A experiência de mergulhar em Fernando de Noronha

Relato por Eduardo Vessoni, do site Viagem em Pauta

Meu padrinho em Fernando de Noronha foi Osni, um mergulhador de voz mansa que parece conduzir aulas de ioga no mar.

A sequência de instruções e regras de segurança duram (longos) 15 minutos. E eu preciso confessar que não consegui prestar a atenção em nada.

Eu e Osni durante mergulho em Fernando de Noronha (Foto: Zaira Matheus/All Angle)

Como é que alguém pode se concentrar em regras e procedimentos quando um mar de tons escuros azulados se agitam sob os pés, parecendo querer engolir você e toda a tripulação?

Só pelos nomes dos endereços marinhos para  batismo, Ilha Rata e Buraco do Inferno, já dava vontade de voltar atrás e trocar águas profundas pelas ingênuas piscinas naturais de 50 centímetros que deram fama a Noronha.

Osni, o instrutor, pulou primeiro.

Osni, o instrutor (Fotos: Andreza dos Santos/All Angle)

Lá embaixo, fez sinal para que eu o acompanhasse, saltando com pernas abertas com “passos de gigante” (dessa instrução eu consegui me lembrar).

E quando o corpo trêmulo tocou águas, exageradamente, azuladas, fui tragado por uma nuvem de bolhas que me cegou a visão. Afinal de contas, mares profundos não se mostram fácil e tratam de enganar mergulhadores de primeira viagem com truques marinhos.

Na água, Osni e eu repetimos os mesmos procedimentos que deveriam ser seguidos nos próximos 30 minutos de mergulho. Máscara e regulador testados, breve submersão para avaliar o controle do ar e ensaios para treinar a descompressão.

Segurou-me pelo braço (uma regra obrigatória em mergulhos de batismo) e foi me afundando, lentamente, como se quisesse me levar a um mundo de outras dimensões.

E conseguiu.

Mergulho em Fernando de Noronha (Foto: Roberta Viegas/All Angle)

Aliás, conseguiu me levar mais longe do que prometia aquele batismo.

Me levou para a infância, quando meu pai, com a displicência paterna de me ensinar a nadar, se jogava primeiro na piscina do clube do Guarapiranga e me instigava a fazer o mesmo. A três metros de profundidade, sem boias e sem braços a me esperar.

As bolhas que subiam pelo nariz, em uma espécie de canal direto com a alma, pareciam as mesmas de quando meu pai, lá embaixo, me desafiava com olhos fixos em mim, quando eu ainda tinha 6 anos.

Aquele salto em Noronha, entre cardumes coloridos e tartarugas cabeçudas, me levou também para casa da minha vó, onde passava a infância, entre máscaras de mergulho e cilindros de ar jogados no chão da sala pelo meu tio Edilson que recém aprendera a mergulhar.

Osni me levou para o fundo, para lugares que fazia tempo que eu não visitava (e outros nunca visitados). E assim, o mar se agrandava sob os pés, enquanto íamos ganhando profundidade.

Vi paredões rochosos imensos sobre a cabeça, peixes de design caprichado que cruzavam nosso caminho (por baixo, por cima e dos lados) e corais que dançavam uma bem ensaiada coreografia no ritmo da maré teimosa.

Eu e Osni (Foto: Zaira Matheus/All Angle)

A cada sinal de ok dele correspondido por um retorno positivo meu, Osni me afundava outros tantos metros em degraus que iam se abrindo debaixo dos pés, em uma espécie de redemoinho discreto sobre lagoas rodeadas por rochas dentro do mar.

Quando atingimos o limite do mergulho, ergui a cabeça para o alto para ver o teto da superfície desaparecer sobre aquele mundo submarino. E naquele momento, com um (suposto) excesso de bolhas invadindo-me o nariz pelas brechas da máscara, tive uma das experiências mais significativas daqueles dois dias de mergulho e três batismo seguidos.

Desnecessariamente aflito com a possibilidade de me afogar no fundo arenoso do mar, fiz um sinal brusco de quem ia subir rápido e posicionei o corpo na vertical para começar o retorno (aliás, nunca faça isso em casa ou em qualquer outro lugar a 12 metros de profundidade. As consequências para o corpo podem ser fatais).

Osni se posicionou na horizontal debaixo de mim, segurou-me firme com a segurança de quem já carrega 10 mil mergulhos no currículo, olhou-me fixo nos olhos e me tranquilizou, ajeitando a máscara que insistia em querer me enganar.

O temor deu lugar ao assombro e a alma voltou a respirar lá embaixo, com aquele ar comprimido tocando-me pífano no ouvido.

Grupo de arraias. Ou seria de borboletas marinhas? (Foto: Tati Vasconcelos/All Angle)

Uma arraia chita se movimenta lenta sobre nossas cabeças como uma borboleta marinha que quase nos toca o corpo, uma e outra caverna para ser explorada e um tapete de arraias no fundo do mar, imóvel e fascinante, a fitar um olhar desdenhoso.

Voltei à tona (da água e da alma) com a sensação de que mergulhos em Fernando de Noronha não só levam a mundos desconhecidos mas também a dimensões conhecidas que a gente já não lembrava mais, como mergulhos incautos com pai displicente e cilindros espalhados na casa da vó.

E, antes que me afogue em palavras, termino a viagem em Noronha dedicando essa crônica (de palavras molhadas e olhos vertidos em água) a meu pai Edson quem me ensinou a nadar sem medo e a meu tio Edilson que, sem saber, me ensinou a circular com intimidade entre máscaras e cilindros de ar.