Desperdício de comida: o que eu tenho a ver com isso?
A quantidade descartada no Brasil por ano - 15 milhões de toneladas - alimentaria toda a população do país por 47 dias
Colocar comida em excesso no prato e jogá-la no lixo; descartar cascas de frutas e legumes, fontes ricas em fibras; ou armazenar de forma errada os ingredientes. Essas são apenas algumas ações que contribuem para que cerca de um terço dos alimentos produzidos no planeta seja desperdiçado a cada ano, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês).
Do plantio à mesa das famílias, 1,3 bilhão de toneladas de comida recebem o mesmo destino: o lixo. Por outro lado, 795 milhões de pessoas passam fome em todo o mundo, sendo que 3,4 milhões são brasileiras. Já um estudo realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) indicou que há 52 milhões em situação de insegurança alimentar — sem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e quantidade suficientes — no Brasil. No país são descartadas 15 milhões de toneladas por ano, o que alimentaria toda a população brasileira por 47 dias, conforme estimou o Instituto Akatu.
Ao mesmo tempo, de acordo com o relatório “Perspectivas Agrícolas no Brasil: desafios da agricultura brasileira 2015-2024”, da FAO, o Brasil é o segundo maior exportador agrícola mundial e o maior fornecedor de açúcar, suco de laranja e café. Além disso, é um grande produtor de milho, arroz e carne bovina.
A produção de alimentos ocupa 25% do território habitável na Terra. Já uma parte dessa área, equivalente ao tamanho do México, é utilizada para cultivar aqueles produtos que serão jogados no lixo. Esta mesma quantidade descartada causa a emissão de 3,3 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano (FAO).
É importante ressaltar, no entanto, que a degradação do meio ambiente não é a única consequência do desperdício. A condição financeira das famílias médias brasileiras — que gastam 478 reais mensais para comprar comida — poderia passar por grandes mudanças caso deixassem de jogar fora 20% dos alimentos de casa. Pesquisadores do Instituto Akatucalculam que seriam economizados 90 reais por mês, o equivalente a 1,1 milhão de reais em 70 anos (expectativa média de vida).
Cultura do desperdício
A alimentação no Brasil, ainda hoje, é sempre relacionada ao excesso. Quem nunca ouviu a típica frase nos almoços de família “é melhor sobrar do que faltar”? Ou nunca foi em um restaurante de rodízio ou por quilo? Para a nutricionista Camila Kneip, da ONG Banco de Alimentos, a cultura do desperdício está enraizada no país por uma série de motivos, entre eles, o fato de não ter passado por restrições severas nas guerras e também por ser muito grande em extensão e recursos.
“Nunca parou para se pensar o quanto a cultura da abundância é prejudicial. Já está mais do que na hora de começarmos a refletir sobre a influência dessa questão nos recursos naturais, assim como no processo de produção, descarte, mão de obra, água, energia e emissão de gás carbônico para transporte”, ressalta.
Segundo um estudo da FAO, a maior parte do desperdício no país ocorre na fase pré-consumo, ou seja, no plantio e no transporte, o que normalmente se dá pela falta de tecnologia, técnicas inadequadas e pouca infraestrutura nas estradas. Além disso, cada brasileiro gera cerca de um quilo de lixo por dia, incluindo embalagens, restos de alimentos e outros materiais. Em 2013, esse volume chegou a 76 milhões de toneladas, sendo que 58% desse total é formado por lixo orgânico (Instituto Akatu).
No entanto, enquanto quilos de comida são descartados diariamente em restaurantes, padarias e outros estabelecimentos, não há leis no país que falem sobre a questão de doação para combater a fome e evitar o desperdício. “O que acontece é que os locais têm que seguir as normas da Anvisa. Os estabelecimentos têm receio de doar as sobras das refeições por causa do código de defesa do consumidor, que aplica punições caso o alimento cause intoxicação a quem o recebeu”, completa Camila.
Para reverter essa situação no Brasil, a organização Banco de Alimentos — criada em 1998 com o objetivo de minimizar os efeitos da fome e combater o descarte de comida — atua em três principais frentes. A primeira é a da colheita urbana, processo que consiste em coletar excedentes de estabelecimentos comerciais, como legumes, massas e frutas, e transportá-los a instituições filantrópicas.
Já a segunda área de atuação é a da educação, em que os responsáveis levam palestras, workshops e oficinas a profissionais das próprias ONGs e estudantes, ensinando formas de manipular adequadamente os alimentos e evitar o descarte de partes com alto valor nutricional. A terceira frente são as ações educativas, cujo objetivo é informar a sociedade por meio de conteúdos que disseminem a cultura do não desperdício e do aproveitamento integral.
