Nei Lopes discute o samba em entrevista exclusiva ao Samba em Rede

07/04/2015 00:00 / Atualizado em 09/05/2019 15:38

Nei Lopes fala sobre sua obra e analisa o samba por meio dela
Nei Lopes fala sobre sua obra e analisa o samba por meio dela

Compositor, intérprete, escritor e estudioso da cultura e da Diáspora africana, Nei Lopes apresenta um olhar completo a respeito do samba e da realidade sócio-cultural brasileira. Autor de uma vasta bibliografia centrada na temática afro-brasileira, prepara-se para lançar este ano o “Dicionário da História Social do Samba”, em parceria com Luiz Antonio Simas.

O livro é composto por verbetes que refletem sobre diversos temas sociais que circundam o samba, como o preconceito, a resistência do gênero e as relações entre diferentes etnias.

Seu último lançamento, o romance “Rio Negro, 50”, aconteceu em março. A ficção aborda o Rio de Janeiro na década de 1950 a partir do ponto de vista do povo negro.

Fugindo da bossa nova, que despontava neste período, Nei Lopes procura tratar as manifestações dos negros em questões políticas, sociais e culturais cruzando histórias de personagem variados. Entre eles, intelectuais, sambistas, jogadores de futebol, músicos, políticos, malandros, vedetes, padres e pais-de-santo – quase todos negros.

Em entrevista concedida por e-mail ao Samba em Rede, Nei Lopes mostra sua perspectiva sobre o cenário atual do samba:

A Quilombo, assim como a Lavapés em São Paulo, perdeu a força de outrora. Quais os motivos para escolas com tanta tradição e ideologias falirem? Você enxerga alguma maneira de reverter este processo?

Em meu romance “Rio Negro, 50”, que está sendo lançado pela Editora Record, criei uma escola de samba ficcional, a “Unidos da Floresta”. Sobre ela, escrevi o seguinte: “A grande diferença da ‘Floresta’ para as outras escolas é que ela mantém, no amplo terreno de sua sede, uma horta, uma granja, uma padaria e uma oficina comunitárias. Da oficina saem os instrumentos, os trajes e fantasias, os carros alegóricos e demais itens industriais do desfile de carnaval. Da horta e da granja, além do alimento básico dos componentes, sai um excedente de produção que é fornecido ao comércio local a preços atraentes. E da padaria saem os já famosos “Quitutes da Floresta”, vendidos pelas baianas da escola em seus caprichados tabuleiros, em quase todas as esquinas do centro urbano do Rio. Os lucros do capital dispendido – e os há – são reinvestidos em poupança e aplicações na Caixa Econômica. Assim organizada, e valorizando a prata da casa, a escola vai obtendo boas colocações nos desfiles e ganhando prêmios significativos. Modesta e simpática, ela vai se tornando a ‘segunda escola’ de todos os sambistas; a “queridinha” do povo e da imprensa escrita, falada e televisada. E mais: sua sede no Morro, simples mas confortável, já é própria; e isto num momento em que outras escolas preferem pagar aluguéis em clubes no asfalto, sujeitando-se a todo tipo de influência e manipulação”. Quando escrevi isto, me inspirei no Quilombo pois esse era, pelo menos em tese (em tese, repito), o projeto do GRANES Quilombo. Mas, por uma serie de razoes que não vale a pena discutir agora, o projeto abortou. Principalmente pela morte prematura do Candeia, que era uma liderança muito forte e centralizadora.

Como você vê a resistência do samba na cidade do Rio de Janeiro?

Este assunto é discutido num verbete especifico do “Dicionário da História Social do Samba”, meu e do Luiz Antonio Simas, que está saindo pela Editora Civilização Brasileira. No atual estágio da sociedade brasileira, tomada pela economia de mercado e pela transnacionalização que a todos nos coloniza, só cabe a resistência passiva, que pode ser exercida através das rodas de samba, dos pagodes de fundo de quintal e da divulgação do trabalho dos autores e intérpretes através da internet. Resistência ativa ou proativa, mesmo, não tem jeito.

E fora, nas periferias? O Jongo na Serrinha, por exemplo, é um movimento de resistência?

O Jongo da Serrinha já começa a entrar em alguns canais de difusão. Mas corre também o risco (ou dar sorte, não sei) de virar moda, como a música do Pará, recentemente. Mas pode ser algo efêmero. Duradouro, mesmo, só se tiver uma estrutura negocial forte por trás. Veja o caso do “sertanejo” que está aí desde a época do Collor, cada vez mais forte. Por trás está o agronegócio, inclusive vendendo chapéus, botas, cinturões, além de rebanhos e mais rebanhos.

