Negras latino-americanas são mais sujeitas a violência doméstica
Brasil é o país com maior incidência de feminicídios na América Latina, seguido de México, Honduras e Argentina
Mesmo que as mulheres negras da América Latina e do Caribe tenham suas particularidades, elas compartilham as mesmas lutas pela própria sobrevivência que são dificultadas tanto pelo racismo quanto pelo sexismo, e acabam afetando questões territoriais, sociais, econômicas ou mesmo políticas. Isso exclui e oprime duplamente as mulheres negras pela influência de um gênero sobre o outro.
Segundo a Agência Brasil, a estimativa dada pela Associação Rede de Mulheres Afro-Latinas, Afro-Caribenhas e da Diáspora (Mujeres Afro) é de que existem 200 milhões de afrodescendentes na América Latina e no Caribe, que correspondem a 30% da população desses lugares.
No regime escravocrata, o trabalho braçal, o sexo forçado e as torturas eram usadas para manter as mulheres negras submissas, e, ainda hoje, elas lutam para tirar dos ombros essas marcas centenárias.
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“Gosto sempre de dizer que não é normal que o movimento feminista tenha conquistado o direito ao voto em 1932 e só em 2015 o movimento de mulheres negras conseguiu aprovar a PEC das Domésticas”, disse Laina Crisóstomo, advogada feminista negra e presidenta fundadora da Ong TamoJuntas.
E emenda: “Isso é assustador ou ao menos deveria ser vergonhoso para as mulheres não negras que não consigam perceber essa disparidade. A mulata exportação, a globeleza, a publicidade da cerveja preta, venda de ácidos para clareamento da pele são reflexos de quase 500 anos de escravização”.
Com dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da Organização das Nações Unidas (ONU), dos 25 países com os maiores índices de feminicídio do mundo, 15 estão na região da América Latina e do Caribe. Uma mudança sutil na forma de encarar esses crimes tem ocorrido: entre 2010 e 2015, o número de países dessa região que tipificaram o crime em suas leis penais subiu de quatro para 16.
Foi constatado que o Brasil é o país com maior incidência de feminicídios (4.762 em 2013) na América Latina, seguido de México (2.289), Honduras (531) e Argentina (225) em 2014, a cada 100 mil habitantes.
Laina acredita que a liderança do Brasil resulta de um país que é “extremamente machista e tem influência significativa da igreja, do moralismo, especialmente quando pensamos que por décadas tivemos o crime passional, crime contra a honra e a permissão de castigo das mulheres por seus maridos”.
No Brasil, segundo o Mapa da Violência 2015, ao longo dos anos as mulheres negras fizeram diversas ações para expor as desvantagens sociais sobre a violência doméstica ou qualquer outro tipo de violência, mas, por falta de dados especificados por cor e dificuldade de inserção do tema, a questão ficou oculta.
O mapa também ressalta a estrutura discriminatória, já que a vitimização é seletiva: as taxas de violência contra brancas são menores e contra negras tendem a aumentar.
“Crescemos enquanto movimento feminista e conquista de direitos, mas o racismo, o machismo e o patriarcado se reinventam todos os dias. É possível perceber isso nos crimes de ódio cada vez mais recorrentes nas redes sociais. Sem sombra de dúvida, a violência irá crescer e também mais mulheres se sentirão encorajadas a denunciar. Esses são os dois lados das estatísticas”, ressalta a advogada.
Entre 2003 e 2013, as principais vítimas da violência de gênero foram meninas e mulheres negras (de 4,5 para 5,4 por 100 mil habitantes) e houve queda nas taxas de homicídio de mulheres brancas (de 3,6 para 3,2), com maior incidência entre 18 e 30 anos de idade, sendo a maior parte das mortes causadas por força física ou objeto cortante. Ou seja, em dez anos, a taxa mais baixa de homicídio de negras não chega a ser menor que a taxa mais alta de homicídio de brancas.
“O feminismo clássico tem uma dívida grande com as mulheres negras. A luta das mulheres negras sempre existiu nos suicídios, nas senzalas, nos abortos, nas fugas para construção de quilombos”, diz a advogada.
