Desventuras em série de Tatuapara, a tartaruga-marinha viajante

De cada mil filhotes de tartaruga-marinha que alcançam a água, só 1 ou 2 conseguem chegar à idade adulta

Viver é um grande desafio. Todos os dias, desde o começo, sempre foi. Dizem por aí que a minha é uma história de superação. Eu chamo apenas de sobrevivência.

Na Praia do Forte, na Bahia, minha mãe fez seus ninhos com mais de cem ovos em cada um. Num deles, lá estava eu. Depois de uns 50 dias, comecei a achar aquele espaço muito apertado para mim _ merecia mais, sabe? _ e rompi a casca. Mal sabia eu que aquele seria apenas o primeiro de todos os obstáculos que estavam me esperando.

Nem todos os meus irmãos conseguiram ultrapassá-lo, mas eu sim. Logo nos primeiros dias de vida, precisei cavar bastante areia, uns 60 cm. Nesse percurso, eu fui me desenvolvendo. Finalmente consegui chegar até a superfície e ver a luz da lua na praia. Que cenário maravilhoso! Não tem como a gente não se apaixonar pela Bahia.

Naquela noite, eu dei sorte, a praia não estava tão iluminada e, com isso, não me confundi. Já soube de histórias de irmãs tartarugas-marinhas que vão atrás da luz colocada pelos humanos nas varandas de suas casas e nas praias. O drama: elas nunca encontram o mar e morrem. Infelizmente, isso acontece muitas vezes.

A corrida até o mar leva cerca de um minuto, mas parece uma eternidade. Afinal, nesses 60 segundos, tudo pode acontecer. Dá medo. Além da luz falsa, colocada pelos humanos, alguns filhotes podem cair em buracos formados pela praia. Podem ainda ser comidos por um caranguejo, uma gaivota ou outro animal. Perigos não faltam.

Apesar de tudo isso, de novo, eu dei sorte. Numa caravana com outros filhotes, consegui vencer o temido percurso. Tá achando que acabou? Que nada, a gente ainda tinha de vencer as ondas e sem prancha. Gigantes, para filhotinhos de poucos centímetros. Nadamos muito, num ritmo frenético. Muito não é exagero. Foram três dias nadando sem parar para chegar até o alto-mar. Era preciso chegar até lá e fugir da costa repleta de peixes. Se cansei? OPA! Este foi só o começo de uma longa jornada.

Do ovo até a fase adulta, temos uma fila de predadores à espreita. Logo na nossa primeira fase de vida, somos presas fáceis de peixes carnívoros. Faz parte, por isso temos tanta importância no meio ambiente: um dos nossos papéis é servir de alimento para animais do nosso ecossistema. Na idade adulta, o inimigo dá mais medo: tubarões e baleias dentadas. Felizmente, eu consegui driblar todos eles.

Nossos maiores predadores, porém, não são os animais e sim vocês, humanos. Que, para a nossa tristeza, são muito eficientes em acabar conosco. A pesca industrial, o lixo dos oceanos, as praias iluminadas, as valas na areia e os muros que reduzem o tamanho da praia são algumas das inúmeras maneiras que vocês encontram para nos destruir.

Teve uma época, até por volta do anos 80, que os humanos usavam nosso casco para fazer pentes e adereços, tanto que uma das tartarugas-marinhas leva o nome “tartaruga-de-pente”. Outras da nossa espécie viravam ensopados. Algumas irmãs tartarugas foram mortas e sua gordura, usada para fazer produtos de beleza. Foram tempos muito difíceis.

Mas vou te contar que melhorou bastante. Aqui vai o causo: como todas as tartarugas-marinhas, sou fiel ao local onde nasci. Numas das paradas que fiz, me lembro bem. Era noite, quando é menor o número de predadores, e está mais fresquinho. Tinha acabado de desovar quando alguns humanos me pegaram. Tremi. Pensei que seria meu fim! Mas já disse que sou sortuda, né?

Eles eram humanos bons. Colaram uma coisa no meu casco, um tal de transmissor, para me acompanhar. Neste dia, ganhei meu nome: Tatuapara. Além disso, usaram umas ferramentas estranhas para me analisar todinha. Ficamos amigos e, desde então, todo ano, quando volto à Bahia, a gente se encontra.

