Um ano de luta por Marielle
"Justiça por Marielle será feita quando a gente estiver em uma sociedade mais igualitária", diz Monica Benicio em entrevista exclusiva à Catraca Livre
Monica Benicio não consegue se lembrar de quem era antes da noite do 14 de março de 2018. Naquele dia, esperava sua esposa, a vereadora Marielle Franco, em casa para jantar quando recebeu a notícia de que ela havia sido brutalmente assassinada no Estácio, região central do Rio de Janeiro.
Desde o crime, a ativista por direitos humanos abandonou praticamente todos os seus projetos pessoais para se dedicar a um objetivo: cobrar justiça nas investigações sobre o crime. “Justiça por Marielle, para mim, não se faz nem quando o inquérito for concluído da forma como tem que ser, mas quando a gente estiver em uma sociedade mais justa e igualitária, que é o que ela defendeu durante sua vida e pelo que ela morreu”, afirma Monica em entrevista à Catraca Livre realizada em janeiro deste ano.
Monica conversou com a reportagem pouco mais de 10 meses após o assassinato para falar sobre o andamento das investigações e o legado de luta deixado por Marielle. A entrevista ocorreu antes de uma operação conjunta do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil do Rio de Janeiro, nesta terça, 12, que prendeu dois suspeitos de matar a vereadora e o motorista Anderson Gomes.
De acordo com o MP, o policial reformado Ronie Lessa e o ex-policial militar Elcio Vieira de Queiroz foram denunciados depois de análises de diversas provas. Lessa teria sido o autor dos disparos de arma de fogo e Elcio, o condutor do veículo usado na execução. O crime teria sido planejado nos três meses que antecederam o caso.
A operação é um passo importante para o processo, mas muitas perguntas ainda precisam ser respondidas. Quem foi o mandante da execução? Qual foi a motivação para o crime? Por que Marielle incomodava tanto? Por que um dos suspeitos foi coagido a assumir a autoria do crime?
Confira abaixo na íntegra a entrevista com Monica Benicio:
Catraca Livre – Neste último ano, você se tornou uma pessoa pública, que participa ativamente da política. O que mudou na sua vida desde a morte da Marielle?
Monica Benicio – Absolutamente tudo. Desde o fato de não ter mais a minha companheira, a pessoa que estava ali construindo nosso projeto de família, sonhos, enfim, até em relação à vida profissional. O que eu fazia até a noite do dia 14 de março era a prioridade do meu mestrado, pois tinha intenção de seguir carreira acadêmica. Todos os projetos profissionais que eu tinha foram abandonados. O mestrado é o único projeto pessoal que sobreviveu, embora seja muito difícil ainda porque eu não estou conseguindo produzir. Para ter ideia, a minha turma já está entregando e defendendo o mestrado e nem sequer consegui me qualificar. Eu faço na PUC-Rio, que tem sido bastante compreensiva com este momento.
Para além de tudo isso, eu me tornei uma figura pública. Nunca foi um desejo ou algo que eu conseguisse almejar ou imaginar. Nunca gostei de estar à frente das câmeras, com o microfone na mão. Minha história de militância sempre foi dada de outro lugar. Era uma história construída através de coletivos, movimentos sociais e manifestações, mas junto com o povo no chão, e não no palanque com microfone. Então, ocupar este lugar hoje é muito diferente. Eu não consigo nem lembrar mais quem era a Monica até a noite do 14 de março. Teve uma mudança muito grande.
Sobre o que é seu mestrado?
Violência. Como a violência influencia a interação do sujeito com o espaço público. Eu sou formada como arquiteta e urbanista e meu mestrado é um desdobramento do que eu defendi na graduação. Então, é como o sujeito se relaciona com o espaço público entendendo o contexto de violência. Uso a área de recorte da favela da Maré, divisa entre duas facções criminosas. A ideia é entender como uma pessoa que cresce em um contexto de tanta violência, sendo social, física e do Estado, se relaciona com outros espaços públicos na cidade e como a cidade pode de fato ser fluida para o favelado.
Quando você começou a se envolver na militância? Poderia contar sobre seu primeiro primeiro contato com movimentos?
Na verdade, começa com 17 anos de idade, quando eu entro para um pré-vestibular comunitário na Maré. Eu fui nascida e criada nessa favela, estudei em colégio público. Quando eu vou para o pré-vestibular comunitário, tem professores que estão dialogando com nós, alunos, para além de uma questão acadêmica, de conteúdos que nos fizessem passar no vestibular, mas que também discutissem pautas que nos faziam entender enquanto sujeitos pertencentes dessa cidade, o Rio de Janeiro, já que só conhecíamos a realidade da favela, vítima de uma atuação muito truculenta e violenta do Estado. Quando você cresce nesse contexto, aprende a banalizar essa violência de certa forma.
