Coletivo espanhol mostra que lixo, espaços e pessoas podem conviver em harmonia

"Lixo não é só o que sai de casa no saco preto", diz o espanhol que vê São Paulo como uma equação em que hábitos de consumo exagerados resultam em espaços mal utilizados e pessoas infelizes

De seu apartamento em Santa Cecília, o espanhol Miguel Basurama quase pode ver o Minhocão. Ao contrário de milhares de paulistanos que desprezam a existência do elevado e reclamam de sua feiura, ele até gosta da construção, pois a considera um símbolo da cidade. “O Minhocão é incrível porque é um ícone do individualismo de São Paulo,” conta. “Além disso, representa a valorização do carro em detrimento do espaço público. Uma escolha que gerou e ainda gera resíduos físicos e sociais”.

Mister com sua esposa, Angela, no apartamento em Santa Cecília

A forma como Miguel vê a cidade deve-se, e muito, a seu trabalho. Ele coordena a ramificação brasileira do coletivo espanhol Basurama – de onde adotou o nome –, que viaja pelo mundo estudando as cidades e propondo novos usos para diferentes tipos de resíduos. Mas não se trata apenas de lixo doméstico. Gente e espaço também fazem parte do “lixo” para o qual o coletivo espanhol quer chamar mais atenção.

“Não se trata só daquilo que sai de casa em um saco preto, mas também do que é mais difícil de ver”, explica. “A Praça Roosevelt, por exemplo, era um verdadeiro resíduo social e econômico abandonado pela cidade. Agora, tem até uma disputa de espaço entre moradores e frequentadores. Isso é lindo, porque só luta pelo espaço quem dá valor ao lugar.”

In love we trash

“O lixo é a expressão cultural de um povo, por isso que, para entender o espaço urbano, nós temos que entender que tipo de dejetos ele gera”, afirma Miguel, que é mais conhecido como “Mister” – apelido que ganhou por ser estudioso no colégio.

Esse é o pensamento de todos os membros do Basurama, que prega o melhor aproveitamento daquilo que nos acostumamos a chamar de “lixo”. O próprio nome já traz a ideia: “Basurama” é formado por “basura” (lixo, em espanhol) e “ama”. A mensagem é clara: ame a basura, ame o lixo, pense no lixo, entenda a cidade.

O projeto começou em 2001, quando um grupo de oito amigos da Escuela de Arquitectura de Madrid resolveu pensar em como unir arquitetura e design para dar soluções criativas ao lixo. Durante uma semana, o grupo coletou resíduos pela cidade inteira e propôs um festival em que todos os presentes transformassem aquele material em coisas novas, como brinquedos ou móveis.

O festival tornou o coletivo conhecido na Espanha e o Basurama foi convidado pela Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo (AECID)  para implementar o projeto em outros países. Bastava encontrar lugares que gerassem grandes quantidades de resíduos. E isso foi fácil.

A “Bolha Imobiliária”, uma das intervenções do coletivo no “ícone” de São Paulo: o Minhocão

São Paulo, terra do lixo

O projeto RUS (Resíduos Urbanos Sólidos) nasceu para ocupar espaços públicos abandonados com arte. Miami, Cidade do México, Santo Domingo, Montevidéu, Buenos Aires, Lima, La Paz, Córdoba e São Paulo são algumas das cidades que se encaixavam na equação [consumo exagerado = resíduos + espaços subaproveitados].

Mister desembarcou em São Paulo em 2007, quando o coletivo foi convidado para fazer uma intervenção na Praça do Brás, na Mooca. Desde então, passou a vir com frequência para cá, até que se mudou definitivamente com sua esposa Ângela, companheira de Basurama. Nesse tempo, ele realizou diferentes trabalhos em comunidades da periferia e regiões centrais da cidade.

Imagem & ação

Mas o trabalho do Basurama não se limita somente à ação direta na rua. Há também uma parte fundamental que precisa ser feita antes, durante e depois da ação: a pesquisa. Desde 2011 o grupo toca o projeto PAN AM – Panorama Americana, que pretende traçar as “paisagens de consumo” da América.

“O resíduo, na sociedade de consumo, está presente em todos os ambientes”, diz Mister. “Não se trata apenas do lixo doméstico, mas de qualquer acontecimento que gere algo inutilizado.” O PAN AM procura mostrar que estas paisagens podem ser lugares que tenham uma situação “estranha” gerada pelo consumo. Pode ser uma construção abandonada, um aterro ou até um engarrafamento. “É um binômio natural: todo tipo de resíduo é originado por um hábito de consumo”, define.

Veja algumas imagens dessas “paisagens”

Nada se perde

Aos 32 anos, Mister não se arrepende de ter largado o maçante trabalho em um escritório de design de interiores. Agora, sua vida é correr atrás de recursos, isto é, do material necessário para a ação do Basurama  e do investimento para sustentar as pesquisas e publicações do grupo. Todos os projetos são publicados como livros que podem ser baixados gratuitamente em versão pdf no site do coletivo. “Os recursos estão por aí, basta achá-los e agir.”

Mister acredita que a principal função do Basurama é dar à sociedade ferramentas para a construção de um novo pensamento, livre de hábitos de consumo individualistas e exagerados. “Qualquer comunidade e qualquer pessoa tem, neste exato momento da história, a matéria prima necessária para desenvolver um projeto de transformação urbana. Basta perceber que o lixo é um pedaço de nós mesmos que jogamos fora sem pensar”, conclui com ar didático, enquanto olha para um quase visível Minhocão.