11 relatos de quem viveu o desabamento do edifício Wilton Paes
O Catraca Livre ouviu 11 depoimentos de ex-moradores e voluntários que estão no Largo do Paissandu desde o desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida
Dias após o incêndio que causou o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, a tragédia que envolve a vida de centenas de pessoas, no centro de São Paulo, parece não ter fim.
Diante disso, em um momento de intensa comoção popular, ex-moradores, vizinhos e anônimos de toda sorte, fé e endereço dão uma genuína demonstração de afeto, preenchendo o vazio e a incerteza de quem perdeu tudo nas chamas da madrugada do dia 1º de maio.
Dividem a rotina do desabrigo em meio à oferta de roupas, comida, itens de higiene, brinquedos e outras contribuições que, em menos de 48 horas, encheram as dependências da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e o entorno do acampamento improvisado pelos moradores, no Largo do Paissandu.
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O Catraca Livre esteve lá para ouvir os sobreviventes do incêndio, suas histórias de vida, e conhecer também pessoas que deixaram suas casas para dar uma valiosa lição de empatia e afeto:
- Carolina dos Santos, 31 anos, moradora do quarto andar
“Morava na ocupação havia dois anos e hoje estamos aqui neste estado deplorável. Esperamos que o estado se sensibilize, porque não precisamos só de doação de roupa, coberta e colchão porque já estamos no terceiro dia aqui, né? Somos obrigados a dormir com as crianças no chão, tem bebê recém-saída da maternidade.
Cheguei aqui por conta do desemprego, sem condições de pagar aluguel, quando soubemos da ocupação por dois amigos. Era um bom lugar, lugar de família, melhor do que a rua. Era a nossa casa, o que nós tínhamos, nosso único bem material. Espero que o estado tome vergonha na cara, não venha ajudar só agora porque, se tivesse ajudado antes, isso não tinha acontecido. Não adianta jogar a gente em abrigo, pagar auxílio por três, quatro meses e depois nos abandonar. Somos mães e pais de família desempregados e perdemos o pouco que tínhamos. Eu estava no quarto andar quando o incêndio começou. Muita gente não conseguiu sair a tempo de salvar, e muitos outros estão internados com queimaduras na Santa Casa e no Hospital das Clínicas. Um bebê de sete meses está debaixo dos escombros.”
- Leonardo Bueno Araújo, 15 anos, morador do segundo andar
“Quando começou o fogo eu estava em casa, assistindo à Netflix. Por causa dos vidros que estavam estourando, uma explosão que começou do nada, pensei que fosse tiro. Ou que tinham tacado fogo em algum carro na rua. Quando olhei pra cima, vi que estava pegando fogo no quinto andar. Aí eu e mais um amigo pensamos em subir pra apagar o fogo, porque achávamos que era só num andar e dava tempo de apagar. Na mesma hora, alguém comentou que o incêndio já tinha tomado tudo, que não dava pra pegar mais nada. Aí bateu o desespero e saímos correndo. Coisa de 40 minutos depois, o prédio inteiro estava queimado. A única coisa que a prefeitura fez foi mandar o pessoal do albergue, mas pra lá nós não vamos não.”
- Gerivaldo Bueno, 42 anos, morador e antigo porteiro da ocupação
“Sou de Goiás e fui criado em São Paulo. Já morei no Amazonas também, onde sempre trabalhei com agricultura. Mas as coisas mudaram, ficaram difíceis com a industrialização do campo e, em 2014, voltei pra cá pra dar estudo para os meus dois adolescentes, Leandro e Leonardo. Aqui comecei a trabalhar na construção civil e hoje carrego contêiner para os chineses na [rua] 25 de março. Eu considerava a ocupação como parte da minha família. Até comentei com um pessoal que nunca tinha visto um negócio desses. Gente de raça diferente, de lugar diferente, convivendo e se respeitando.
Eu morei em condomínio de classe média em Goiânia e nunca vi isso. Tinha africano, nordestino, gaúcho, paulista, mineiro, boliviano vivendo junto, sempre se ajudando, muito diferente dessa história de facção criminosa que o [ex-prefeito João] Doria andou falando. Inclusive, numa pesquisa recente feita pela prefeitura, o perfil da ocupação foi muito elogiado. Gente que, apesar da baixa renda, consegue fazer alguma coisa, se sustentar. Cheguei em São Paulo pela primeira vez ainda na adolescência e fui morar na favela do Gato. Já passei por duas tragédias parecidas lá, a primeira numa enchente onde perdemos tudo e conseguimos aos poucos recuperar. Dois anos depois, a favela pegou fogo, com um acidente de uma geladeira que pegou fogo no motor. Nessa última, eu já era veterano. Nosso choque maior até agora não é pela perda material, mas pelas pessoas que estão embaixo do concreto, que morreram. Só de amigo meu, mais próximos, são oito e, conhecidos, de bom dia, boa tarde, deve ter umas 40 pessoas desparecidas.”
