SPFW: Em tempos de ódio, Ronaldo Fraga ‘serve’ amor na passarela
Inspirado no conflito entre árabes e judeus, estilista mineiro propõe debate sobre a intolerância no Brasil. Confira a entrevista para a Catraca Livre!
Na noite de terça, 23, Ronaldo Fraga encerrou o terceiro dia de desfiles do São Paulo Fashion Week com uma coleção que pretendia levar à passarela o respeito, a tolerância e, principalmente, o amor.
Durante sua última viagem a Tel Aviv, em um café da cidade israelense, o estilista se deparou com uma frase em hebraico que dizia: “Se nesta mesa se sentar um árabe e um judeu, damos 50% de desconto”.
Observar a harmonia entre pessoas de diferentes orientações sexuais, gêneros, religiões e etnias que habitam o lugar levou Ronaldo a refletir sobre o contexto social e político do Brasil, tentando descobrir a origem do sentimento de ódio e “guerra” que toma conta do país.
Na sala de desfiles do ARCA, espaço localizado na Vila Leopoldina escolhido para a 46ª edição do SPFW, Ronaldo Fraga montou uma mesa tão comprida quanto a passarela, recheada de quitutes da culinária árabe, síria e judaica, frutas, vinhos, livros e velas.
A performance se iniciou ao som de “Preciso Me Encontrar”, música de Cartola cantada pela alemã judia Carte Blanche, e teve como abertura a representação do amor em sua forma mais singela e literal: com beijos. Em frente às câmeras, um casal formado por dois homens, um segundo por um senhor e uma senhora e um último por duas mulheres trocaram afetos.
Após declararem justas todas as formas de amor, os pares se sentaram à mesa e partilharam tudo o que ali havia, junto com os outros modelos que, após desfilarem, também integraram o banquete.
Na coleção, o estilista mineiro misturou símbolos das religiões árabe e judaica, levando ao SPFW a Estrela de Davi, chapéus ortodoxos, lenços palestinos, o peiot (mecha de cabelo mantida por homens judeus na lateral da cabeça), a Menorah (candelabro com sete braços), a figura do peixe, entre outros signos sagrados.
Camisas, vestidos e túnicas de linho azulado se misturaram a estampas xadrez, listradas, com bolinhas, vazadas e manchadas, que conversavam com o tecido mais democrático do mundo, o jeans, assim como acessórios de pregos e tranças coloridas, unindo toda essa mistura.
Ao final do desfile, todos, até então sentados, se levantaram, deram as mãos e cirandaram conduzidos por uma versão em hebraico da emocionante “My Way”, cantada por The Barry Sisters, até decidirem convidar o público a também compartilharem do alimento ali oferecido.
- Quer saber mais sobre a apresentação? Então confira a entrevista exclusiva da Catraca Livre Estilo com Ronaldo Fraga:
Você colocou todos os modelos à mesa, um ao lado do outro, onde nenhuma cadeira era mais alta do que a outra, propondo a partilha do alimento. Qual seria a importância de colocar o Brasil e os brasileiros, hoje, à mesa e o impacto dessa ação?
Ronaldo Fraga: Temos vivido um processo de desenergização, onde precisamos fazer o indivíduo olhar e entender o abismo para qual o país está sendo empurrado. Nesse tempo, precisamos do que é prosaico e feito de amor: coar um café para alguém, oferecer uma água fresca, sentar para comer ao lado, ouvir uma música, ler um novo livro. São ações que humanizam as relações e o dia a dia das pessoas.
Sentar à mesa é descansar da guerra, é colocar as armas no chão e se nutrir. As pessoas já não se reconhecem dentro da própria casa, no meio da própria família. Essa imagem de sentar à mesa universaliza.
Para a coleção, foi usada a cor azul, propondo contrates entre as texturas e recortes dos tecidos, com aplicações de imagens associadas às religiões. Por que essa mistura?
RF: A ideia foi embaralhar o sagrado de dois grupos, que brigam por território, pela autoria de comidas, pela listra azul. Quando você mistura o que é sagrado para cada um, é como se dissesse: “a identidade é uma árvore em constante crescimento, não uma coisa fixa e imutável”.
A ideia foi mesclar signos que se repetem nas culturas judaica e palestina, como a camisa. As modelagens são as mesmas, em modelos longos tanto para o homem quanto para a mulher.
Você falou sobre marcas que engrossavam o discurso da diversidade e hoje caminham no sentido contrário. Como a moda contribui para o diálogo político? Como ela se faz presente?
RF: Vamos pensar o que é o vestir. Primeiro, é um ato político, porque a roupa que você coloca no corpo é inegavelmente sua primeira forma de linguagem do seu tempo, espaço e grupo.
O que as pessoas vestem, como o que elas comem e onde moram, entregam sua visão de mundo. Quando falamos da eleição de um candidato que é a favor da higienização da cultura brasileira, podemos pensar o pior para a moda do país.
Como artista, Ronaldo Fraga tem qual expectativa? Enxerga de maneira positiva o futuro da cultura e, sobretudo, da moda?
RF: Independentemente de qual candidato ganhar, esse monstro da intolerância, que é classista e fascista, já saiu da prisão, está solto. Então, a fratura já foi feita.
Meu primeiro contato com a moda foi no final da ditadura militar, quando eu ainda era um adolescente. Estava lendo um livro do Zuenir Ventura e havia um capítulo dedicado à Zuzu Angel, e aquilo me marcou tanto que, em 2001, fiz um desfile no São Paulo Fashion Week intitulado “Quem matou Zuzu Angel?”.
Jamais imaginaria que o Brasil, um dia, pudesse ter a chance de viver o que foram os dias de chumbo novamente e que o trabalho da Zuzu fizesse tanto sentido como faz agora.
Antes do Bolsonaro tomar posse, ele nunca escondeu os sinais da “mão pesada”. Na época dela, havia o exército – hoje, sucateado – segurando tudo, agora é pior, pois são as pessoas o exército desse pensar. O conceito fascista se espalhou e está no ar. Não acredito em autoria sem autobiografia. Por isso, o que estou vivendo é o que coloco no meu trabalho na moda.