Eu sempre gostei de circular em todos os espaços da cidade, tinha amigos em todas as zonas. Então, quando eu ia para a zona sul, a parte mais elitista, era uma cidade completamente diferente daquela em que eu vivia. Inclusive, às vezes tinha que dormir na casa de amigos porque não conseguia voltar para casa por causa de tiroteios. Entendi que tinha uma outra cidade e que queria essa cidade disputada para todo mundo e para o favelado também.
Nessa época, comecei a participar de manifestações, interagir com movimentos sociais, que estavam dialogando sobretudo com o movimento feminista. Por perceber que essa truculência e violência do Estado não podem ser banalizadas, que eu me tornei defensora dos direitos humanos, já que queria disputar uma outra cidade para todo mundo.
Poderia detalhar com quais agendas você se envolveu neste último ano?
Eu nunca tinha feito viagem internacional, por exemplo. A única viagem que eu e Marielle tínhamos feito para fora foi para o Chile, em uma agenda de trabalho dela. Nesses últimos 10 meses, eu já conheci inúmeros países na Europa, na América Latina, todos com pauta de agenda de feminismo e movimento LGBT. Isso foi uma coisa muito bonita de ver nesses últimos tempos, que foram tão difíceis. Uma rede de solidariedade muito grande. Para além de só prestar solidariedade, o movimento feminista e LGBT mundial me acolheu de uma forma muito delicada, muito bonita de ver. Eu fui para vários países, com essas pautas, para falar do contexto político do Brasil, da preservação da memória da Marielle, para fazer a denúncia dessa execução bárbara que foi esse crime político. A gente já passa de 10 meses [a entrevista foi concedida em janeiro] sem nenhum resultado, com o Estado sendo tão omisso e sem nos apresentar satisfação de como anda a investigação.
Como você enxerga a percepção do resto do mundo sobre este crime no Brasil?
O Brasil, de certa forma, ainda tem uma cobrança de justiça por Marielle, mas a pressão internacional, da própria mídia e da manifestação popular é muito importante para que este caso não seja esquecido e para que a gente garanta a evolução dessas investigações. O mundo inteiro, em todos os países que eu vou, está muito interessado em como anda o contexto da investigação, o contexto político, o que uma coisa tem a ver com a outra e o que se tem feito no Brasil quanto a isso.
As pessoas ainda estão muito interessadas tanto dentro quanto fora do Brasil. Eu digo ainda porque o Brasil tem essa fama de “país sem memória”, então é muito importante que a gente continue cobrando para que o caso Marielle não caia no esquecimento, não só enquanto memória, porque isso eu acho até que não vai acontecer. Marielle, dentro desse contexto social, já tem uma presença de luta que é atemporal. Mas a morte traz essa sensação de conformismo, a gente aprende a lidar e a se acostumar com a presença da ausência da pessoa. É óbvio que isso no campo social toca muito diferente do que toca a mim porque a gente está falando da Marielle figura pública, da Marielle que virou um símbolo.
Eu faço um esforço muito grande para manter sempre esse assunto em pauta, seja em manifestações na rua, seja em rede social, mídia, para que a gente não assuma o discurso brasileiro de que tudo vai ficar assim mesmo, que o Brasil não tem jeito, que nada vai mudar e que o resultado da investigação não vai chegar. Para a gente não aceitar esse espírito de conformismo e continuar pedindo justiça por Marielle, porque justiça por Marielle não é só justiça para Marielle figura, indivíduo, mas sobretudo pelo que ela representava enquanto luta.
Justiça por Marielle, para mim, não se faz quando o inquérito for concluído da forma como tem que ser, mas quando a gente estiver em uma sociedade mais justa e igualitária, que é o que ela defendeu durante sua vida e pelo que ela morreu. Mais importante do que a gente honrar a vida da Marielle, é também que a gente faça com que a morte dela não seja em vão, e não só a vida. Muitos corpos tombaram antes do corpo da Marielle. Não foi ela que inventou essa luta, mas ela tombou também em nome dessa causa. É para que não aconteça nada mais tão bárbaro e para que a gente continue defendendo o que ela defendia: essa construção de luta por direitos humanos, que é extremamente necessária no contexto político em que vivemos, com esse governo fascista no poder.
Como começou o relacionamento com sua esposa?
