‘Hoje lutamos para não perder direitos’, diz advogado indígena

Aos 28 anos, o índio terena e advogado Luiz Henrique Eloy critica a agenda retrógrada do governo na demarcação de terras indígenas

Luiz Henrique Eloy Amado era adolescente quando teve de sair da aldeia Ipegui, em Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, para poder prosseguir seus estudos.

Naquela época, início dos anos 2000, a aldeia em que nasceu e se criou só tinha estrutura para oferecer aulas até o ensino fundamental. Depois desse nível, os alunos que quisessem continuar estudando teriam que se deslocar até cidades maiores. Nesse contexto, Luiz, a irmã e a mãe se mudaram para os fundos da casa de uma família em Campo Grande, capital do estado, onde a mãe começou a trabalhar como empregada doméstica. Ela não aceitava que os filhos parassem de estudar.

O tão sonhado acesso à universidade se deu em 2005, quando ambos foram aprovados no curso de direito. Hoje, aos 28 anos, Luiz é um dos poucos advogados do país dedicados à demarcação de terras indígenas.

Luiz Eloy diz que sofreu preconceito na universidade por ser indígena
Luiz Eloy diz que sofreu preconceito na universidade por ser indígena

Em fevereiro deste ano, o advogado se mudou para Brasília, onde está trabalhando na Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Para ele, o maior desafio atual da população indígena é combater os retrocessos em Brasília. “Durante muito tempo os povos indígenas lutaram para conquistar direitos. Hoje o movimento luta para não perdê-los”, diz.

Para agir contra essa onda retrógrada, o advogado irá participar na próxima segunda-feira, dia 24, do Acampamento Terra Livre, uma mobilização que irá reunir mais de mil lideranças indígenas em Brasília. A mobilização acontece até o dia 28 de abril, com o tema “pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”.

Jovem deixou aldeia para estudar em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul
Jovem deixou aldeia para estudar em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul

Nesta entrevista concedida ao Catraca Livre, o índio terena – que se formou e fez mestrado na Universidade Católica Dom Bosco – fala sobre o preconceito de alunos e professores com o sistema de cotas, o desinteresse sobre a questão indígena na política e no curso de direito e sobre a diversidade étnica do país.

Catraca Livre – Você saiu da comunidade indígena de Ipegui, no interior de Mato Grosso do Sul, para estudar em Campo Grande. Como foi essa transição?

Luiz Henrique Eloy – Naquela época, só saía da aldeia para estudar quem tinha parente fora ou relações políticas locais e conseguia algum tipo de apoio. Não era o caso da minha família.

A decisão de sair da aldeia foi bastante motivada pela minha mãe. Ela não queria que eu e minha irmã parássemos de estudar, então fomos para o contexto urbano e ela começou a trabalhar de doméstica. Aí cursei o ensino médio e posteriormente já prestei o vestibular.

Faço parte da leva dos primeiros jovens indígenas que tiveram acesso ao ensino superior, por conta da política de cotas e do Prouni [programa do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo integrais e parciais em faculdades particulares para estudantes de baixa renda].

Sua irmã entrou na universidade pelo sistema de cotas e você, pelo Prouni. Como foi essa experiência?

Nós enfrentamos muito preconceito. O curso de direito é muito conservador e elitizado. Então, geralmente, quem faz o curso são filhos de fazendeiros, da elite local. Eu lembro que o filho do governador estudava na minha sala.

Naquele momento em que entrei na faculdade, as cotas estavam em debate. A gente ouvia dos próprios colegas que éramos pessoas que “entraram pela porta dos fundos”, como se não tivéssemos capacidade de estar ali. Alguns professores falavam abertamente em sala que eram contrários às cotas. Muitos indígenas, pela pressão do preconceito, acabaram desistindo do curso.

Havia debates em sala de aula sobre os direitos indígenas?

Em cinco anos de faculdade, ninguém aborda essa questão. O único momento que lembro que o tema foi citado aconteceu numa aula de direito constitucional. Naquela ocasião, o professor falou sobre os artigos 231 e 232, que diz respeito aos direitos indígenas.

Fora da sala de aula, participei de um projeto que foi fundamental para a minha experiência na universidade. A “Rede de Saberes”, coordenada pelo professor Antônio Brand, era um programa que pensava não só no acesso do indígena à universidade, mas também na sua permanência na academia.

Comecei a perceber que não adiantava termos acesso à universidade, se não tínhamos meios de permanecer nela. Por isso o programa monitorava o desempenho dos índios na sala de aula e dava auxílio em alimentação e moradia quando alguém precisasse.

