Raquel da vida real critica aspectos de ‘O Outro Lado do Paraíso’
E mais: Juíza Mylene Pereira Ramos sugeriu reviravolta para personagem de Erika Januza
A novela “O Outro Lado do Paraíso”, no ar na faixa das 21h da TV Globo, vem causando repercussões positivas e negativas entre o público com relação às sucessões de acontecimentos mirabolantes e reviravoltas um tanto quanto fantasiosas.
Embora Walcyr Carrasco, autor do folhetim, tenha passado do ponto em alguns núcleos da trama – como a abordagem caricata da família do homossexual Samuel (Eriberto Leão) –, outros temas como o da juíza Raquel, interpretada por Erika Januza, estão sendo retratados de forma fiel à realidade.
Pelo menos esta é a percepção de Mylene Pereira Ramos, Juíza do Trabalho, titular da 20a. Vara do Fórum Trabalhista da Zona Sul de São Paulo.
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Com uma trajetória de vida semelhante à da personagem da novela, a Magistrada também enfrentou preconceitos por ser negra e de origem humilde. Porém, os obstáculos serviram para que suas conquistas fossem ainda mais gratificantes.
“O autor está conseguindo abordar de forma bastante realística a história da Raquel, que sim, parece muito com a minha própria”, afirmou em entrevista exclusiva ao Catraca Livre.
Mylene destacou, também, alguns pontos negativos da história, como o fato de Raquel ter se envolvido no julgamento da guarda do filho de Clara (Bianca Bin), mesmo sendo amiga pessoal da mocinha.
“[…] O fato de que Raquel atua em casos que envolvem uma amiga íntima como Clara, é uma contradição em face da postura ética e rígida dela como Magistrada. Por certo Raquel deveria se declarar suspeita nestes processos, na forma que dispõe o Código de Processo Civil e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional”, ponderou.
Antenada com tudo o que acontece na novela, a Magistrada sugeriu algumas cenas que a juíza pudesse estar envolvida, como o contato direto com os moradores do quilombo. Para quem não sabe, Raquel apareceu apenas uma vez na sua antiga morada desde a passagem de dez anos da trama. A personagem já afirmou que ajuda os moradores do quilombo financeiramente, mas não há indícios de que ela mantém uma relação sólida com eles.
Falando em Raquel, Erika Januza também comentou a respeito da repercussão da novela. Segundo ela, as expectativas foram mais que superadas.
“[…] Sempre que iniciamos um novo trabalho há aquela expectativa e torcida por ele, mas só ao longo do caminho e com a interação do público é que sentimos realmente. Raquel é um grande presente na minha carreira”, declarou.
No centro de assuntos muito discutidos nos últimos tempos, como racismo e intolerância, Mylene e Erika também relataram episódios de preconceito que enfrentaram ao longo das carreiras, e deram suas opiniões sobre cotas raciais e empoderamento feminino.
Confira os perfis completos de cada uma a seguir:
CATRACA LIVRE: Quando decidiu fazer faculdade de Direito, quais os rumos da carreira que a levaram a se tornar juíza?
MYLENE RAMOS: Quando criança, presenciei a dor das lembranças e situações de injustiça sofridas pelo meu pai, trabalhador da construção civil, e por minha mãe, doméstica. Lembro-me da tristeza que meu pai sentia por ter sido falsamente acusado de furtar um objeto em um mercado recém-aberto em São Paulo, e de minha mãe, que dormiu na rua com minha avó, após serem sumariamente demitidas do emprego onde moravam. Num contexto mais amplo, a desigualdade social, o racismo e a discriminação sempre foram preocupações que eu tinha. Mais tarde, após me formar em Direito, resolvi ser Juíza do Trabalho, certa de que poderia desempenhar um bom trabalho em razão da minha paixão pelo Direito, do conhecimento e experiência jurídicos que adquiri, e de minha experiência pessoal.
Você lidou com racismo e preconceito por ser uma mulher negra? Se sim, como lidou com todas essas questões?