“A visibilidade se dá com Lélia Gonzalez, com Luiza Bairros, com autoras afroamericanas por volta da década de 70. Em toda a América Latina e o Caribe, especialmente em 1992, com a união e reunião das demandas especificas das mulheres negras nesses países que sofreram por tanto tempo com colonização e exploração”, completa.
Dados do primeiro semestre de 2016 da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM) mostram que espaços privados ou mesmo familiares, que deveriam ser de refúgio para a mulher, são onde mais se propagam a violência doméstica (86,4%) que vem de maridos, companheiros, pais, padrastos, tios ou outros membros da família.
No mesmo período, pelo atendimento do Ligue 180, um total de 555 mil ligações foram recebidas e, deste montante, quase 68 mil eram relatos atribuídos a violência física (51,06%), psicológica (31,10%), moral (6,51%), cárcere privado (4,86%), violência sexual (4,3%), patrimonial (1,93%) e tráfico de pessoas (0,24%).
De todas essas situações, 59,71% foram de violência contra negras e a maioria das denúncias foi feita pela própria vítima (67,9%). Os dados também mostram que o Estado, por meio de políticas públicas, não tem coibido a violência doméstica e familiar, especialmente no que fiz respeito às mulheres negras. Em comparação com o mesmo período do ano passado, houve um aumento de 133% nas denúncias, sendo que 97,76% dos casos apresentaram risco para a vítima.
“Há muita política, mas não para nós. Infelizmente, a luta das mulheres não negras nunca incluiu mulheres negras. Posso citar direito ao voto em 1932, quando quem votava eram mulheres que sabiam escrever, Estatuto da Mulher Casada de 1962, Lei do Divórcio de 1977, Constituição Federal de 1988, todas as pautas foram elaboradas por mulheres não negras”.
A própria Lei Maria da Penha, diz Laina, “não foi pensada e não tem funcionado para as mulheres negras , porque não é possível que uma lei consiga reduzir em 10% o número de feminicídios contra mulheres brancas e contra mulheres negras aumente em 54,3%”.
O problema é complexo e demanda não apenas leis e programas que incluam assistência psicológica e social, mas estratégias que transformem a cultura e as condições, assim como fortalecimento das relações sociais. Exige, também, ações na Justiça, saúde e educação nas instituições de cultura e nos meios de comunicação, assim como apoio e assistência jurídica. Acesso e autonomia econômica não bastam para liberar mulheres vulneráveis à violência, mas ajudam a quebrar o ciclo.
Nesse quesito, o maior avanço do país foi a organização dos movimentos sociais. “Sinto mais força, mais poder e mais sororidade nos movimentos e isso sem dúvida as encoraja a falar, a denunciar. Campanhas como #meuamigosecreto, #meuprimeiroassedio e #euempregadadomestica são isso: o grito de socorro com a força das redes e a força de mais mulheres”, complementa a advogada.
Ainda com informações da Cepal, dados específicos nos países da América Latina e Caribe, apesar de terem avançado na intenção de harmonizar as informações e números oficiais, têm enfrentado obstáculos na dispersão, falta de comparabilidade e baixo tempo dos registros que foram retidos. Os países ainda precisam implementar metodologias que deem a dimensão da violência, bem como construir registros exclusivos.
Pela Cepal é possível perceber que em sua forma mais ampla, a violência sexual contra mulheres negras ainda enfrenta questões relacionadas a exploração sexual infantil e de adolescentes, assim como o tráfico de mulheres. Tudo isso tem ligação com a imagem de controle que as envolvem como objeto de consumo e exploração sexual para além de políticas públicas de controle e responsabilidade midiática e da indústria do turismo, que deveriam eliminar esses estereótipos, mas acabam reforçando.
“Precisamos boicotar essas empresas até que entendam nossas demandas, nossos direitos, sentindo no bolso. Isso contribui muito para a manutenção dos estereótipos da ‘disponibilidade’ do corpo da mulher negra, fortalece e muitas vezes tenta justificar violências”.
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