“Nos últimos 30 anos, o número de mulheres assassinadas no Brasil aumentou 230%”
Conversamos com a jornalista Amanda Kamanchek, do coletivo Chega de Fiu Fiu, sobre Jair Bolsonaro, poder judiciário e a militância das mulheres nos dias atuais
Denunciado pelo Ministério Público Federal na última segunda-feira, o deputado Jair Bolsonaro sequer será julgado pela incitação ao crime de estupro – já que o processo que pede sua cassação deve ser arquivado no dia 31 de janeiro de 2015.
Reeleito, Bolsonaro utilizará o argumento de que sua nova legislatura não responde por fatos anteriores e, assim como manda a cartilha, todas as matérias em tramitação em 2014 serão engavetadas.
O episódio reacende o debate sobre a violência contra a mulher em um país que busca transformação ainda a passos curtos, mas que não deixa de caminhar. Entre as muitas frentes de luta contra a misoginia e exploração do gênero feminino, coletivos, ong’s e movimentos sociais se organizam para mudar um cenário de abuso, assédio, morte e omissão.
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Para abordar tudo isso, conversamos com a jornalista e ativista Amanda Kamanchek, representante do coletivo Chega de Fiu Fiu, que falou sobre o papel da militância feminista, a importância do poder judiciário e outras questões.
Confira a entrevista
CL – Ao considerar os altos índices de violência de gênero registrados no país, o que a imagem de Jair Bolsonaro significa para a luta das mulheres?
Amanda – Considerando que houve um aumento de 230% no número de mulheres assassinadas no Brasil nos últimos 30 anos e que cinco mulheres ainda são espancadas a cada dois minutos, a imagem do deputado significa um pensamento inadequado e motivador da violência. Bolsonaro tem uma visão machista que coloca a mulher como um objeto e não um ser humano e de direitos. Nós estamos numa luta constante pela desconstrução dos estereótipos de gênero, que colocam o homem como alguém que precisa ser violento, provedor e insensível, e o isenta das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos.
Nós queremos que os homens entendam que foram ensinados a ser machistas e que essa lógica perpetua a sociedade violenta na qual vivemos, onde uma mulher é vista como um objeto, que como tal é de posse do homem. Isso está errado e temos o dever de corrigir esses valores a fim de acabar com a violência contra as mulheres, um grave problema da humanidade.
CL – Sobre a denúncia, Bolsonaro disse que será fácil fazer a defesa, afirmando que em duas laudas conseguirá provar que foi ofendido. Diante da afirmação, como atua o poder judiciário em relação aos direitos das mulheres? Qual a eficácia da justiça nos julgamentos e no cumprimento das leis ? (levando em conta que essa não é a primeira afirmação de Bolsonaro sobre estupro)
Amanda – Tivemos um grande avanço nos direitos das mulheres com a Lei Maria da Penha, uma lei exemplar em todo o mundo, e agora temos que continuar aprimorando e cumprindo o que esta lei determina. No caso da ofensa do Bolsonaro contra a deputada, cabe ao Parlamento e ao STF se posicionarem sobre esse caso, que eu acredito ser de injúria e difamação contra a deputada Maria do Rosário.
Sobre os avanços necessários, a ONU Mulheres, por exemplo, está realizando neste momento a adaptação do Modelo de Protocolo Latino-americano para Investigação das Mortes Violentas por Razões de Gênero, um protocolo fundamental para aprimorar os processos de perícia, de investigação e de penalização no Brasil, uma vez que vai oferecer diretrizes para a identificação e a compreensão das ações de violência que correspondem aos crimes de gênero. Além disso, existem casos como o do assédio sexual, muito difíceis de serem enquadrados na lei, por seus aspectos altamente subjetivos e às vezes por falta de provas. Nesse caso, acho necessário que o Ministério Público se debruce sobre os casos de assédio, tenha pessoas capacitadas para tal atendimento e tenham casos de sucesso que possam se tornar exemplos de conduta para nós no futuro.
CL – Uma pesquisa recentemente afirma que apenas 35% das mulheres denunciam os abusos sofridos. Ao mesmo tempo, parece existir um levante mais representativo em defesa das mulheres nos últimos anos, com a atuação de diversos coletivos . Quais são as expectativas para os próximos quatro anos ?
Amanda – O tema da violência contra a mulher está em pauta, sim, mas ainda há tabus como os direitos reprodutivos, o aborto. Esses são temas que vêm sendo defendidos pelas feministas desde os anos 1970 e que ainda não foram garantidos. Além disso, não temos o acesso pleno das mulheres aos espaços públicos, tema ao qual me debruço, e que ainda não é compreendido por todos.
O fato da mulher ter muito menos liberdade nas cidades, não poder se vestir como quiser, não conseguir circular por uma série de espaços por falta de iluminação, mobilidade e por constante medo de ser assediada ou estuprada, são indicativos que mostram o quanto ainda precisamos avançar. Mas, fico feliz de ver que o tema da violência contra as mulheres está em debate, tem sido pesquisado e tem mobilizado mulheres –jovens também-, mostrando a relevância da igualdade de gênero.
Veja como denunciar a violência doméstica
No Brasil há um número específico para receber esse tipo de denúncia,180, a Central de Atendimento à Mulher. O serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias do ano e a ligação é gratuita. Há atendentes capacitados em questões de gênero, políticas públicas para as mulheres, nas orientações sobre o enfrentamento à violência e, principalmente, na forma de receber a denúncia e acolher as mulheres.
O Conselho Nacional de Justiça do Brasil recomenda ainda que as mulheres que sofram algum tipo de violência procurem uma delegacia, de preferência as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), também chamadas de Delegacias da Mulher. Há também os serviços que funcionam em hospitais e universidades e que oferecem atendimento médico, assistência psicossocial e orientação jurídica.
A mulher que sofreu violência pode ainda procurar ajuda nas Defensorias Públicas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, nos Conselhos Estaduais dos Direitos das Mulheres e nos centros de referência de atendimento a mulheres.
Se for registrar a ocorrência na delegacia, é importante contar tudo em detalhes e levar testemunhas, se houver, ou indicar o nome e endereço delas. Se a mulher achar que a sua vida ou a de seus familiares (filhos, pais etc.) está em risco, ela pode também procurar ajuda em serviços que mantêm casas-abrigo, que são moradias em local secreto onde a mulher e os filhos podem ficar afastados do agressor.