Diante dessa decisão, alguns governos estrangeiros se mostraram competentes em transformar a cultura de desperdício em seus países. A França, por exemplo, validou uma lei em que proíbe os supermercados de jogar no lixo alimentos que deixaram de ser comprados, sob pena de multa de € 75 mil (R$ 272 mil) ou dois anos e meio de prisão. Já a Dinamarca inaugurou um estabelecimento dedicado exclusivamente à venda de produtos fora da validade, mas que ainda podem ser consumidos.
No Brasil, em meio a sete projetos de lei que visam a diminuição de descarte de comida, apenas um, o de São Luís, no Maranhão, foi aprovado. O PL instrui feirantes ao aproveitamento total dos alimentos não utilizados pelo comércio e estimula a redução de lixo orgânico nos mercados.
Importância de se conscientizar
Reduzir a quantidade de alimentos que vai para o lixo diariamente pode não parecer uma tarefa fácil, ainda mais em um país tão grande como o Brasil. Mas, se houver uma conscientização coletiva e cada um fizer a sua parte no dia a dia, os impactos sociais, econômicos e ambientais podem ser bastante positivos.
A nutricionista Camila Kneip afirma que, em primeiro lugar, é importante lembrar que há duas formas principais para evitar o descarte de comida. “A partir do aproveitamento integral, que consiste em utilizar tudo o que determinado alimento oferece, como as folhas, talos, cascas ou sementes de frutas e legumes; e por meio do reaproveitamento, ou seja, fazer uso das sobras de ingredientes e refeições, como, por exemplo, preparar um risoto a partir do resto do arroz que seria descartado”, explica a especialista.
As práticas diárias citadas pela profissional do Banco de Alimentos trazem diversos benefícios aos consumidores, como a diminuição do lixo orgânico e dos efeitos prejudiciais ao meio ambiente, a economia de dinheiro e a melhora na qualidade nutricional da refeição por causa da diversidade no cardápio.
“As partes não convencionais, como cascas e caules, têm uma concentração de nutrientes maior do que a gente geralmente come. A casca da laranja, por exemplo, tem seis vezes mais cálcio do que a polpa. Já as sementes em geral têm mais fibras do que a polpa dos alimentos”, acrescenta Camila.
Já o Instituto Akatu destaca que outra ação relevante para reduzir o desperdício de comida é sempre fazer um planejamento prévio das compras. “Procuramos dar dicas para a mudança de hábito das pessoas, como por meio das compras coletivas entre vizinhos, amigos e familiares, olhar o que tem em casa antes de ir ao mercado e checar as datas de validade dos ingredientes”, aponta Gabriela Yamaguchi, gerente de comunicação da instituição.
Escondidinho de mandioca com talos gratinados
Ingredientes:
1 quilo de mandioca cozida;
2 colheres (sopa) de margarina;
½ litro de leite;
Recheio:
Talos e folhas de espinafre, beterraba, couve flor e nabo;
2 colheres (sopa) de óleo;
Alho, cebola picadinha e sal a gosto.
Modo de preparo:
Bater a mandioca no liquidificador até formar um purê. Levar ao fogo junto com a margarina até ferver, com sal a gosto. Reservar. Fazer um refogado com alho, cebola e talos. Colocar em uma refratária metade do purê de mandioca, depois o refogado de folhas e por último a outra metade do purê. Colocar no forno (180 ºC) para gratinar por 10 minutos.
Rendimento: 10 porções
Valor Nutricional: Folato, Potássio e Cálcio
Beijinho de bagaço de beterraba
Ingredientes:
Bagaço de ¼ de beterraba
2 xícaras de chá de coco ralado
1 ½ lata lata de leite condensado
1 ½ colher de sopa de manteiga sem sal
1 xícara de chá de açúcar cristal
Modo de preparo:
Lavar e higienizar as beterrabas com hipoclorito de sódio, seguindo as instruções de rotulagem. Liquidificar a beterraba com água e coar para obter o bagaço. Misturar todos os ingredientes em uma panela, exceto o açúcar cristal. Mexer em fogo médio até atingir o ponto de brigadeiro (para enrolar na mão). Untar as mãos com manteiga, e enrolar o doce em bolinhas pequenas, passando no açúcar cristal.
Rendimento: 30 porções de 29g cada
Valor Nutricional: Proteínas, Vitamina C e Beta Caroteno
Dicas: A beterraba pode ser congelada por até 30 dias. Após o descongelamento fica perfeita para preparo de suco e, com o bagaço, o beijinho. Aproveite!
Iniciativas inspiradoras
Mas e o que nós temos a ver com isso? Como indivíduo, você pode (e deve) fazer a sua parte para evitar o desperdício de alimentos. Além de realizar pequenas ações em seu dia a dia, é importante encorajar iniciativas que tenham como objetivo o aproveitamento total de ingredientes.