Tatuapara é uma tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta) monitorada desde 2006 pelo Projeto

Mas, tirando um ou outro que nos protege, são muitos os riscos que corremos e, por isso, ser uma tartaruga-marinha adulta é quase um milagre. Pensa comigo: de cada mil filhotes fofinhos que conseguem chegar à água, apenas um ou dois conseguem virar adultos. UM ou DOIS.

Aquele bebezinho de 5 cm que eu fui cresceu e hoje tenho 1 metro de casco. Nem sou tão grande para a minha espécie, mas tenho meu charme. Sou o que chamam de “exceção à regra”!

É comum que tartarugas-cabeçudas(Caretta caretta), como eu, desovem só a cada dois anos. Mas eu não sou dessas que ficam regulando fofurinhas e faço questão de desovar todo ano. Procriando em dobro, tenho esperança de que, no futuro, haja mais descendentes com minha genética. Estratégia pura!

Mas admito: não sou apegada aos meus filhotes. Desovar já dá muito trabalho: sai da água, cava os ninhos, coloca os ovos, tapa com areia e camufla cada um deles. São cerca de 75 dias, indo e voltando e repetindo todo esse processo. E calcule: são 120 ovos por ninho. Haja filhote para cuidar… Depois que faço pelo menos quatro ninhos na praia e desovo, torço para que eles cresçam, mas não consigo cuidar de todos.

Mapa de telemetria obtido através do transmissor instalado na tartaruga- marinha monitorada pelo Projeto Tamar.

Dizem por aí que somos lentas. Esses humanos têm muito o que aprender. Na areia da praia, realmente vamos devagar, mas na água… Ah, na água, é outra coisa. Consigo nadar numa velocidade de até 30 km por hora! Só assim para eu conseguir ir até meu restaurante preferido e voltar correndo para fazer ninhos e botar os ovos todos os anos.

Sim, eu amo viajar, e o litoral do Nordeste é meu destino predileto. Já consegui percorrer 950 km em 20 dias para chegar até o Rio Grande do Norte, que é onde eu sempre vou me alimentar. Depois volto correndo para desovar na Praia do Forte e passar um tempinho por lá.

Com meus 30 e poucos anos, repito: eu, Tatuapara, sou uma sobrevivente!

Ser uma tartaruga-marinha adulta é quase um milagre

Esta história só pôde ser contada pela tartaruga-marinha Tatuapara porque, desde 2006, ela é monitorada por telemetria pelo Projeto Tamar. Segundo o biólogo Paulo Lara, que a acompanha e integra o projeto desde 1989, de lá pra cá a tartaruga já pôde ser vista 32 vezes. Entre os animais monitorados por telemetria, ele destaca um diferencial: “Esta fêmea tem uma particularidade, ela é diferente das outras, vem todos os anos”.

Das sete espécies de tartarugas-marinhas que existem no mundo, cinco ocorrem no litoral brasileiro. Por isso projetos de pesquisa e conservação dessas espécies, que na década de 80 sofriam uma matança indiscriminada, são fundamentais.

Você também pode ajudar a vida marinha através do Visa Causas. Inscreva-se já e colabore sem pagar nada mais por isso.

Reconhecido internacionalmente como uma das mais bem-sucedidas experiências de conservação marinha do mundo, com seus quase 40 anos de base de dados sobre tartarugas-marinhas, o Projeto Tamar salva mais de 2 milhões de filhotes por ano.

Além das pesquisas, vale destacar também as ações de educação ambiental e inclusão social, que transformaram a forma como os pescadores e suas famílias convivem com as espécies.

Um exemplo disso é o Afonso Santana. Ele cresceu na Praia do Forte (BA) e, com 10 anos, participou do Tamarzinho, projeto de educação ambiental. Hoje ele é biólogo e se realiza através de seu trabalho na ONG: “O que eu estou fazendo aqui hoje? Realizando meu sonho de criança, de pequenininho, de ser biólogo, de cuidar das tartarugas. Minha função é cuidar diretamente desse animais”.

Assista ao vídeo e saiba mais sobre o projeto:

Por seu importante trabalho de proteção às tartarugas-marinhas, o Projeto Tamar foi um dos escolhidos para campanha Visa Causas. A cada compra que fizer usando seu cartão, a Visa fará uma doação ao projeto, sem que você tenha que pagar nada a mais por isso.