- Iara, vizinha da ocupação, doadora
“Eu sempre passava ali perto da região, conhecia o pessoal que morava [no prédio]. O que me motivou a vir foi a tristeza né, porque todos são nossos irmãos. Eu chorei muito já. Penso nas mulheres, nas crianças, naquele moço que morreu pra salvar os outros. Foi uma atitude muita linda. A gente tem que se unir neste momento da maneira que pode. Eu não tenho muita inteligência, mas, se tivesse estudo, podia ajudar de outro jeito: nas manifestações, construindo casas ou até evitar que isso acontecesse, reformando o prédio. Isso me entristece muito.
O que foi muito curioso é que na segunda-feira ia levar umas doações para um lugar que sempre ajudo e lá tava fechado. E quando aconteceu isso, pensei que aquela sacola não ficou em casa por acaso, porque hoje essas pessoas estão precisando mais. A única coisa que eu faço quando vejo gente nessa situação de rua é rezar. Eu não posso ajudar todo mundo, mas posso fazer uma oração.”
- Iago Vitor, 16 anos, morador do mezanino
“Morava lá havia um ano, vim de Minas Gerais com a minha mãe e lá foi o primeiro lugar que me acolheu de verdade. Todo mundo me recebeu, me ajudou, não me tratou mal em nenhum momento. Eu tava dormindo quando minha mãe ouviu os estalos do vidro. Ela me acordou e saímos em choque. Não sentia nada, não sentia as pernas, não sentia o braço, nada. A única coisa que conseguimos salvar foi documento. A prefeitura não está fazendo nada, a não ser falar na mídia mesmo. Se for pra morar em albergue, pra ser humilhado mais do que já somos, nós não vamos.”
- Júlia Robert, 33 anos, ex-moradora de rua e voluntária
“Aqui tem muita gente que conheço de quando era menor, época em que morava na rua. Vivi em ocupação a vida inteira, e os movimentos sociais são símbolos de luta. O Brasil inteiro está em uma grande luta porque hoje vivemos o final do apocalipse. E infelizmente não podemos esperar nada da prefeitura. A única facção criminosa nessa história são eles, políticos, empresários, tudo.”
- Rafael, morador do quinto andar
“Morava lá havia seis meses e a prefeitura nem o governo nunca tiveram um olhar para a gente diante daquela situação. Apenas criminalizavam nosso movimento, dizendo que cobrávamos taxas absurdas quando na verdade é o contrário. Existe, sim, um movimento organizado, que sempre ajudou os moradores, feito por essas pessoas. Eles [governo] oferecem auxílio-aluguel, abrigo, mas nós precisamos mesmo é de um direcionamento, precisamos de uma casa. Há anos lutamos por direito à moradia. Felizmente, ou infelizmente, eu não estava lá no dia e fiquei muito traumatizado porque não consegui ajudar muitos amigos.”
Elisângela Faiotto, psicóloga voluntária
“Viemos para prestar suporte psicológico. É um momento de muita comoção social, em que as pessoas têm muita boa vontade em trazer coisas materiais. Mas é muito importante também o acolhimento, a escuta, ouvir a pessoa falar, deixar desabafar e, principalmente, evitar perguntas constrangedoras. E estamos aqui circulando, ouvindo as pessoas, brincando com as crianças.
Foi através dessas conversas que percebemos outras necessidades. Por exemplo, a gente conversou com uma família, e a mulher precisava ir ao banheiro. Mas não tem banheiro. Uma senhora descobriu que uma amiga próxima não sobreviveu, e a pressão dela subiu. A questão é que se você não perguntar o que a pessoa está precisando, você vai tentar entender a realidade dela através do seu ponto de vista. E as realidades são bem diferentes.”
- Animal, ex-moradora de rua e voluntária
“O que me levou a vir aqui não é para sair na televisão, nada disso. É que eu sei o que é sentir na pele você ter uma casa e ir pra rua. Em albergue ninguém gosta de ficar, você não pode levar seu bicho, seu esposo, é tudo muito rigoroso. Esse papo de dar 400 paus vai ajudar o quê, pra depois ser jogado na rua de novo? Isso é mentira, eu morei na rua e sei como é que é.”
- Marinalva, moradora do sétimo andar
“Eu trabalhava de faxineira e morava lá havia mais de ano. Eu cheguei lá porque não tinha pra onde ir mesmo. A gente era unido, todo mundo se dava bem e não tinha nada disso de facção, não. Antes de chegar à ocupação, eu dormia nos empregos e depois que perdi o último acabei vindo pra cá. Na hora do incêndio, eu tava com meu filho dormindo quando ouvi a gritaria, o pessoal correndo pra escada e foi o tempo que tivemos pra fugir. Não deu tempo de salvar nada, se demorasse um pouquinho mais teria ficado lá dentro também.”
- Antonio da Paz, voluntário
“Eu vim da zona leste, de Guianazes. Decidi ajudar quando vi pela TV e aquilo me comoveu, o prédio desabando do nada, deixando o povo sem roupa, sem nada. Tô aqui desde a madrugada do desabamento e trouxe umas coisas pra cá, dando um apoio pra eles. Eles precisam de muito mais. Mas é sempre bom lembrar nessa hora que alguém precisa, o Brasil é assim, sempre tem muita gente pra ajudar. Não tem um minuto que falta mercadoria, de pão a roupa. Não tem quem não se comove e é por isso que vim de lá pra cá e só saio no final quando resolver isso aí.”
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