A gente começou um relacionamento de amizade em 2004. Fomos fazer uma viagem de Carnaval com amigos em comum. Nem eu nem Marielle tínhamos tido relação com mulheres ao longo da vida. Até aquele momento, a gente se entendia como heterossexuais. Já nessa viagem ficamos muito próximas porque a gente vem da mesma comunidade dentro da Maré e vimos que tínhamos muito em comum, do lugar, dos amigos.
Marielle trabalhava na época com uma mulher que era mãe do meu melhor amigo de infância. Ao longo de 2004 eu fui para o pré-vestibular que mencionei, e Marielle era a secretária desse vestibular. Foi pelo pedido e empenho dela que consegui fazer o cursinho. Minha mãe tinha mudado da Maré nessa mesma época, para muito longe, então eu passava a maior parte da semana na casa da Marielle.
A gente convivia o dia inteiro. Os amigos diziam que a nossa relação não era de amizade, insinuavam que estávamos apaixonadas. A gente achava aquilo absurdo e ficava ofendida. Tínhamos os nossos próprios preconceitos para lidar, enquanto mulheres, criadas no contexto da favela, um ambiente machista e LGBTfóbico. Para além dos próprios sentimentos, tinham muitas outras coisas envolvidas.
A gente tinha o costume de dormir juntas em uma cama de solteiro. Um dia aconteceu um beijo e logo depois fizemos uma DR para discutir sobre o que tinha acontecido. Na nossa cabeça, tinha sido um acidente e não ia voltar a acontecer. Aí, na noite seguinte, a gente repetiu a mesma coisa e depois entendemos que os amigos estavam certos e que não tínhamos só uma relação de amizade.
Foram 14 anos de relacionamento com muitas idas e vindas, pois tinha uma questão de lesbofobia muito forte, tanto social quanto familiar, então era muito difícil a gente conseguir alinhar as coisas e ficar juntas. Na primeira etapa do relacionamento, ficamos juntas dois anos e meio, e depois terminamos e voltamos durante todos esses anos, mas sem nunca perder o contato de companheirismo e cumplicidade. A gente sempre se consultava nas decisões importantes, até quando não deveria, porque a gente terminava o relacionamento e começava com outras pessoas, e essas pessoas não achavam saudável a nossa proximidade, já que era uma coisa muito intensa.
Desde que vocês começaram o relacionamento, demorou quanto tempo para abrirem isso para as famílias e os amigos?
Ficamos sete meses para contar aos amigos mais próximos. Obviamente todo mundo já sabia. Para a família demorou um pouco mais e foi bem difícil, como já imaginávamos. Em um primeiro momento, tanto a minha família quanto a dela não aceitaram, então lidar com a rejeição foi muito duro. Mas, depois que assumimos, fomos construindo a relação independentemente de quem apoiasse.
Vocês planejavam casar, ter filhos?
O projeto era para 7 de setembro deste ano. Já estávamos vendo detalhes do casamento, como local, buffet, vestido… Já tinha muita coisa encaminhada.
O que planeja para seu futuro? Pretende conciliar as pautas relacionadas a Marielle à sua carreira como arquiteta?
Eu queria terminar o mestrado porque foi a única coisa que me sobrou de projeto pessoal, embora esteja cada vez mais difícil essa possibilidade se concretizar. Hoje, não faço mais planos a tão longo prazo. Eu era a pessoa metódica do relacionamento, que tinha planilha de Excel para tudo, com tudo feito em cronograma, e a vida me mostrou que certa estava a Marielle, que vivia um dia de cada vez.
Então, hoje tento articular as coisas a curto prazo. Eu estou com essa vida de militância muito mais intensa e a minha carreira acadêmica muito menor. Agora, vou trabalhar na liderança do PSOL, a convite do partido, e vou estar vinculada à pauta de direito à cidade, que é o tema do meu mestrado. Talvez este seja um encaminhamento para alinhar as duas coisas.
Você comentou que está em Brasília agora e em fevereiro. Planeja se mudar do Rio?
Já está encaminhada a mudança justamente pelo convite do partido. A liderança do PSOL é feita na Câmara, com os deputados federais, é uma espécie de assessoria a deputados e deputadas. A mudança foi necessária. No início, tinha uma avaliação de segurança também, mas isso pouco me importou e não foi algum tipo de motivador. Mas, como a vida não é feita só da militância em si e a gente precisa encaminhar coisas de ordem prática também, como pagar aluguel, eu aceitei o convite. A ideia é estar sempre no Rio, porque minha vida toda é lá, família e amigos, mas, neste primeiro momento, para tentar retomar alguma coisa de rotina e encaminhar a vida com um pouco mais de tranquilidade, fico em Brasília.