Sim, o racismo e preconceito não são novidades na vida da população negra. Lojas onde você é ignorado, ou aquela vendedora que te informa o preço de uma mercadoria sem que você tenha perguntado, deixando implícito que você não poderia pagar pelo objeto […] Por certo, este tipo de atitude, ainda mais quando parte de um colaborador, expõe não apenas a falha do indivíduo que trata pessoas de forma discriminatória, mas denota que o estabelecimento não só desrespeita preceitos legais básicos, como também não está preocupado com o crescente mercado consumidor formado pela população negra. No meu caso, sou grata àqueles que me discriminaram em razão da minha etnia e da minha condição social. Só fiquei mais forte, e desenvolvi a noção de que tinha que ir mais longe, de que tinha que vencer. E venci.
Nos conte uma situação desagradável que a fortaleceu para seguir em frente?
Quando tentaram impedir que eu fizesse a prova oral do concurso para Magistratura. Em resposta, não só fiz a prova, como também fui aprovada com excelente classificação. Também quando me disseram que eu não poderia estudar em determinadas instituições, pois não tinha contatos. Anos depois, fui estudar na Columbia University e em seguida na Stanford University, onde os contatos não eram considerados como critério para admissão.
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou cotas raciais para destinar 20% de vagas nos concursos para Juiz aos candidatos negros. Você acha a medida importante? O que mais precisa ser feito para aumentar a igualdade entre as raças nesta profissão?
As cotas raciais são extremamente importantes e foram criadas pelo CNJ para corrigir uma desigualdade histórica, deixada como legado da escravidão. Apesar das cotas, o concurso para Magistratura continua sendo extremamente rigoroso. Para aumentar o número de negras e negros na Magistratura, é necessário também ampliar o acesso dos estudantes negros às melhores faculdades de Direito, mediante ações afirmativas, bem como, garantir que possam participar de cursos preparatórios à carreira jurídica.
As questões do empoderamento feminino e do racismo vêm ganhando força nos últimos tempos. Como você avalia esta nova fase?
Muito se fala hoje que vivemos uma fase de retrocessos, ante o cenário social, econômico e jurídico no País e no mundo. No entanto, nunca se viu tanto debate em torno de temas como o feminismo e o racismo, muito graças às redes sociais, que facilitam as denúncias e a discussão, inclusive entre grupos distantes ideológica e geograficamente.
Você, que costuma acompanhar a novela “O Outro Lado do Paraíso”, acha que a história da juíza é um retrato fiel da realidade ou poderia tirar/acrescentar algum fato?
O autor está conseguindo abordar de forma bastante realística a história da Raquel, que sim, parece muita com a minha própria. Porém, o fato de que Raquel atua em casos que envolvem uma amiga íntima como Clara é uma contradição em face da postura ética e rígida dela como Magistrada. Por certo, Raquel deveria se declarar suspeita nestes processos, na forma que dispõe o Código de Processo Civil e a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Acrescentaria na trama cenas de interação entre Raquel e a comunidade quilombola, após se tornar juíza. Raquel demonstra respeito por sua história, por sua família e ancestralidade, e pelo quilombo em si. Por isso seria interessante ver a dinâmica entre ela e os quilombolas.
Como você interpreta a abordagem da novela com relação à profissão?
Acho extremamente positivo que a novela mostre uma juíza negra e quilombola. A forma como Raquel se expressa, o vocabulário que utiliza, espelham o conhecimento, a postura e educação que se espera de uma Magistrada. A projeção da personagem num horário nobre pode ajudar que muitas outras mulheres negras se interessem pela carreira. Gosto do fato de que as situações de conflitos apresentadas são as usuais para Juízes Estaduais, que julgam causas que envolvem Direito de Família e Direito Penal, por exemplo.
Muito se falou do perfil caricato de Gustavo, juiz interpretado por Luis Melo, que recebe propina para forjar processos. O que você tem a dizer sobre o fato de este tipo de comportamento ser exibido em horário nobre na TV aberta?
Espero que a audiência consiga entender que se trata de um personagem de ficção. No Brasil, o magistrado está sujeito à uma disciplina rígida, e pode ser punido por condutas como a de Gustavo, muitas das quais constituem crimes, previstos no Código Penal, e também são incompatíveis com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções (artigo 37, VII da LOMAN).
