Clementina de Jesus e o resgate das vozes dos terreiros

27/02/2018 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

Clementina de Jesus trabalhou como empregada doméstica por 20 anos de sua vida. Seu destino seria como o da maioria dos brasileiros caso seu talento musical não tivesse sido descoberto. Provavelmente, trabalharia até o corpo não poder mais, sem nunca conquistar uma velhice confortável.

A voz inconfundível – rouca, grave e rasgada – não trouxe uma fortuna para Clementina. No entanto, deu-lhe a chance de gravar mais de cem músicas e participar de discos de outros artistas, além de ser considerada uma das principais intérpretes do Brasil. Ela teve a oportunidade de brilhar tardiamente, aos 63 anos.

Nascida na cidade de Valença, sul do estado do Rio, tradicional reduto de jongueiros, Clementina era filha da parteira Amélia de Jesus dos Santos e de Paulo Batista dos Santos, capoeira e violeiro da região. A pequena Quelé viveu a infância escutando sua mãe cantar enquanto lavava as roupas à beira do rio. Assim foi guardando na memória tesouros que mais tarde gravaria em discos.

Ainda criança, Clementina muda-se com a família para o bairro de Oswaldo Cruz, berço da Escola de Samba Portela.

De integrante do grupo Folia de Reis de seu João Cartolinha, em 1908, à ensaiadora do grupo de pastoras de Heitor dos Prazeres, a jovem Clementina começa colecionar histórias e vivências com grandes bambas como Paulo da Portela, Claudionor e Ismael Silva.

Em 1938, conhece Albino Pé Grande, seu futuro marido e morador do Morro de Mangueira, e começa a estreitar laços com a Estação Primeira. Ao longo destes anos, Clementina trabalhou como cozinheira, lavadeira e empregada doméstica.

A carreira profissional de Clementina como cantora começou aos 63 anos após o seu encontro com o produtor e compositor Herminio Bello de Carvalho na festa da Penha, em 1963, quando ela cantava na Taberna da Glória. Hermínio ficou fascinado pela sambista e quando a reencontrou, na inauguração do Zicartola – restaurante fundado por Dona Zica e Cartola -, a convidou para o espetáculo “Rosa de Ouro”, em 1965.

Participavam do show, além de Clementina de Jesus e Aracy Côrtes, os bambas – ainda jovens – Anescarzinho do Salgueiro, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento e Paulinho da Viola, formando o conjunto Os Cinco Crioulos. Em 1966, a cantora grava seu primeiro disco homônimo, com produção de Hermínio.

Nos anos seguintes participa dos discos “Mudando de conversa”, “Fala Mangueira!” e “Gente da Antiga”, este último, ao lado de João da Baiana e Pixinguinha.

Ouça o álbum “Gente da Antiga”: 

Em 1982, Clementina, Geraldo Filme e Tia Doca gravam o disco “O Canto dos Escravos”, apoiados em memórias sonoras chamadas vissungos – uma forma de cantiga de trabalho herdada dos negros benguelas – recolhidas pelo historiador Aires da Mata Machado Filho em São João da Chapada, município de Diamantina, em Minas Gerais, que insere 14 cantos dos escravizados mineiros do século 18 à cena musical contemporânea.

Há 31 anos, esta lenda da música popular brasileira morreu, deixando como legado a tradição oral que trouxe para o samba. Com um canto quase falado, criou uma linguagem contemporânea para abordar elementos da cultura africana que ecoam até hoje, anos depois de sua primeira aparição pública como cantora.

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