Você pretende se candidatar a algum cargo político?
Neste momento, a minha proximidade com a vida da política institucional é estar na liderança do PSOL, trabalhando na assessoria. Se em outro momento isso vir a ser interessante ou eu cogitar essa possibilidade, terá que ser pensado de forma coletiva porque eu não acredito na política feita de uma forma individualista.
Você disse que o Brasil é perigoso para quem defende direitos humanos. Você recebe ou já recebeu ameaças desde que começou a cobrar por justiça pelo caso da sua esposa Marielle?
Em maio do ano passado, eu entrei com um pedido de medida cautelar. A OEA que concedeu porque teve um episódio em que um carro me acompanhou na rua até tarde da noite e depois estava na porta da minha casa. Por uma questão de segurança, eu fiz o pedido.
Fora isso, são muitas declarações de ódio e violência através das redes sociais, e na rua com o formato de xingamentos. Nada que a gente não tenha visto se tornar normal no período da campanha eleitoral, com o discurso do presidente sendo tão violento e apoiando esse tipo de ação. Mas eu não vejo motivo nenhum para parar de lutar por causa disso.
Como você avalia a decisão do deputado Jean Wyllys de deixar o Brasil após receber constantes ameaças de morte?
Imagino que tenha sido uma das decisões mais difíceis que ele já tomou na vida. O Jean tem o meu mais profundo respeito e admiração. Ele foi, sem dúvida, um dos parlamentares que mais contribuiu para este país. Na pauta LGBT nem se fala. Foi uma década de ameaças, violência, de diversas formas, física, simbólica, emocional.
Eu conheci o Jean através da Marielle, acompanhei várias fases de sua carreira e via o quanto toda essa violência estava afetando-o emocionalmente, principalmente depois do 14 de março. Eu acho que ele fez o que tinha que fazer. Não se escolhe o exílio. A gente tem muita responsabilidade sobre essa decisão, talvez até mais do que ele. Uma década de violência e denúncias, e ele sempre vinha relatando. Mas nunca fizemos nada, não manifestamos solidariedade como deveríamos.
Eu não consigo nem chamar isso de decisão porque a pessoa deixar o país, a família e os amigos não é uma escolha. É a única coisa a ser feita. Jean ainda tem muito a contribuir com a gente porque é um cara que tem uma produção intelectual muito grande. E tem sim que se cuidar, da saúde emocional e física. Precisamos dele vivo, seja lá onde estiver, para poder continuar na luta.
Sobre o suposto envolvimento de Flavio Bolsonaro e milicianos, você tem algo a comentar?
Não sei bem se suposto porque se tem parente de miliciano locado dentro do gabinete dele, isso para mim não é suposição, é prova de que há envolvimento. Eu acho que ele deveria se colocar com responsabilidade à sociedade para explicar o que se deu nisso. Não basta só alegar que não sabia o que tinha acontecido porque, independentemente de quem faça a seleção de seu gabinete, você enquanto representante deve saber quem está contratando. Eu sempre vi a Marielle fazer dessa forma, ela sempre sabia quem eram as pessoas que estavam trabalhando com ela.
Entendendo o perigo da milícia hoje, um grupo paramilitar extremamente organizado, que tem um projeto de poder político inclusive. Eu não acho razoável que um deputado, um representante do povo, faça acordo com um grupo como esse. Um dos suspeitos de ter relação com a morte de Marielle já foi homenageado pelo Flávio Bolsonaro também. É muito perigoso termos um grupo como a milícia tão perto desses espaços de poder. A gente tem que estar muito atento a isso no Brasil se ainda queremos ter alguma coisa de democracia por aqui.
Para você, qual o legado deixado por Marielle e o que ele representa no contexto atual?
Acredito que a inspiração de luta hoje é a coisa mais bonita que eu tenho visto nos últimos tempos. Essa luta toda não se inicia com a Marielle. Ela hoje se tornou um símbolo, e que bom que se tornou. No Brasil, a gente precisa sempre de referência. Estamos sempre buscando heróis para nos inspirar. Lamentavelmente, a gente só costuma valorizar a vida de um defensor de direitos humanos quando ele é assassinado.
A noite do 14 de março, com a execução bárbara da Marielle da forma como foi, deixou as pessoas chocadas. Não só no Brasil, mas transbordou as fronteiras e chocou o mundo porque era uma mulher, negra, favelada, lésbica, democraticamente eleita, exercendo seu mandato, um ano e três meses de um mandato que deveria ter durado quatro anos.
