Fui assediada no ginecologista

53% das mulheres entrevistadas já sofreram abuso sexual ou moral no ginecologista

Reportagem:

Fernanda Miranda
Heloisa Aun

Edição:

Erika Vieira
Fabiana de Paula

Vídeos:

Gabriel Nogueira
Matheus Castro

Quadrinhos:

Alexandre De Maio

Design:

Rodrigo Godoy

Gráficos:

Anderson Meneses

Durante três meses, nossas repórteres apuraram histórias de abuso em consultas ginecológicas

Em 2014, Luisa* mudou de cidade e passou a se consultar com sua ginecologista aos sábados, quando visitava os pais em sua antiga casa. Um dia, a médica deixou de atender aos fins de semana e indicou seu marido para substituí-la. A jovem, que não costumava se consultar com homens, acabou aceitando a sugestão.

Logo no início da consulta, o clima já estava estranho e o ginecologista questionou se ela tinha namorado. Luisa* respondeu que sim, que era noiva, mas o profissional insistiu: “quantas vezes vocês fazem sexo por semana?”. Em seguida, o médico pediu que ela colocasse o avental com a abertura nas costas e “brincou” que o procedimento era feito de forma diferente pois “gostava de ver a bunda de suas pacientes”.

Durante a consulta, o ginecologista acariciou os seios da jovem, falando termos técnicos para tentar confundi-la. E o pior ainda estava por vir. “Quando ele examinou minha vagina, começou a me masturbar e disse que o modo como eu depilava meus pelos pubianos era coisa de ‘mulher que gostava de sexo’”, relata.

Luisa* levantou da maca rapidamente e colocou sua roupa. Na saída, o ginecologista a chantageou: “Quero que fique claro que o que se passou aqui foi uma relação de médico e paciente. Você vai sair daqui e vai viver sua vida sem falar nada. Depois, se quiser voltar daqui um ano, estarei aqui. Melhor fazer dessa forma, já que vai ser a sua palavra contra a minha”.

“Saí de lá arrasada e chorei dias seguidos. Retomar a rotina sexual com meu noivo foi bastante difícil e passei a ter fobia de ficar numa sala fechada sozinha com um homem que não conheço”, conta a vítima.

 
 

O abuso relatado pela jovem não representa um caso isolado. Luisa* é uma das 374 mulheres (53%), de um total de 700 participantes, que afirmam já terem sofrido abuso sexual ou moral em consultas com ginecologistas, de acordo com levantamento on-line realizado pelo Catraca Livre. As entrevistadas responderam uma série de questões a respeito da conduta de seus médicos entre os dias 15 de abril e 5 de maio de 2016.

A pesquisa foi realizada com leitoras de todo o Brasil, que enviaram relatos de cidades como Natal (RN), Fortaleza (CE), Salvador (BA), Teresina (PI), Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), São Paulo (SP), Contagem (MG), Belo Horizonte (MG), Londrina (PR), Joinville (SC) e Pelotas (RS).

Quando ele examinou minha vagina, começou a me masturbar e disse que o modo como eu depilava meus pelos pubianos era coisa de ‘mulher que gostava de sexo

As histórias, contadas em anonimato, trazem comportamentos que caracterizam condutas constrangedoras e abusivas, como cantadas, frases de cunho sexual e até estupro. As situações refletem a violência de gênero e o machismo enraizados na sociedade brasileira: “ele dava um tapa na minha bunda para eu relaxar”, “durante o exame endovaginal, ele se colocou entre minhas pernas e fazia movimentos como se segurasse seu pênis, e não o aparelho” e “quando eu estava anestesiada, pois tinha acabado de dar à luz, o médico colocou o dedo no meu ânus e chamou mais médicos para fazer isso” são apenas alguns dos casos denunciados pelas pacientes.

As situações, porém, não se limitam ao assédio sexual. Tratamentos inadequados e agressivos ou comentários humilhantes também foram relatados pelas vítimas. Maria Eduarda*, por exemplo, é uma das muitas mulheres que saíram das consultas indignadas com a grosseria e com a falta de interesse de seus ginecologistas. Ela conta que, certa vez, uma médica inseriu um aparelho em sua vagina durante a consulta. Ao apresentar sinais de desconforto com a situação, a profissional contestou. “Ela disse para eu ficar quieta, porque ‘onde já tinha entrado um pênis, entraria aquele instrumento fácil’”, recorda.

