‘A criança cresce por meio do conflito’, afirma especialista
A falta de tempo para criar os filhos, a rotina de hiperestimulos resultante do ritmo de vida imposto pelas grandes cidades, a culpa, os julgamentos, as cobranças, e tantas outras questões que diariamente se colocam, transformam a criação dos filhos em um grande desafio para as famílias.
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Em entrevista concedida ao Zero Hora, o argentino Luciano Lutereau, Doutor em Filosofia e Psicologia, psicanalista, pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires fala sobre temas como melancolia na infância, consumismo, capacidade de lidar com conflitos, importância da brincadeira e do tempo livre.
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Os adultos têm enfrentado dificuldades para lidar com alguns sentimentos das crianças, como a tristeza, a raiva, a frustração?
Sem dúvida. Hoje nos encontramos com uma particular intolerância a respeito das emoções das crianças. Uma ideia própria da psicanálise, a de que a criança cresce através dos conflitos, é abandonada diante da expectativa de que ela sempre deve estar alegre. O imperativo do bem-estar, estendido à infância, leva o adulto a se assustar e a não saber como agir em situações normais, como as que demonstram a presença, na criança, de um sentimento de culpa inconsciente: por exemplo, as crianças são tachadas de instáveis ou impulsivas, quando esses estados expõem um traço particular do desejo infantil, o desejo de ser castigado. Um grande problema do nosso tempo é a intensa vigilância da infância em função de padrões adaptativos, como rendimento escolar, hábitos de higiene e costumes, e não baseada em seus próprios critérios de crescimento.
Em um artigo sobre a melancolia infantil, você escreveu que “começamos a temer o tédio como o mais urgente de todos os males e, no caso das crianças, nos preocupa muito mais que tenham algo para fazer do que pensar na plenitude do que fazem”. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Hoje em dia, parece muito mais importante ter uma vida exitosa do que uma vida autêntica. Dito de outra maneira, a sociedade contemporânea se baseia no efeito e não tanto no sentido. Desde muito cedo, as crianças são incluídas em práticas que ocupam o seu tempo, sem que isso implique uma “temporalização”. Quando o tempo não está “ocupado”, elas se sentem vazias e se aborrecem. Pedem para ser estimuladas. Inclusive os pais planejam suas viagens de férias considerando lugares que tenham recreação para seus filhos. Na tradição ocidental, o tédio e o aborrecimento não representaram apenas um tempo perdido, mas também uma passagem para a lucidez e a criação. A sociedade contemporânea, baseada na agilidade, esquece que o homem é a projeção no mundo da sua capacidade de invenção, e isso se reflete na infância como uma perda crescente da experiência lúdica. A brincadeira, antes de ser uma atividade, é uma ação que a criança inventa repetidas vezes. A brincadeira é o modo como a criança se inclui em um tempo próprio, e não uma temporalidade objetiva que prejudica o seu desenvolvimento.
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Que tipo de mensagem o intenso consumismo de nossa época pode estar transmitindo às crianças?
O consumismo não tem mensagem, é uma ordem vazia de acumulação, de posse e descarte. O principal problema da atitude consumista é quando não se vincula apenas a objetos, mas também a pessoas. Desde pequena, a criança pode se acostumar a tratar os outros como descartáveis e as relações humanas como recicláveis e sem profundidade. O capitalismo atual é muito diferente daquele que se seguiu à Revolução Industrial. A sociedade pós-moderna não é utilitária, mas cínica, e este cinismo pode atingir as crianças se não levarmos em conta o importante papel da educação. Por exemplo, alguém poderia dizer a uma criança que ela não deve roubar porque pode ser presa, e isso não é mais do que um conselho prático. Na realidade, o fundamental é ensinar que ela não deve roubar porque assim prejudicará alguém. À moral de conveniência de nosso tempo, é preciso voltar a se opor uma ética da lei.
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Por que a tristeza da criança é diferente da tristeza do adulto?
Porque nas crianças a possibilidade de perda é muito mais angustiante. Um adulto já está preparado para fazer uma relação entre o que se perde e o que permanece, através do luto, mas a criança costuma dramatizar essas perdas como absolutas. Além disso, a perda na infância pode acarretar um intenso sentimento de culpa – a criança acredita que fez algo errado ou foi má. A maneira como os adultos devem lidar com a tristeza das crianças é no sentido de reduzir o sentimento de culpa, permitindo que a brincadeira seja uma via de exploração das fantasias que as afligem. Esse território intermediário oferecido pela ficção, entre o interno e o objetivo, permite que a criança veja que seus temores não são tão intensos e que, além disso, são passageiros. E também que ela pode compartilhá-los com o outro sem ter medo de represálias. O mais importante na vida de uma criança é ter com quem brincar.
Com informações de Zero Hora.