou constantemente tomado por uma solidão sorrateira, uma ânsia, e permaneço apegado à ideia de que algo exterior vai ser capaz de me consertar. Mas eu tinha todas as coisas exteriores possíveis!

Julia Roberts é minha namorada. Não importa, você precisa beber. Acabei de comprar minha casa dos sonhos – com vista para a cidade toda! Impossível ficar feliz com isso sem um traficante. Ganho um milhão de dólares por semana – venci na vida, certo? Quer uma bebida? Ah, lógico. Muitíssimo obrigado. Eu tinha tudo. Mas esse tudo era uma ilusão. Nada resolveria aquilo. Eu levaria anos para chegar perto de encontrar uma solução. Por favor, não me leve a mal. Todas essas conquistas – Julia, a casa dossonhos, um milhão por semana – eram maravilhosas, e vou ser eternamente grato por elas. Sou um dos homens mais sortudos do planeta. E, nossa, como eu me diverti. Só que nada disso era a resposta. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu ainda participaria do teste para Friends? Sem dúvida alguma. Eu beberia de novo? Sem dúvida alguma. Se não fosse o álcool para acalmar meu nervosismo e me ajudar a me divertir, eu teria pulado do alto de um prédio aos vinte e poucos anos.

Meu avô, o maravilhoso Alton L. Perry, cresceu com um pai alcoólatra, e, por isso, nunca tocou em bebida durante todos os seus longos e maravilhosos 96 anos. Eu não sou o meu avô. Não estou escrevendo isto tudo porque quero que sintam pena de mim, mas porque é a verdade. Escrevo porque alguém pode estar se sentindo confuso por saber que deveria parar de beber – assim como eu, essa pessoa tem todas as informações e entende as consequências de suas ações -, mas não consegue parar. Vocês não estão sozinhos, meus irmãos e minhas irmãs. (No dicionário, a palavra “viciado” devia vir acompanhada de uma foto minha, olhando ao redor, muito atordoado.)

Na casa de reabilitação no sul da Califórnia, meu quarto tinha duas camas queen e vista para West Los Angeles. A segunda cama era ocupada pela minha assistente/melhor amiga, Erin, que é lésbica e cuja amizade aprecio por me oferecer a alegria do companheirismo feminino sem a tensão romântica que pareceu estragar minha amizade com mulheres heterossexuais (sem contar que podemos conversar sobre mulheres gostosas). Nós tínhamos nos conhecido dois anos antes, na clínica de reabilitação onde ela trabalhava. Não permaneci sóbrio naquela época, mas logo percebi que ela era maravilhosa em todos os sentidos e imediatamente a roubei de lá e a contratei como assistente, e ela se tornou minha melhor amiga. Ela também entendia a natureza da dependência química e compreendia as minhas dificuldades melhor do que qualquer médico que já encontrei. Mesmo que a presença de Erin melhorasse a situação, passei muitas noites naquele lugar sem conseguir dormir. O sono é um problema sério para mim, especialmente quando estou em lugares assim. E, para além desse fato, acho que nunca na vida dormi por mais de quatro horas seguidas.

E o meu hábito recém-adquirido de assistir a documentários sobre prisões não ajudava – eu estava me desintoxicando de tanto Frontal que meu cérebro fritou a ponto de me convencer de que eu era um prisioneiro, e aquela casa de reabilitação era um presídio de verdade. Meu psiquiatra diz que “a realidade é um gosto adquirido”. Bom, naquela altura eu já tinha perdido o gosto e o cheiro da realidade; eu estava com a Covid da mente, e estava completamente delirante. Mas a Dor não era um delírio; na verdade, doía tanto que eu tinha parado de fumar, e, se você soubesse o quanto eu fumava, saberia que esse era um sinal evidente de que havia alguma coisa muito errada. Um dos funcionários do lugar, cujo crachá poderia muito bem dizer Enfermeiro Cuzão, sugeriu que eu tomasse um banho com sulfato de magnésio para aliviar o “desconforto”. Não dá para tratar uma fratura exposta com um Band-Aid; não dá para colocar alguém sentindo tanta Dor em um banho com sais. Mas a realidade é um gosto adquirido, lembra?


“Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível”
Autor: Matthew Perry
Prefácio: Lisa Kudrow
Editora: BestSeller
Páginas: 294
Ano: 2023
Preço: R$59,90