Embora os casos de abuso sejam frequentes, é importante ressaltar que as pacientes não devem ter medo ou receio de se consultarem com ginecologistas, sejam profissionais homens ou mulheres. Pelo contrário: cada caso é um caso, mas, de modo geral, o ideal é que a paciente esteja com seus exames de rotina em dia e agende uma consulta ginecológica ao menos uma vez por ano. Acompanhamentos médicos e exames preventivos realizados anualmente conseguem detectar várias doenças em fase inicial, dando a chance de tratá-las sem maiores complicações.

O depoimento relatado abaixo é real e foi enviado por uma leitora do Catraca Livre. Os desenhos, no entanto, são meramente ilustrativos.

 
 

Será que fui vítima de abuso?

Medo, culpabilização e silenciamento. Essas são as principais razões pelas quais grande parte das mulheres que passa por situações de violência não denuncia seus médicos e agressores. Segundo o levantamento, apenas 4% das entrevistadas chegaram a fazer alguma denúncia sobre o crime. Muitas, inclusive, demoraram anos para reconhecer e entender que foram vítimas de abuso sexual ou moral, enquanto outras ficaram constrangidas no momento, mas não perceberam a gravidade da conduta do profissional.

É o caso de Ana Carolina*, que descobriu depois de muito tempo que tinha sido vítima de abuso sexual, quando já nem ia mais no mesmo médico. Aos 16 anos, a jovem se consultava com um ginecologista que ficava acariciando seu clítoris enquanto pedia para ela “relaxar” antes de iniciar a consulta. Anos mais tarde, em uma conversa com sua mãe e sua avó, a garota comentou sobre o incômodo que sentia com esse e outros procedimentos do antigo médico. Foi dessa forma que descobriu o abuso. “Minha avó não acreditou em mim e até hoje se consulta com esse senhor”, diz.

Mas o que pode ser caracterizado como assédio moral ou sexual? De acordo com a psicóloga Arielle Sagrillo Scarpati, doutoranda em psicologia forense na Universidade de Kent, na Inglaterra, em ambos os casos a vítima é coibida e os abusos podem acontecer simultaneamente. “O assédio sexual tem componente sexual — como o próprio nome sugere —, enquanto o assédio moral tem como objetivo principal a humilhação e diminuição da autoestima da vítima e não envolve, necessariamente, investidas sexuais”, ressalta.

Apenas 4% das entrevistadas chegaram a fazer alguma denúncia sobre o crime

De todo modo, qualquer forma de assédio constrange, humilha e amedronta. E suas consequências são inúmeras. Para a psicóloga, embora cada mulher lide com a situação de maneira particular, o que se percebe é que, neste “jogo” de poder, as vítimas acabam submetidas a um estado de silenciamento e sob o domínio da autoridade de seu agressor. Por isso, a importância de que, diante de uma denúncia, essas pessoas tenham seu sofrimento e dor reconhecidos, legitimados e acolhidos.

Assim como Luisa*, Mariana* é uma das muitas jovens que se sentiram culpadas pelo assédio sofrido. “Durante o exame de toque, o médico olhava fixamente para mim com um sorriso sarcástico, perguntando se eu estava gostando. Fiquei extremamente constrangida e me sentindo um lixo. Fui embora chorando, envergonhada e nunca mais voltei naquela unidade de saúde. Nunca contei para ninguém por achar que a culpa era minha. Se fosse hoje, eu agiria diferente”, conta.

Seu relato é mais recorrente do que se imagina e os impactos podem ser ainda mais graves. “Como consequência da exposição a esse tipo de violência, muitas mulheres desenvolvem quadros de transtornos psíquicos e alimentares, tais como anorexia, bulimia, fobias, ansiedade, prejuízo da concentração, transtornos de pânico, distúrbios do sono e depressão”, explica Arielle. Além disso, algumas vítimas se queixam de problemas com a própria sexualidade, dores de cabeça, transtornos de ordem gastrointestinais ou dores crônicas.

 
 

Na pesquisa, muitas das participantes afirmaram que foram vítimas de assédio logo em suas primeiras experiências no ginecologista. Quanto a isso, Ana Paula Meirelles Lewin, Defensora Pública e Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NUDEM), defende que é preciso empoderar as garotas desde cedo e desmistificar algumas questões, pois a sexualidade ainda é tratada como tabu. “Ainda hoje, é muito complicado para as meninas falarem sobre sua primeira experiência sexual, o que é uma herança do patriarcado. Se a própria garota nunca se tocou, como ela pode saber se um toque é abusivo ou não?”, reflete a advogada.

