Netflix: “Cidade Invisível” alcança o sucesso, mas esquece do protagonismo indígena

A série fala sobre a vida de um agente da polícia ambiental que ao buscar evidências da morte de sua amada descobre a existência de entidades folclóricas

Logo após as bem-sucedidas obras brasileiras “Bom Dia, Verônica” e “Tudo Bem Até o Natal que Vem“, a nova aposta da Netflix, “Cidade Invisível”, estreou no dia 5 de fevereiro e está dando o que falar nas redes sociais. A grande busca para ver a série pode ser explicada pelo fato de abordar sobre um tema pouco explorado no país em obras audiovisuais, o folclore brasileiro. Dentre as críticas recebidas, a série levantou questionamentos sobre a falta de protagonismo indígena, apropriação cultural e reforço de estereótipos da cultura indígena.

Netflix: “Cidade Invisível” alcança o sucesso, mas esquece do protagonismo indígena
Créditos: Reprodução/Netflix
Netflix: “Cidade Invisível” alcança o sucesso, mas esquece do protagonismo indígena

Estrelado por dois artistas nacionalmente conhecidos, Marco Pigossi (Eric) e Alessandra Negrini (Inês/Cuca), a história também conta com a participação Victor Sparapane (Manaus/Boto Cor-de-rosa), Wesley Guimarães (Isac/
Saci), Fábio Lago (Iberê/Curupira), Jessica Córes (Camila/Iara), Jimmy London (Tutu/Tutu Marambá) e Eduardo Chagas (Sr. Antunes/Corpo-seco).

O roteiro foi escrito pelo casal brasileiro Raphael Draccon e Carolina Munhóz. A direção é de Carlos Saldanha, o mesmo do filme “Rio” e da saga “A Era do Gelo”.

De acordo com o site What’s on Netflix, “Cidade Invisível” foi o programa de TV mais popular da Netflix no Brasil, e ficou entre os 10 melhores na França, Nova Zelândia e Espanha, visto no dia 13 de fevereiro. Segundo Flix Patrol, o programa de TV estava entre as 10 séries mais populares em 12 países, no dia 13 de fevereiro. No Brasil, já são dias ocupando a primeira posição.

A história

A trama gira em torno de Eric, um policial ambiental que perde sua mulher de uma forma misteriosa em uma floresta de um vilarejo que é alvo de disputa de uma poderosa construtora que deseja construir um luxuoso resort na Vila Toré, localizada aos redores no Rio de Janeiro. O dia em ela é encontrada morta é o mesmo que foi realizado uma festa junina no local.

Eric tinha recusado o convite da esposa em ir na festança, então apenas recebeu a informação da morte via telefone. Ao chegar no lugar, uma das primeiras ações dele é ver o corpo da amada estirada no chão, com os olhos brancos – há suspeitas de que tenha sido o fogo na floresta que tenha a matado, porém não é confirmado no momento da cena.

Personagem de Marco Pigossi no momento em que encontra o Boto Cor-de-rosa em uma praia
Créditos: Reprodução/Netflix
Personagem de Marco Pigossi no momento em que encontra o Boto Cor-de-rosa em uma praia

Ainda no local, Eric encontra a filha Luna, que tinha aparentemente tinha sido seduzida para entrar na floresta e assim se perdendo nela. Ela reaparece apenas depois de sua mãe já estar morta, e por isso, mais um suspense é colocado em jogo.

Ao decorrer dos episódios são apresentados os personagens que interpretam as entidades espirituais, retiradas do folclore brasileiro, como a Cuca, Iara, Saci e até mesmo o Boto Cor-de-rosa, originários da cultura indígena brasileira. Nesta história, eles aparecem em um cenário urbano, coexistindo com os seres humanos.

Invisibilização do povo indígena

Pelo grande sucesso que está fazendo, a série já coleciona um grande número de pessoas comentando nas redes sociais sobre ela. Recheada de elogios, a obra também recebeu críticas, principalmente de pessoas indígenas que não se sentiram representadas assistindo, sobretudo porque os personagens retirados da cultura indígena brasileira pela série não são interpretados por nenhum ator indígena, tampouco fazem parte da figuração.

Fabrício Titiah, ativista indígena e pertencente ao Povo Pataxó HãHãHãe, conta que teve dificuldade de assistir a obra desde o começo porque parava para questionar-se cena a cena.

“O sentimento ao assistir foi de invisibilidade. Eu me senti invisibilizado. É como se eles retratassem as nossas entidades da forma que eles entenderam que era pra ser. Fiquei triste por ver que nosso saber passado de geração em geração através da oralidade foi deixado de lado”, disse. “Faltou eles estudarem mais sobre as nossas tradições, entender o significado verdadeiro de cada coisa. E ficou a indagação: Como que a série valoriza esses saberes se os donos destes saberes não estão representados?“, questiona.

