Documentário conta como a Bolívia se livrou do analfabetismo
Os jornalistas Fellipe Abreu e Luiz Felipe Silva, autores do documentário "Yo Sí Puedo", contam como o programa educacional ajudou milhões de pessoas a deixarem o analfabetismo na Bolívia
Em julho de 2014, segundo chancela da Unesco, a Bolívia se tornou um território livre do analfabetismo. Mas para falar da revolução educacional que, desde 2006, transformou a realidade do país altiplano e ensinou mais de um milhão de pessoas a ler e escrever nos últimos dez anos, apresentamos o documentário “Yo Sí Puedo” – realizado pelos jornalistas brasileiros Fellipe Abreu e Luiz Felipe Silva. (que está em processo de financiamento coletivo para ser finalizado)
Homonimamente inspirado no programa de alfabetização cubano, hoje revertido em um dos melhores índices mundiais de educação, “Yo Sí Puedo” promove um recorte documental do método que hoje esbanja suas conquistas: na Bolívia de 2016, a taxa de analfabetismo não ultrapassa 2,9% do total da população.
Após dois anos de investigação que, entre 2014 e 2016, acompanhou o desenvolvimento de estudantes – entre eles 40 % idosos acima de 60 anos e 70% mulheres – o documentário destaca histórias de anônimos como a do líder comunitário Dom Quintin Pulma, policial aposentado, de 83 anos, que conta sua história:
“ler e escrever era proibido! Eu morava no sítio em que meus pais trabalhavam e o patrão dizia que se eu fosse à escola cortaria minha língua”.
Produzido de maneira completamente independente por seus autores, “Yo Sí Puedo” foi planejado para ser publicado de maneira grátis e aberta na internet, em versões para português, espanhol e inglês.
Para o projeto seguir adiante, está no ar uma campanha de financiamento coletivo, com o objetivo de arrecadar verba suficiente para concluir o documentário. Confira a entrevista que fizemos com Luiz Felipe Silva, um dos autores do documentário:
Catraca Livre – Desde 1994, a Bolívia trabalha intensamente suas políticas de educação, a exemplo dos projetos”Programa de Reforma Educativa (PRE)” e “Yo Sí Puedo”, que tiveram participação direta da sociedade na construção de um país livre do analfabetismo. Comparando o cenário com a realidade brasileira, e citando Darcy Ribeiro (A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto) quais são as diferenças entre os métodos de aprendizagem aplicados nos dois países?
Luiz Felipe – A gente pode ver da seguinte maneira. A partir da década de noventa, foram implementadas medidas até relativamente similares entre os dois países. Universidades focadas em pesquisa pró mercado e universalização dos serviços educacionais por todo território, levar escolas para áreas rurais e/ou para comunidades muito pobres. Isso proporcionou um ótimo avanço nesse sentido.
A partir dos anos 2000, com a entrada de partidos de esquerda (ou centro-esquerda, se preferir) na presidência dos dois países, a coisa mudou um pouco. No Brasil, o Bolsa Família deu um passo adiante nessa proposta da universalização do acesso à educação vinculando o benefício à necessidade da criança estar matriculada. E no topo da cadeia, o Brasil criou diversas universidades federais e patrocinou programas como Prouni, que fizeram explodir os cursos particulares. Na Bolívia, o foco foi educar sob uma perspectiva de projeto nacional. Se inspiraram no Bolsa Família e criaram o Bônus Juancito Pinto par obrigar crianças a seguirem na escola (o índice de jovens até 15% no sistema educativo é de país rico, coisa de 99%) e nas universidades federais brasileiras – reformaram algumas e criaram duas universidades indígenas, algo que não existia no país.
É neste contexto que o Yo Sí Puedo entrou em cena. A ideia era melhorar qualidade de vida e criar uma cultura leitora no país. Alfabetizar adultos não traz grandes resultados ao PIB, mas melhora a auto estima das pessoas, dá a noção da importância dos estudos aos adultos – o que consequentemente refletirá em seus filhos e netos.
Junto ao Yo Sí Puedo, dois projetos foram instaurados, a Campanha Bolívia Lê (uma campanha de arrecadação de livros para levar peças para bibliotecas em áreas longínquas) e a Olimpíada do Saber (com ajuda de jovens, os adultos e idosos em processo de alfabetização fazem apresentações, contam histórias, escrevem e produzem músicas… levam seus conhecimentos à população em geral). O projeto é de inclusão e mobilização social para a educação, não é tão tecnicizado quanto no Brasil, em resumo.
Catraca Livre – Quais foram e ainda são os principais desafios enfrentados pela Bolívia neste processo de transformação social?
Luiz Felipe – Creio que foram dois, principalmente: mobilizar os professores e os cidadãos em geral em participar do programa sem ganharem um centavo sequer e convencer adultos e idoso sobre a importância de aprender a ler e escrever mesmo depois de terem uma vida já construída. Foi criado um plano de carreira e bonificação para os professores para que eles se envolvessem para valer com o Yo Sí Puedo, e funcionou: são cerca de 18 mil professores-facilitadores. E para chegar aos adultos, uma campanha forte de captação de funcionários do Ministério e de propaganda na TV foram as saídas encontradas.
Catraca Livre – E, para além dos números, qual é o principal legado para o futuro do país?
Luiz Felipe – Acredito que o principal legado é a criação de uma cultura de educação. Depois de se chegar a esse índice de 2,9% de analfabetismo e de 99% de inclusão escolar é difícil dar um passo para trás. Criou-se essa cultura e uma rede de mobilização social para apoiar aqueles que mais precisam, como camponeses, presidiários, deficientes etc etc. E a auto estima do povo também é um grande legado deste projeto.
Catraca Livre – O modelo aplicado lá é replicável para outros países da região, levando em conta o contexto sociopolítico da América Latina ?
Luiz Felipe – O modelo é muito fácil de ser replicado. É barato (custa cerca de 18 milhões de bolivianos por ano, cerca de 7 milhões de reais) e utiliza metodologia relativamente simples, precisa de suporte de TV e vídeo apenas. No Brasil, foi implementado em alguns assentamentos do MST com bons resultados. Agora, já que temos uma ofensiva conservadores na América Latina é difícil imaginar uma cooperação, por exemplo, entre Brasil e Cuba… As prioridades destes governos são outras que não a inclusão do sistema educativo, aparentemente.