Diferenciar a conduta ética do ginecologista de um possível caso de abuso nem sempre é fácil, especialmente em um contexto médico, no qual deveria existir uma relação de confiança entre paciente e profissional. Mas Arielle ressalta que, se em algum momento a mulher se sentir desconfortável, ela deve parar e prestar atenção. “Veja os sinais de alerta, como se o seu médico conta piadas ou histórias de cunho sexual durante a consulta, te olha de uma forma desconfortável, pergunta sobre sua vida amorosa de maneira excessiva, proíbe a presença de acompanhantes dentro da sala ou se pede que você tire a roupa e coloque o avental desnecessariamente”, afirma.

Se a própria garota nunca se tocou, como ela pode saber se um toque é abusivo ou não?

 
 

O machismo nas consultas ginecológicas

A médica Halana Faria, mestranda na Faculdade de Saúde Pública da USP, é uma dos 28.280 profissionais com especialidade em ginecologia e obstetrícia no país, segundo o levantamento Demografia Médica no Brasil 2015 do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) divulgado em novembro do ano passado. Por lidar diariamente com a saúde íntima da mulher, ela sabe o peso e a responsabilidade que sua profissão carrega. Halana integra a equipe do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, uma ONG que desde 1985 desenvolve um trabalho de atenção primária à saúde feminina.

Um dos objetivos da ONG é promover uma relação horizontal e respeitosa com a mulher, tanto que na sala de consulta não há uma mesa separando a médica da paciente. “A ideia é construir autonomia, desenvolvendo noções de autocuidado”, explica. “Eu atendo muitas mulheres que nos procuram porque sentem-se desconfortáveis com o tipo de atendimento e abordagem à sua saúde, ainda muito heteronormativo, paternalista, medicalizado e pouco aberto às reais demandas das mulheres. Elas ressentem-se de terem suas queixas desconsideradas, de serem julgadas moralmente ou até mesmo de serem infantilizadas e consideradas pouco aptas para decidirem e cuidarem de si mesmas”.

Entre as pacientes que mais procuram o atendimento da ONG, estão mulheres cujos corpos, orientações sexuais e escolhas são constantemente julgados, quando não aceitos pela sociedade. São pessoas que não se sentem acolhidas pelo médico por serem gordas, transexuais, lésbicas ou bissexuais, por não quererem ter filhos ou também por serem praticantes do poliamor. “Gorda não faz nada direito mesmo”, “gente gorda não pode reclamar de nada na saúde” e “você, como lésbica, deveria experimentar uma rola” foram algumas das frases ouvidas por pacientes que enviaram seus relatos.

O fato é que, enquanto os médicos e as próprias universidades que formam estes profissionais evitarem a reflexão e o debate, e continuarem sendo coniventes com o machismo e a violência contra a mulher, ainda ouviremos muitos outros relatos como esses. “Tenho a impressão de que quando se aborda esse tema na universidade, parte-se sempre do pressuposto da necessidade de proteção do próprio médico”, opina Halana. “Por exemplo, ensina-se que homens médicos tenham a presença de uma enfermeira na hora de um exame ginecológico, com o discurso de proteger o médico, para que ele tenha uma testemunha de que não atuou com desrespeito. Nunca vi essa discussão ser feita do ponto de vista da mulher. Infelizmente, a ginecologia como ‘ciência da mulher’ constrói-se a partir de ideias masculinas, moralistas e muitas vezes misóginas”.

A médica também lamenta a relação entre “doutor” e paciente nas salas de consulta, uma interação muitas vezes frígida marcada pela expressão de poder e superioridade por parte do profissional, e submissão e silenciamento por parte da vítima. “Parece haver nas falas médicas uma negação de acesso à informação, que permanece sob monopólio médico enquanto às mulheres cabe obedecer ordens. Respeita-se pouco o direito à autonomia e decisão informada. Acredito que seja nesse clima de submissão e desrespeito que muitas mulheres percebam a assistência como um abuso. Não quero acreditar que médicos sejam abusadores, mas acho que a maneira como reproduzem a prática assistencial precisa ser repensada”.

O médico me assediou, e agora?

Na ocorrência de um abuso sexual ou moral, uma das maiores dificuldades é comprovar o crime, já que geralmente ele ocorre em uma sala fechada e sem testemunhas. Devido a esses fatores, a denúncia acaba sendo a palavra da vítima contra a do médico, que sempre vai justificar que a conduta faz parte do procedimento normal nas consultas, desestimulando as mulheres a tomarem qualquer providência.

