Bernadete, a primeira mulher a puxar um samba-enredo no Anhembi
Veterana do samba e Carnaval, Bernadete se reinventa e anuncia segundo disco solo
“A Bernadete é puxadora oficial de samba-enredo do Império Lapeano, uma escola do terceiro grupo. Ela canta simplesmente há 16 anos”, dizia Leci Brandão, comentarista dos desfiles das escolas de samba de São Paulo, pela TV Globo. “Há três meses foi convidada pelo Valtinho, o presidente da Peruche, para cantar por conta da agenda de shows e da gestação da Eliana. E o pessoal achava que ela só teria o nenê em 17 de fevereiro e, de repente nasceu; está aí a Bernadete estreando na Peruche”, completa.
Em 9 de fevereiro de 1991, nascia Mônica, filha da puxadora de samba-enredo Eliana de Lima, que já tinha marcado terreno com interpretações marcantes pela Peruche desde a década de 1980; a data também celebra a inauguração do Sambódromo do Anhembi e ainda deu luz a uma das mais belas vozes do Carnaval paulistano, ainda que pouco conhecida.
Era a introdução perfeita para apresentar ao público Maria Bernadete Raimundo ou apenas Bernadete, como era chamada nas avenidas. Fundadora da escola de samba Império Lapeano, a jovem cantora tomou de assalto a avenida com a Unidos do Peruche cantando “Quem Arrisca, Não Petisca”, samba de Ideval Anselmo, Carlinhos e Zelão, e consagrou-se como a primeira mulher a puxar um samba-enredo na recém-inaugurada passarela do samba do Anhembi. “Eu arrisquei ao máximo tudo o que eu estava construindo naquele momento. Se eu tivesse titubeado, feito alguma coisa errada ali, tudo teria acabado”, recorda.
Nascida no Tatuapé e criada na Lapa, filha de um violonista que convidava os amigos para encontros musicais à base de muito choro e samba, Bernadete se apaixonou pela música ainda na infância. “Tenho certeza de que meu pai foi um dos maiores motivos para eu estar cantando hoje”, conta.
O desenvolvimento musical aconteceu quando ao integrava um grupo com o irmão mais velho, o chamado Sexta-Feira. Anos depois, em época de Carnaval, reunia-se com colegas do bairro para batucar latas e panelas nos encontros do bloco Voz do Morro, que se fundiu à escola de samba Império Lapeano – fundada pela própria Bernadete junto com José Cruz Gonçalves e Seu Divino, em 1974.
Graças ao período em que esteve envolvida com as manifestações carnavalescas do bairro onde residia, Bernadete foi construindo uma carreira sólida dentro do samba.
Lançada e anunciada em rede nacional no Carnaval de 1991, com o sugestivo enredo “Quem Arrisca, Não Petisca”, tudo era novidade para aquela cantora que ainda há pouco trabalhava como secretária da Secretaria do Estado do Turismo e do Esporte (SETESP). Nas rádios, a voz de Bernadete despontava como um dos assuntos mais comentados do Carnaval daquele ano.
Deslumbrados como a cantora encarou o microfone e levou a Unidos do Peruche no desfile do grupo especial, Gleides Xavier, Benê Alves e Marquinhos Silveira – grandes comunicadores da folia à época – convidaram a debutante para participar da coletânea da emissora, o LP “Band Brasil 3“, interpretando a música “Farsa do Amor”, de Benê Alves.
Após a estreia em disco em março de 1991, participou do show promovido pela Band no Ginásio do Ibirapuera em maio daquele ano, ocasião que celebrava o aniversário da emissora. “Andanças”, de Paulinho Tapajós, foi escolhida para compor o repertório da cantora. “Você imagina: eu, uma senhora ninguém, só sabiam da minha existência por causa do desfile. Depois de cantar e agradecer a Unidos do Peruche, o público foi ao delírio”, recorda.
A realização do show resultou em uma decisão: a de seguir carreira solo. Em 1992, além de participar da coletânea “Band Brasil 4″ com a canção ” Tudo Por Uma Criança”, outra de Benê Alves, Bernadete também gravou seu primeiro disco, o LP “Jogo da Vida”, pela Five Star – Chic Show, com composições de Marinheiro e Silva, Dhema e Itamaraka, Kleber Augusto, Enzo Bertoline e Laércio da Costa, Boca Nervosa e Zeca Sereno.
Por tudo que cercava sua vida, Bernadete vivia o melhor momento de sua carreira. Apesar dos discos gravados e figurar como intérprete oficial da Peruche até 1993, a cantora terminou o ano afastada de sua escola do coração. “Em 1994, o enredo falava sobre os orixás, e precisava de uma voz forte, que na época foi o Jamelão. Conhecendo o Jamelão como eu conhecia, ele era bem individualista, e uma novata que nem eu, naquela época, teria chance nenhuma. E eu saí da Peruche”, recorda.
Para ser puxadora de samba, não bastou ter uma grande voz. Se, naquela época, as mulheres sofriam por não poderem cantar e tocar dentro das agremiações, Bernadete provou com a sua atuação pioneira no Carnaval – ainda que interrompida – que as mulheres devem insistir e ocupar todos os espaços.
Sobre o machismo no samba nos dias atuais, ela comenta: “Absolutamente nada mudou. Eu estou no palco, estou no carro de som, mas ninguém pensa em dar o microfone principal para mim – nem para nenhuma outra. É necessário fazer com que as mulheres sejam respeitadas e reconhecidas por todo esse trabalho que vem empreendendo.”
Fora da passarela do samba, realizou diversos shows e recebeu inúmeros convites para participar de várias coletâneas e gravações ao lado de grandes cantores da música popular brasileira. Devido ao seu comprometimento com o samba, Bernadete recebeu convite para retornar à Peruche, em 2005.
Desde então, seu reconhecimento na escola somente cresceu e a sua figura como sambista continua sendo celebrada pelos “perucheanos”. Em 2008, Bernadete tornou-se a primeira mulher a assumir o cargo de diretora da ala de compositores da agremiação. A cantora também atuou na produção da agenda de shows do “Cantinho do Peruche” e hoje ocupa o cargo de diretora da Velha Guarda Musical.
Atualmente, Bernadete está em fase de preparação de seu segundo álbum solo e o repertório inclui apenas compositores periféricos da cidade de São Paulo. O nome do álbum, “O Samba é a Minha Verdade”, é inspirado em uma composição de Robert Giolo, Rodrigo Estabel e Juninho Boemia.
Aos 67 anos de idade e passados 44 anos de avenida e 26 de carreira solo, a paulistana sente-se completa e elogia o grupo Ministério do Samba – nome da nova geração – que realmente batalha pela música. Os projetos Todo Sábado é Sagrado e Samba na 2 também são citados como iniciativas que oferecem espaço aos compositores anônimos ou com pouco espaço nas mídias e difundem a cultura do samba.
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