CATRACA LIVRE – Você já esperava ou se surpreendeu com o sucesso da personagem Raquel?
ERIKA JANUZA – Me surpreendeu, sim. Sempre que iniciamos um novo trabalho há aquela expectativa e torcida por ele, mas só ao longo do caminho e com a interação do público é que sentimos realmente. Raquel é um grande presente na minha carreira.
Passou por alguma preparação para atuar no papel de juíza?
Ao se aproximar a segunda fase, quis me aproximar mais deste universo e fui assistir a uma palestra da Dra. Ivone, que foi a primeira juíza negra do RJ é hoje é desembargadora. Eu a abordei ao final da palestra e pedi que me recebesse, ela gentilmente me atendeu e ouvi-la fez toda diferença pra mim.
Você lidou com racismo e preconceito por ser uma mulher negra?
Sempre. O fato de ser um cidadão negro em nosso país, independentemente de classe social, profissão, nos faz ter de lidar com isto diariamente.
Nos conte uma situação desagradável que a fortaleceu para seguir em frente com seus objetivos?
Uma vez fui com uma ‘amiga’ assistir a um show de uma dupla sertaneja famosa. Ela conhecia o empresário da dupla, ao final íamos falar com eles, tirar fotos, essas coisas, eu ainda não era atriz. Na hora de passar, o empresário cochichou com o segurança, que deu a ordem: ‘Ela não, só a loirinha’. Me empurrou para que não me aproximasse e abriu para a minha ‘amiga’ passar. Ela voltou meia hora depois com um a taça de champanhe dizendo: ‘Desculpa, não consigo te colocar para dentro’. Esse fato me marcou muito, descobri que não tinha uma amiga realmente e fortaleceu em mim algo que eu j acreditava. Jamais deixar um amigo para trás, passar por injustiça e ter cuidado ao tratar os outros independentemente de quem seja. Respeito ao outro é fundamental, principalmente neste mundo violento e desigual em que vivemos hoje.
Como foi o início de sua carreira? Teve de passar por muitos percalços assim como a Raquel?
Ser atriz não era algo que estava em meus planos. Achava muito distante da minha realidade. Tentava ser modelo, algo que nunca deu certo e com certeza, apesar das alegrias e experiências, me trouxe mais prejuízo que lucro, já que gastei um dinheiro que não tinha para ir em busca do sonho. ‘Suburbia’ [seriado da Globo de 2012] surgiu e me mostrou minha verdadeira vocação. Me apaixonei pelo ofício de atuar. Mesmo depois de ‘Suburbia’, não foi tudo um mar de rosas. É uma carreira difícil, de incertezas. É preciso ter muito foco e coragem para passar principalmente pelos momentos sem trabalho.
As questões do empoderamento feminino e do racismo vêm ganhando força nos últimos tempos. Como você avalia esta nova fase?
Acho que estamos em uma sociedade mais consciente. Uma rede está se formando onde vemos a força e a atitude de alguém e assim me dá também força e coragem, vermos que não estamos sozinhos em uma causa ou uma luta nos faz avançar mais e mais. Indiretamente um ajuda o outro.
Qual recado você poderia dar às mulheres sobre empoderamento?
Vocês não estão sozinhas. E o empoderamento, essa força que ele da não é pra ninguém além de você mesma. O empoderamento é seu. É de dentro para fora e para seu fortalecimento. Se fortalecendo outros e outras também se fortalecerão.
Como você interpreta a abordagem da novela com relação à profissão de juíza?
Essa personagem é vitoriosa não só em na trama, mas com o poder da representatividade. Quebrando os estereótipos, ainda que ela tenha sido doméstica na primeira fase, foi uma fase que durou pouco tempo e ela venceu por esforço próprio. Pelo estudo. Tão importante mostrar isso na Tv, mostrar que é possível. Incentivar a quem assiste. Novela além de entretenimento também é informação. E pelo que tenho ouvido nas ruas, lido nas redes sociais, Raquel está atingindo este objetivo.
Você tem semelhanças com a personagem Raquel? Se sim, quais são?
Tenho, sim. E ser correta acho que é a maior delas.
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