Para a defensora pública Ana Paula Lewin, embora judicialmente seja difícil comprovar que houve assédio, é muito importante que as mulheres procurem ajuda em todas as instâncias. “Essas denúncias devem ser tomadas não só na esfera do judiciário, como registrar um boletim de ocorrência e buscar condenação criminal e indenização do ginecologista, mas também, e principalmente, um registro nos órgãos de classe — como o CFM e o Conselho Regional de Medicina (CRM) —, para que os médicos sejam responsabilizados dentro do seu conselho”.

Caso o atendimento não tenha ocorrido em uma clínica, mas sim em um hospital, a advogada ressalta que as vítimas podem relatar o caso à ouvidoria do local e também fazer uma denúncia no Ministério da Saúde. Após o registro, o ginecologista será analisado sob o ponto de vista do código de ética médico e dos conselhos federal e regional.

A denúncia acaba sendo a palavra da vítima contra a do médico, que sempre vai justificar que a conduta faz parte do procedimento normal nas consultas

Ana Paula ainda destaca que, se a denúncia for comprovada, o médico pode sofrer diversas penalidades, na forma de uma advertência ou suspensão, até mesmo a cassação da licença para continuar clinicando. “Além disso, ele também pode ser condenado criminalmente e a pena pode variar desde uma multa a algo mais grave, como prisão em regime fechado, caso seja considerado um crime de estupro. Com base nisso, a mulher pode pedir uma indenização pelos danos morais sofridos”, finaliza a defensora pública.

O Catraca Livre tentou entrar em contato com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) para compreender o posicionamento dos órgãos a respeito dos procedimentos realizados após denúncias de abuso durante consultas médicas.

Em nota, o CFM afirmou que todas as denúncias por desvios ético-profissionais contra médicos, inclusive as por assédio sexual, podem ser apresentadas aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) dos locais onde os fatos aconteceram. Eles afirmam que, entre 2010 e 2015, houve 18 cassações de exercício profissional de médicos após eles terem sido denunciados por assédio sexual. Confira a nota na íntegra abaixo. Já a Febrasgo não se posicionou até o fechamento desta reportagem.

Esclarecimento do CFM ao Catraca Livre:

Todas as denúncias por desvios ético-profissionais contra médicos, inclusive as por assédio sexual, podem ser apresentadas aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) dos locais onde os fatos aconteceram. Denúncias feitas pela imprensa ou outros meios, como Polícia e Ministério Público, também geram ação ex-officio dos CRMs.

Em decorrência, os CRMs instauram processos de sindicância para apuração preliminar. Se os indícios de irregularidades forem confirmados, determina-se a abertura de um processo ético-profissional.

Após, a fase de instrução do processo, os casos são submetidos a julgamento e, se houver condenação, o médico acusado fica sujeito a penalidades que vão da advertência à cassação, previstas na Lei Federal 3.268/1957.

Independentemente do resultado final do processo, o médico ou o paciente podem recorrer ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para uma nova avaliação. Trata-se da ampla defesa. Nesta etapa, os casos são reavaliados e também julgados.

Com relação às denúncias por assédio sexual, o CFM informa que, em instância recursal, com trânsito em julgado, houve 18 cassações de exercício profissional no período de 2010 a 2015.

O “médico das estrelas” é um estuprador

A empresária Vanuzia Lopes, de 56 anos, é uma mulher de luta. Foram necessárias mais de duas décadas de esforço para que Vana — como prefere ser chamada — conseguisse ver na cadeia o médico que a havia estuprado e eliminado todas suas chances de ser mãe biológica. Em 1993, ela e o marido, que já tinham uma filha adotiva, procuraram um especialista referência em reprodução assistida para que ela conseguisse engravidar.

Já na clínica, na terceira tentativa de inseminação, a paciente foi sedada antes do procedimento começar. Só que, daquela vez, seu corpo resistiu à sedação, e Vana acabou despertando durante o processo. Confusa e ainda lenta por causa dos efeitos do medicamento, a empresária demorou um pouco para entender o que estava acontecendo: assustada, percebeu que o médico estava deitado sobre ela, nu. Ele havia acabado de ejacular.

Naquela época, o profissional, o renomado Roger Abdelmassih, era procurado por famílias de famosos que tentavam ter filhos – como a de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, e do humorista Tom Cavalcante. Na década de 90, ele chegou a ser o nome mais conhecido entre os especialistas em fertilização in vitro no Brasil.

