Seo Carlão do Peruche, um baluarte do samba paulista

03/08/2017 00:00 / Atualizado em 19/08/2019 09:00

No mundo do samba paulista há poucas histórias tão genuínas quanto a de Seo Carlão do Peruche: integrante da mais antiga escola em atividade, a mítica Lavapés, e grande conhecedor das origens, tradições e do jongo e o congado, é também fundador do G.R.C.S.E.S. Unidos do Peruche.

Além de excelente ritmista, partideiro, intérprete e compositor respeitado, Carlão é um batalhador pelo samba e pelas tradições afrodescendentes de São Paulo. Condecorado Embaixador do Samba pela União das Escolas de Samba de São Paulo (UESP) e agraciado com o Prêmio Anchieta pelos relevantes serviços prestados ao samba da capital paulista, Seu Carlão faz parte da categoria dos mestres e sua influência é aclamada por gerações de grandes sambistas.

Aos 87 anos de idade, sua trajetória na música confunde-se com a história do próprio samba do estado: dos batuques do interior, que o influenciaram desde a infância, às glórias, como a oficialização do Carnaval paulistano durante a ditadura militar, em 1968.

Sua obra e caminhada reafirmam a importância da música popular e das manifestações afro-brasileiras na constituição da nossa cultura. “O Carnaval é cultura nossa. A gente não sabe nem quem é o presidente do país, mas sabe que aqui tem samba e futebol”, afirma em entrevista exclusiva ao Samba em Rede. É por isso que Seo Carlão, por toda sua trajetória, pode falar sobre o assunto com o bacharelado que a vida lhe concedeu.

Seo Carlão do Peruche fala sobre sua trajetória com exclusividade ao Samba em Rede
Seo Carlão do Peruche fala sobre sua trajetória com exclusividade ao Samba em Rede

Nascido em 11 de setembro de 1930 na Rua Pirineus, no bairro da Barra Funda, Carlos Alberto Caetano teve sua iniciação musical no jongo, como ele próprio define, “o embrião do samba”, em Pirapora do Bom Jesus. Ele ia com a família para a festa que lá ocorre todos os anos, no dia 6 de agosto. Enquanto a mãe, Maria José Cruz, ia para a igreja, seu pai, José Moisés Caetano, o levava para um barracão onde reinava o batuque.

“Costumava-se separar os homens e as mulheres e tinha o pai do samba, que tocava um bumbão grande. Pra cantar tinha que pôr a mão no bumbo e pedir a autorização do pai do samba. Então podia cantar: ‘Em Tietê/ Fizeram Cadeia Nova/ Em Tietê/ Fizeram Cadeia Nova/ Mariazinha/  Criminosa'”, conta e canta Seo Carlão.

Dono de uma visão crítica, Seo Carlão reage contra a desvalorização cultural que figura na cidade: “Hoje você chega lá e está tudo diferente. Tem uma Casa de Cultura que virou um grande negócio. O comércio é violento”, questiona sobre o não reconhecimento e a falta de importância concedida aos espaços destinado às manifestações culturais do interior do estado.

Anos mais tarde, entre o final da década de 1930 e início da década de 1940, seus pais o colocaram para morar com o tio policial, Gabriel Ferraz, na Rua Manoel Dutra, localizada no bairro do Bixiga. Neste época, Carlos começou a exercer o ofício de engraxate ambulante aos finais de semana – uma alternativa para conseguir um dinheiro e ajudar no orçamento familiar.

O menino ia engraxar na região do Pátio do Colégio, no centro da cidade, e descobriu que o utensílio servia também de instrumento musical para alguns de seus colegas, entre eles, Toniquinho Batuqueiro e Germano Mathias. Batucando na latinha de graxa, na ausência da freguesia, tomou gosto pela percussão. “A gente ficava batucando na caixa de engraxar e na latinha de graxa. Também jogavamos tiririca (modo de dançar o samba com rasteiras).” 

Hostilizado pela repressão policial ainda criança, Carlão passou a encarar os tortuosos caminhos da sociedade da qual foi marginalizado. “Furavam os nossos instrumentos e nos prendiam porque estávamos fazendo batucada. Nos chamavam de pretos e vagabundos”, lembra das abordagens policiais – na maioria das vezes arbitrárias – que sofreu na juventude, problema que permanece atual e ainda aflige alguns setores da sociedade.

Seo Carlão do Peruche na Rua Zilda, zona norte da cidade
Seo Carlão do Peruche na Rua Zilda, zona norte da cidade

No final da década de 1940, Carlão já havia se iniciado no mundo carnavalesco paulistano, desfilando na Flor do Bosque, uma escola pequena no Bosque da Saúde e, em 1947, como ritmista na Lavapés – escola de samba mais antiga em atividade de São Paulo.

A ideia de se criar uma escola de samba na Casa Verde surgiu entre amigos e militantes da Lavapés com sambistas da região do Parque Peruche. Em 1956, Carlão se tornou um dos fundadores da Sociedade Esportiva Recreativa Beneficente Unidos do Parque Peruche, agremiação localizada na zona norte da cidade, que realizava seus ensaios em um espaço chamado “Terreiro do Caqui”.

Passados 61 anos desde sua fundação, Seo Carlão – hoje no cargo de Presidente de Honra e da Velha Guarda da escola – acompanhou de perto o processo de criação e evolução da agremiação, mantendo sempre a originalidade e o comprometimento que o destaca no mundo do samba até hoje.

“No meu entender, eu não compactuo com o Carnaval de atualmente. Não passa de uma disputa entre as escolas de samba. Trabalha-se o ano inteirinho, desde a escolha de enredo, disputa de samba, confecção de fantasias, para um desfile que dura 65 minutos. Mais de três mil componentes atravessando dois quilômetros; parece uma boiada, uma procissão.”

A percepção para captar as principais distorções da sociedade e até antecipar acontecimentos, como a mercantilização do Carnaval e a criação do Bloco Sovaco de Cobra, em 1975, justificando que “os blocos estão invadindo porque o Carnaval está bitolado”, marca definitivamente a trajetória de Seo Carlão como um dos grandes militantes do gênero na capital paulista.

Carlão, no papel de sambista, fez sua parte por ter tido a coragem de colocar o dedo na ferida mesmo sob condições adversas, quando muitos se calaram. Ele encerra a entrevista com uma crítica de respeito ao atual cenário político: “Nós somos o povão. Tudo o que fazem lá em cima reflete aqui embaixo. Nós somos o país que mais paga imposto, taxa e tributos. Para onde é que vai o nosso dinheiro? Ainda mais com esse bando de gente ‘honesta’ nos dirigindo.”

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