O chef italiano Massimo Bottura do Osteria Francescana, restaurante classificado como o melhor do mundo pelo ranking “The World’s 50 Best Restaurants”, é um exemplo neste cenário. Junto com David Hertz, fundador da ONG Gastromotiva, e a jornalista Alexandra Forbes, ele idealizou um empreendimento completamente diferente do seu conceituado restaurante em Modena, na Itália.
Nomeado de Refettorio Gastromotiva e localizado no Rio de Janeiro, o estabelecimento faz parte de uma proposta que visa alimentar a população menos favorecida do bairro da Lapa. As refeições são preparadas com sobras de comidas e, desde agosto deste ano, são servidas no almoço com preço indefinido e no jantar gratuitamente.
E não são só chefs estrelados que realizam boas ações como esta. A Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) conquistou o prêmio Selo Benchmarking: Legítimos em Sustentabilidade 2016, considerado um dos mais importantes do país por criar uma campanha com o objetivo de reduzir o desperdício alimentar e promover a solidariedade.
O programa Reduzindo o Desperdício promove a doação de ingredientes que não seriam vendidos — mesmo sendo adequados ao consumo — para entidades assistenciais. Assim, auxilia na preparação das refeições diárias dos atendidos.
De qualquer maneira, a Ceagesp ainda contribui com a grande quantidade de alimentos descartada no Brasil. Ao se deparar com tamanho problema na instituição, Daniela Leite resolveu tomar uma atitude e lançar o Comida Invisível.
“O projeto surgiu de uma indignação. Fui com meu filho no Ceagesp comprar frutas mais maduras para fazer geleia e nos deparamos com um enorme desperdício. Pilhas de frutas jogadas nas caçambas ou em frente dos boxes”, conta.
Junto com Flavia Vendramin e Sergio Ignácio, os três resolveram criar um projeto para conscientizar o público sobre os males do desperdício. Eles produzem uma série de vídeos que incentiva as pessoas a enxergarem o consumo de outra maneira. Além disso, a iniciativa também conta com a distribuição de geleias preparadas com frutas que seriam jogadas no lixo, comprovando que um alimento que seria descartado ainda pode ter sabor, qualidade e utilidade.
Outro destaque é o Food Truck que, além de proporcionar uma experiência gastronômica ao público, oferece dicas sobre o desperdício. Os ingredientes usados nas receitas da edição realizada em julho deste ano foram doados pelo Banco Ceagesp de Alimentos. Todo o lucro arrecadado pela ação será investido em campanhas com o mesmo intuito.
“Para nós, a raiz do desperdício está no fato de que perdemos a conexão com a natureza. Nos tornamos controladores e não parte dela, e isso muda o nosso referencial de vida.”, finaliza Daniela.
Todas essas iniciativas servem como fonte de inspiração. Ao conhecer a trajetória e objetivo de cada uma delas, é importante que os consumidores percebam a importância da comida e voltem a se sentir responsáveis pelos alimentos que vão para o lixo.
E o que você pode fazer?
A ONG Banco de Alimentos listou algumas medidas simples que contribuem, e muito, para o combate do desperdício desde o momento de compra até o preparo. Confira e adote práticas mais conscientes na sua casa também!
Comprar bem: fazer uma lista para ir ao supermercado sabendo previamente o que comprar. Tomar cuidado com promoções e vendas em atacado para não adquirir itens em excesso e não utilizá-los depois. Prefira os alimentos da época, pois eles têm melhor qualidade (maior durabilidade, maior teor nutricional e menor quantidade de agrotóxicos), além de apresentarem preços mais acessíveis;
Conservar bem: guarde os alimentos em locais limpos e em temperaturas adequadas para cada ingrediente. No caso de sobras, armazenar na geladeira ou no freezer e etiquetar os recipientes para saber até quando a comida pode ser consumida. Por exemplo, você pode comer a banana, guardar a casca para usar depois e colocá-la na geladeira por até dois dias. A casca da fruta tem muito mais potássio que a banana em si.
Higienizar bem: todas as frutas, verduras, legumes, cascas, talos, sementes e folhas devem ser lavados um a um, em água corrente; então, devem ser higienizados em solução de hipoclorito de sódio (seguindo instruções de uso na rotulagem) por geralmente 15 minutos para eliminar microorganismos.
Preparar bem: no momento do preparo seja criativo: não jogue fora as partes não convencionais, utilize na própria ou em outras receitas. Prepare apenas a quantidade necessária para as refeições da sua família. Faça uma média da quantidade de porções por pessoa e, caso haja sobras, armazene-as em geladeira para utilizar em outras refeições.
Compostagem: essa é uma técnica sustentável, em que os insumos são depositados em uma composteira e transformados em adubo orgânico. É um meio de diminuir o lixo produzido e o consumo de fertilizantes e produtos químicos que agridem o meio ambiente e a saúde das pessoas. Além disso, incentiva o consumo de alimentos orgânicos, que são menos nocivos para a nossa saúde.
Veja mais dicas no site da ONG Banco de Alimentos.