“Iara” é interpretada pela atriz Jessica Córes em “Cidade Invisível”
Créditos: Reprodução/Netflix
“Iara” é interpretada pela atriz Jessica Córes em “Cidade Invisível”

“Tenha muito respeito e cuidado quando for falar do seu sagrado”, diziam os avós e anciãos da aldeia de Fabrício. Para ele, foi agoniante assistir a série por conta “de ver o nosso saber sagrado ser desrespeitado muitas vezes na série, foi como se dissessem que o saber que meus mais velhos me passaram não tivessem valor”.

Alice Pataxó, ativista e comunicadora indígena, reconhece a aclamação da série e a valorização do folclore brasileiro, mas também problematiza a falta de protagonismo indígena nela.

“Não existe protagonismo indígena e muito menos somos citados no meio disso. Algo que nos pertence! A série é um outro jeito da dramaturgia estar nos apagando da nossa própria história”, explica. “Porque a partir do momento em que eles desvinculam isso da gente, dos nossos territórios, não tem como falar de folclore e muito menos falar de culturas, lendas e mitos indígenas”, continua.

Para ela, o protagonismo indígena na série e em outras obras que aborda a cultura dos indígenas brasileiros deveria ser algo levado mais a sério.  “Além de ser um fato de representatividade pra gente, se enxergar nesse meio, existe também a falta de oportunidades que os nossos têm, que muitas vezes são tiradas por pessoas brancas“, disse.

Apropriação cultural

A apropriação cultural também foi um debate levantado por um dos ativistas, já que foram tirados elementos de sua cultura e transformados ao olhar de pessoas brancas.

Para se entender, apropriação cultural acontece quando uma cultura adota elementos específicos de outra cultura. Podem ser ideias, símbolos, artefatos, imagens, sons, objetos ou aspectos comportamentais que, uma vez retirados de seus contextos culturais originais, podem assumir significados muito diferentes.

Alessandra Negrini interpreta a personagem “Cuca” em “Cidade Invisível”
Créditos: Reprodução/Netflix
Alessandra Negrini interpreta a personagem “Cuca” em “Cidade Invisível”

“Por exemplo, Alessandra Negrini, que se diz apoiadora dos povos indígenas, mas que tá fazendo parte disso, né? E que eu também já problematizei ela outras vezes, porque até ela já se vestiu, usou fantasia indígena e isso realmente é inaceitável. A gente precisa falar de como a gente apoia a luta indígena. Só falar das nossas histórias não é o suficiente, principalmente falar sobre as nossas histórias e não nos colocar no meio delas“, lamenta Alice Pataxó.

“Como é que a gente fala de folclore [brasileiro], sem falar de culturas indígenas e sem deixar isso claro de que realmente é algo importante pra determinado corpo. É uma coisa que foi completamente modificada pra entrar nesse modelo que a cultura brasileira gostaria, né?”, indaga a ativista.

Para a comunicadora indígena a obra pode ser considerada uma apropriação. “É uma apropriação das nossas crenças e que nos exclui. A gente se refere a diversas outras situações, como hábitos, como alimentação. Muita gente até hoje fala, chega pra mim e fala que o churrasco, ele não é indígena, que ele é gaúcho, que o chimarrão, ele é gaúcho e isso se tornou cultura brasileira e deixou você ser a nossa cultura”, exemplifica citando comidas típicas brasileiras que foram apropriadas dos indígenas e que atualmente são consideradas de outras culturas.

O reforço de estereótipos da cultura indígena

A história do povo indígena, mesmo que seja contada pelos livros de história nas escolas desde a fase primária, nem sempre é retratada de uma forma respeitosa pelos autores, principalmente pelo fato da estereotipação de um estilo de vida que é cultivado por anos nas aldeias resistentes do Brasil.

Titiah ressalta que no exterior exista uma visão deturpada sobre a cultura e a história do país. “Muitos pensamentos ainda são frutos da colonização. É muito comum ver gringos falando que ‘no Brasil só tem índio’ (o entendimento de indígena na visão da colonização, ou seja, ‘selvagens’) ou ‘No Brasil tudo é samba e carnaval o ano inteiro’. Por isso a minha preocupação de uma grande produção como a série, reforçar ainda mais estereótipos desta natureza”, explica.

Fábio Lago da a vida ao personagem “Curupira” em “Cidade Invisível”
Créditos: Reprodução/Netflix
Fábio Lago da a vida ao personagem “Curupira” em “Cidade Invisível”

“Reforçar a visão de uma ‘magia’, não entender e perceber que estes seres são sagrados para os povos originários. A série vende a ideia de ‘mistério’, mas qual a origem desse mistério que eles retratam? Entende o quão sério é esse debate? Nosso sagrado não é entretenimento”, afirma o ativista.

Para ele, é notório a falta de estudo sobre sua cultura ao retratada na série. “Não vir conhecer a nossa história na base,  para nosso povo caracteriza desrespeito ao nosso sagrado. E como alcança um grande público, nosso medo é que a série possa reforçar ainda mais pensamentos errados sobre nossa cultura. Isso é muito preocupante”, finaliza.

A Netflix, as produtoras responsáveis pela obra, assim como autores Raphael Draccon e Carolina Munhóz foram procurados pela Catraca Livre, mas até o fechamento desta reportagem não responderam. O espaço continua aberto caso haja interesse em comentar sobre os fatos expostos.