O poder do não
Por Ana Rios, do coletivo Não é Não
“O meu corpo está na rua porque é meu. Eu decidi. O seu corpo está na rua porque é seu, você decidiu.
Que maravilha é a rua, esse lugar de encontro.
Que horror é o medo, que me afasta de você que eu não conheço.
Que maravilha é o medo, que me protege de você que eu não conheço.”
“Não” é uma das primeiras palavras que aprendemos a dizer e uma das últimas que aprendemos a escutar. Escutar um “não” pode ser muito difícil em alguns aspectos da vida – um “não” de uma pessoa que você ama; na seleção do emprego que você deseja; daquela prova na qual você precisava passar…
Somos uma sociedade muito ruim de lidar com os “nãos”, estamos o tempo todo sendo estimulados a “não aceitar ‘não’ como resposta”.
- Psoríase: estudo revela novo possível fator causal da doença de pele
- Escovar os dentes ajuda a prevenir grave doença, revela Harvard
- América Central: 5 países para incluir na sua próxima viagem
- Férias com crianças a 40 minutos de São Paulo
E como isso se reflete na forma como nos relacionamos afetivamente! Aí entra a parte mais difícil. O “não” que não vem de uma posição hierárquica – não é dos seus pais, da faculdade, da empresa etc. –, o “não” que é o desejo do outro. No caso, a falta de desejo.
Eu não quero.
A desgraça acontece quando o “não” é gatilho de violência, de intolerância. O “não” que não é escutado, o “não” que não é respeitado.
O Carnaval é este momento sem regras, em que podemos (e queremos) extrapolar os nossos limites, do corpo, do gozo, das ruas.
Por favoooor, amamos Carnaval. Amamos as ruas. Amamos corpos.
Agora, exatamente por tudo isso, por todo esse desejo de extrapolar, que o Carnaval é também o tempo-espaço em que tantos assédios, estupros e violências contra as mulheres (cis e trans) acontecem. Com mais frequência ainda, desveladas pelas ruas, sobre o pretexto de que “tudo pode”.
Como já dizia Leila Diniz: “Dou pra todo mundo, mas não dou para qualquer um.”
A disponibilidade sexual das ruas, dos corpos, é para ser celebrada, reverenciada.
É apaixonante, sim, estar vivo, e a nossa alegria é uma forma de resistência a esses tempos caretas, duros, tristes e preconceituosos em que vivemos.
Mas não estamos imunes às violências. Elas também, infelizmente, constituem esta cidade, este país e este mundo em que vivemos.
Minha mãe (sempre elas, né?!) me criou dizendo que o medo é bom, que nos protege dos perigos. Sem querer desdizer a minha mãe – mas o que seria a vida adulta se não isso – sigo sonhando com um Carnaval sem medo, uma rua sem medo, uma cidade sem medo.
Medo para mim não protege, medo paralisa. Medo congela. Medo faz a gente não sair. Não mudar. Não seguir, avançar, gritar, correr…
Um pouco mais pé no chão, sonho com uma sociedade em que o que eu digo seja respeitado.
Quando eu digo “não”, é não.
A diferença entre um “não” dito e um “não” escutado talvez seja o que distancia as mulheres dos homens, nesse hiato social de pelo menos 3.000 anos.
Não é não.
Porque toda vez que uma mulher é violentada, eu sou violentada, você é violentada. Somos todas violentadas.
Toda vez que eu escuto que uma mulher foi violentada, meu medo aumenta. Minha mãe que mora em mim diz: “Não sai com tão pouca roupa (ou quase nenhuma mesmo) no Carnaval. Troca de saia. Tira o batom”.
Seguimos saindo com pouca roupa (ou quase nenhuma mesmo), com essa saia que amamos e tem paetês holográficos e com esse batom que nos faz sentir poderosas.
O que nos faz sair é a rede de mulheres à nossa volta. Poderíamos chamar esta rede simplesmente de amigas, mas são mais do que isso, são nossas companheiras de luta, nossas armas. Ou melhor, nossos escudos para seguir na rua – abuso após abuso; assédio após assédio.
Depois de muito acolher a nós mesmas, e gritar para nós mesmas, pensamos: “Como dizer que estamos disponíveis a fazer isso por outras também?”
Como dizer quem somos e no que acreditamos, e neste mundo gritar que queremos ser respeitadas?
Queremos ter nossas escolhas respeitadas!
Fizemos algo simples, até bobo. (Ouvi de uma amiga gringa: “Quando ‘não’ quer dizer outra coisa?”). Fizemos uma tatuagem temporária (que vem com várias cores baphônicas e combinam com as nossas fantasias): “Não é não”.
Enquanto ainda sentirmos medo – medo de homens – e este medo nos paralisar, e nossa força não paralisar os homens abusadores, vamos estar ali sendo quem queremos ser. Dizendo “NÃO É NÃO”.
E espero que você possa ser quem quer ser, usar a roupa que quiser, sair na hora que quiser, ser livre com o seu corpo, seu desejo. Desde que esteja por aí também respeitando os “nãos” dos outros.
Dizer “não” é maravilhoso. É empoderador (olha aí esta palavra de novo).
Mas ter o seu “não” respeitado é o mínimo. Ter o seu “não” respeitado é revolucionário!
Campanha #CarnavalSemAssédio
Pelo terceiro ano consecutivo, o Catraca Livre promove a campanha #CarnavalSemAssédio com o objetivo de lutar por respeito na folia e pelo fim da violência contra a mulher. Quem está com a gente: a ONU Mulheres, a ONG Plan International, os blocos Mulheres Rodadas e Maria Vem Com as Outras, as redes Minha Sampa e Meu Recife, os coletivos Nós, Mulheres da Periferia, Não é Não e Vamos juntas? e as prefeituras de São Paulo e Salvador.