Tudo isso que a Marielle representava na própria história e no corpo, todas as pautas que ela defendia, estava incorporado nela. A população preta, a LGBT, periférica, favelada, mulheres, todos se sentem atingidos. Foi uma violência contra todos. Hoje está todo mundo indignado e mobilizado para fazer justiça por Marielle e para que se tenha uma sociedade que não cometa mais esse tipo de barbárie. Isso para mim é o principal legado. Se a gente pode entender qualquer beleza nisso tudo é olhar e saber que a vida e a morte dela não serão em vão porque mobilizou e inspirou muita luta e muita resistência.
Como você avalia o andamento das investigações do crime?
É muito difícil você passar 10 meses de uma execução como essa e ter esse cenário tão frágil. Se a gente olhar para o Brasil como um todo, é óbvio que entendemos que um assassinato como esse tem que ocorrer sob sigilo, mas sigilo é diferente de silêncio. O que as autoridades nos apresentam é um silêncio profundamente desrespeitoso, não só com a sociedade mas também com os familiares e entes queridos da Marielle.
Não tem resultado de inquérito que vá trazer Marielle de volta. Justiça por Marielle era ela chegar em casa e jantar na noite do 14 de março. O que aconteceu com a Marielle foi uma grave violação de direitos humanos e um atentado a nossa democracia. As autoridades deveriam se colocar com responsabilidade frente a isso.
[Sobre] o presidente atual: durante a campanha eleitoral, os presidenciáveis foram questionados em relação à Marielle. Todos responderam. Ele não. Quando eleito e questionado, também optou pelo silêncio. O chefe de Estado, a pessoa que está no principal cargo de poder, precisa se colocar diante de um dos crimes políticos de maior repercussão na história do país. Não é estar ou não de acordo com as ideias políticas e sociais. É se colocar enquanto responsável por este país e dizer ao mundo qual a responsabilidade do Brasil diante desse assassinato.
Tudo o que a gente sabe das investigações vem através da mídia. As autoridades competentes nem sequer se colocam para dizer se é especulação ou não. Fica tudo com cara de vazamento. Eu tenho cuidado de não comentar especulação porque eu quero o resultado desse inquérito e não quero qualquer resultado. Eu não quero que seja entregue um resultado a fim de silenciar o que se tornou a luta por Marielle.
Obviamente quem pensa numa barbárie como essa é uma pessoa muitíssimo poderosa, que se julga tão forte dentro dessa sociedade que tem a certeza da impunidade. E a gente precisa garantir que essa impunidade não aconteça. Eu tenho muita preocupação em acompanhar as investigações para que o resultado não seja falacioso, mas que seja a resposta correta de quem foi que mandou matar a minha companheira. Esse silêncio soa como descaso, como uma não evolução.
Você tem esperanças de que o crime seja desvendado?
Não é só esperança, isso é uma coisa que me move. Tem que ser uma luta constante para segurar isso. O Brasil é um país que não é para amadores. Sobretudo quando a gente vê um assassinato como esse, que tem participação do Estado, de milícias, de políticos. Estamos falando de uma coisa muito grave.
A única coisa que a gente costuma respeitar minimamente no país são esses status de poder e nem isso pôde proteger a Marielle, que estava ali, no exercício de seu mandato, eleita democraticamente, mas era o corpo mais descartável que esse país despreza: feminino, negro, favelado e LGBT. Quem planeja uma execução como essa não enxerga o próprio preconceito, que olha para esse corpo e, mesmo sendo uma figura política, acha que é um corpo descartável.
Em um país como este, temos que ter muito cuidado com o encaminhamento disso porque a resposta de quem matou e de quem mandou matar Marielle é, inclusive, para dizer claramente ao mundo que o Brasil não aceita mais ser este país violento que finalmente assumimos que somos.
Para todo o mundo, a gente tem a cara de cenário paradisíaco, país do Carnaval e povo cordial. Eu acho que é muito simbólico a gente olhar para 2018 e ver que, no mesmo ano, a única parlamentar negra, LGBT e favelada [da Câmara Municipal do Rio] foi executada da forma como foi, e a gente coloca democraticamente através do voto um fascista no poder, que tem um discurso completamente contraditório a tudo o que a Marielle representava e lutava.
Aí acho que a gente diz pro mundo que somos, sim, um país extremamente machista, racista, LGBTfóbico, misógino, e que precisa se reconstruir dentro de sua própria história para poder assumir quem realmente é. O fascismo, até que ele chegue ao poder, funciona como uma utopia quase indestrutível. Que bom que chegou ao poder, agora nos dá a oportunidade de derrotá-lo. Temos uma boa luta pela frente.