O samba “Solano, Poeta Negro” exalta Solano Trindade. Hoje, quem se destaca na luta pelos direitos dos negros? E no samba?

Na tese “Voices of Samba: Music and brazilian racial Imaginary, 1955-1988”, defendida na Brown University, EUA, em 2012, o PhD Stephen A. Bockskay analisa, em três capítulos exclusivos para cada um, os nomes de Candeia, Martinho da Vila e Nei Lopes. Eu incluiria Luiz Carlos da Vila, discípulo e herdeiro de Candeia e, como ele, já falecido. Mas é uma opinião minha.

Existe um preconceito às avessas do negro para com o branco no samba?

Este é outro assunto também discutido no Dicionário, no verbete “Relações Etnorraciais”. Lembro a você que, quando eu me ocupo de samba, eu falo de samba como um todo, onde a escola de samba não é a parte mais importante. Então,veja só: A definição de “branco”, no mundo do samba, sempre foi muito mais de ordem estética do que étnica ou racial. “Branco” é o elemento estranho, o arrivista, aquele que veio de fora sem conhecer os códigos que regem as relações comunitárias. E parece ter sido no seio das alas de compositores que o ingresso desses “brancos” teve efeitos mais destruidores. Entretanto, desde o início houve criadores, não necessariamente negros, que consagraram seu talento às artes do samba, até mesmo renovando e legitimando sua música e sua dança”. Aí, a gente cita Noel Rosa; o grande João de Freitas Ferreira, o Jonjoca, pandeirista, violonista, compositor e cantor; o elegante Mário Reis (1907-1981); e ainda João Petra de Barros, Castro Barbosa e outros. Todos excelentes artistas do samba, brancos e com curso ginasial, na década de 1930, o que não era para qualquer um.

Quando começa e quando termina a história social do samba no “Dicionário da História Social do Samba”?

O samba tem o DNA na Bacia do rio Congo, na África centro-ocidental, foi gerado ao mesmo tempo em varias partes do Brasil e se criou na no Rio de Janeiro, onde ganhou cidadania.

Qual é o significado de samba, afinal?

O jazz é uma forma de expressão musical criada pelos negros norte-americanos, que se desdobra em vários estilos e subgêneros. O samba, nascido na mesma época e em contexto análogo, pode e deve ser definido da mesma forma. Principalmente porque configura também uma vertente exclusivamente instrumental, que é o choro de andamento lento, popularmente conhecido como “chorinho”. Pixinguinha, na década de 1930 (quando os discos estampavam nos rótulos os gêneros a que pertenciam) gravou vários sambas; assim como Jacob do bandolim também gravou alguns, como o famoso “Noites Cariocas”, o emblemático “Brasileirinho” de Waldyr Azevedo é também um samba. Embora os estudiosos mais ortodoxos possam discordar. Então, o termo “samba”, que no início definiu apenas uma dança, ao longo do tempo ganhou estatuto de gênero de musica popular. E hoje é um complexo que inclui, além de diversos estilos de dança (a do salão, a dos passistas, a de mestre-sala e porta bandeira etc.), variadas formas de composição e interpretação como as da bossa-nova (no início chamada de “samba moderno”), o samba-jazz, o pagode de fundo de quintal, o pagode-pop etc.

O que poderia mudar para que o samba retomasse a sua força entre a população, nas mídias e no mercado musical? No geral, o brasileiro valoriza o samba? Não se fazem mais sambistas como antigamente?

No Brasil de hoje, em termos culturais, raramente alguém tem acesso fácil àquilo de que realmente gosta. Tempos atrás, a função da publicidade era indicador ao consumidor onde ele poderia encontrar os objetos de seu desejo. Hoje, a principal tarefa da publicidade é mitificar o objeto de consumo, mostrando como portador de qualidades que muitas vezes ele não tem. E, para tanto, ela mobiliza a “necessidade de comprar”; daí os altissonantes anúncios de que determinado produto (disco, artista, gênero ou estilo musical) já vendeu não sei quantos “milhões de copias”, o que significa que “todo mundo está comprando”. É assim que a coisa hoje funciona. E desta forma, embora muitos brasileiros valorizem o samba e se emocionem com ele, muitos, principalmente os mais jovens ou menos críticos, nunca tiveram nem oportunidade de saber se é bom ou ruim. Assim, evidentemente, ninguém – a não ser quem conhece e sabe – se sente muito motivado a fazer samba.