Após o episódio, além do psicológico totalmente afetado e do término do casamento, Vana contraiu uma bactéria que lhe causou uma grave infecção, acabando de vez com suas chances de ser mãe biológica. “Tive peritonite aguda, perdi as trompas e parte do ovário. Foi gravíssimo, eu quase morri”, conta. Antes de ser internada, ela juntou forças e conseguiu ir à delegacia para fazer um Boletim de Ocorrência. Depois de ouvir seu relato, o delegado se pronunciou, desacreditado do crime: “Então você está dizendo que o ‘médico das estrelas’ te estuprou?”, disse, em tom de deboche.

A falta de amparo dos órgãos de proteção à vítima a que recorreu resultaria, no futuro, em novos crimes cometidos pelo estuprador. O caso evidencia como as autoridades e instituições são permissivas no que diz respeito ao estupro e a outras formas de assédio sexual. “Houve um descaso. Se tivessem agido naquela época, outras mulheres não teriam sido violentadas”, opina Vana.

Embora seja um fato isolado, a conduta de Abdelmassih tornou-se um dos casos mais emblemáticos da medicina brasileira, ao mesmo tempo em que suas vítimas deram um importante passo ao denunciar como ainda alguns médicos, médicas e a própria justiça são agentes e cúmplices da perpetuação e da impunidade da violência contra a mulher.

Depois de ter abusado dezenas de mulheres, o ex-médico foi finalmente preso em 2014, condenado a 181 anos de prisão por cometer crimes sexuais e de manipulação genética contra 37 mulheres. Recentemente, ele foi indiciado pela suspeita de ter cometido mais ataques sexuais contra outras 37 mulheres. Hoje, Abdelmassih está detido em uma cela na Penitenciária de Tremembé, no interior de São Paulo.

A saga vivida pela empresária nas últimas décadas foi relatada em um livro lançado em 2015, o “Bem-vindo ao inferno – A história de Vana Lopes, a vítima que caçou o médico estuprador Roger Abdelmassih”. “Eu engordei 70 quilos depois do estupro. Agora emagreci. O livro que lancei é também uma recuperação da minha autoestima”, diz. Vana conta que parte da renda arrecadada com o livro está sendo usada para ajudar pessoas que foram vítimas de violência sexual. Nos últimos meses, ela tem auxiliado mulheres que sofreram abuso nas consultas de um nutrólogo que atua em Florianópolis, em Santa Catarina.

Além disso, a empresária criou um grupo chamado Vítimas Unidas, que reúne pessoas solidárias para apoiar vítimas e ajudar a denunciar casos de abuso. “Não somos coitadinhas pedindo misericórdia. Somos fortes”, diz. A página no Facebook do grupo conta, atualmente, com mais de 75 mil membros. Por lá, os participantes debatem casos de estupro que são noticiados pela mídia, dão dicas de páginas e instituições de direitos humanos e acompanham o caso de pessoas que fazem denúncias. “Estar ao lado e colaborar com outras vítimas é a única maneira de superar meus traumas”, completa.

Devido a traumas como este — mais frequentes do que imaginamos —, muitas pacientes sentem-se desamparadas e acabam postergando sua ida a uma nova consulta ginecológica, em detrimento de sua saúde e bem-estar.

A boa notícia é que, com a ajuda das redes sociais, cada vez mais mulheres estão se dando conta e verbalizando situações de abuso. Para a médica Halana de Faria, o número crescente de pessoas insatisfeitas nas consultas demonstra que é preciso repensar a formação médica, desde que ela seja feita com a participação das mulheres. “As redes sociais abrem uma possibilidade de interação sem precedentes para que pacientes relatem situações de abuso e organizem-se”, finaliza.

É preciso repensar a formação médica, desde que ela seja feita com a participação das mulheres

* Os nomes foram alterados para proteger a identidade das vítimas.

O que a lei brasileira diz sobre estupro

De acordo com a Lei 12.015 de 2009, o crime de estupro se configura se o autor: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

É preciso haver conjunção carnal para ser crime de estupro?

Qualquer ato com sentido sexual praticado com alguém sem seu consentimento, até mesmo um toque íntimo ou um beijo à força, hoje é considerado estupro pela lei.

Pena

Para qualquer um desses casos, a pena vai de 6 a 10 anos de reclusão. Casos de aumento da pena: se a vítima é maior de 14 e menor de 18 anos – de 8 a 12 anos de reclusão; se resultar em morte – de 12 a 30 anos de reclusão.

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