O programa também tinha um grupo de estudo muito interessante, para pensar o profissional indígena dentro da universidade. Para nós, não teria sentido estar ali e de alguma forma não reverter aquele conhecimento para a comunidade.

Uma vez, o professor Brant perguntou para mim em que área eu queria atuar, e eu disse que queria ser advogado tributarista, trabalhar em direito empresarial. Ele ficou chocado com minha resposta. Mas o direito em si ensina a gente a ser assim. Só quando fui ter contato com outras comunidades indígenas, a fazer visitas, que passei de fato a perceber que as aldeias necessitavam urgentemente de um advogado.

Hoje o foco do meu trabalho está na organização do departamento jurídico da Apib e nos processos de demarcação dos territórios indígenas. No momento, estou acompanhando mais de 200 processos.

No Brasil, são mais de 252 povos que falam 154 línguas, segundo um estudo recente do Instituto Socioambiental. Qual é o desafio de lidar com essa diversidade étnica e cultural no dia a dia?

Trabalhar com a diversidade é um grande desafio. Durante muito tempo, dados registraram uma diminuição trágica das populações indígenas (saiba mais aqui). A partir de 1988, quando a Constituição reconhece essa pluralidade étnica, haverá um aumento dessas populações. Antes, no Brasil, a política que orientava o Estado brasileiro era a política de integração, que os índios fossem paulatinamente assimilados na sociedade. Ou seja, eles desapareceriam.

A Constituição veio para romper com isso. Em vez de integração, o que se tem é o reconhecimento da diversidade. Claro que esse reconhecimento ainda é muito deficiente na prática.

As pessoas que estão à frente do governo hoje têm muita dificuldade de entender isso. Entre nós, indígenas, temos a consciência de que cada povo tem sua língua, cultura própria, modo de viver e de entender o mundo.

Para meu trabalho funcionar, tenho a necessidade de me despir dos meus referenciais para entender o outro. É preciso deixar o gabinete e sentir a necessidade na pele, fazer uma visita prévia à comunidade, pisar no chão, entender o que esse povo está querendo com a reivindicação, estabelecer uma relação de confiança. Muitos juízes também não entendem isso, simplesmente porque não saem do seu território, não experimentam.

O estereótipo e a dificuldade de a população entender que a cultura se adapta com o tempo ainda excluem os povos indígenas socialmente. Se eles usam telefone celular, não são considerados índios; se vivem na aldeia, são “vagabundos”. Como essa questão é trabalhada por você em palestras e debates?

As pessoas ainda têm uma visão romantizada do índio. Isso é fruto do próprio processo escolar. No Dia do Índio, as escolas lembram a data vestindo as crianças com cocar de cartolina colorida.

Enquanto liderança, eu sempre tento me reafirmar como tal, como índio terena, mesmo vestido de roupa social. Não sou menos índio por isso.

Indígena não é só aquele que está no Amazonas. A população está espalhada em todo o país, do Norte ao Sul, inclusive nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Eu não deixo de ser índio quando vou à faculdade, uso celular ou tênis da Nike. Sair da comunidade não significa perder a identidade. Os povos têm que ser reconhecidos onde quer que estejam.

Mas vivemos numa sociedade preconceituosa e isso está escancarado. O deputado federal Jair Bolsonaro vai para palestras dizer coisas absurdas, não só referentes à população indígena, mas a outras populações tradicionais, e nada é feito.

Quais são os principais desafios no seu trabalho atual como advogado de direitos indígenas?

Hoje tenho a convicção de que os direitos garantidos aos povos indígenas passam necessariamente pelo reconhecimento de seus territórios. Não tem como falar em dignidade, educação, saúde, se você não garante a esses povos o seu território tradicional, que é onde eles realizam seu modo de ser e de viver.

Na conjuntura atual, estamos tendo um aumento de retrocessos. Durante muito tempo os povos indígenas lutaram para conquistar direitos. Hoje estamos lutando para não perdê-los.

Nosso movimento está sendo ameaçado por uma agenda retrógrada do governo [federal]. No Legislativo, iniciativas tentam impedir o reconhecimento de territórios e reabrir processos que já estão consolidados.

Tem iniciativas querendo regularizar mineração em territórios já demarcados. O poder Executivo tem adotado uma postura de enfraquecimento da Funai [Fundação Nacional do Índio], que virou refém de forças ruralistas. Há um corte contundente no orçamento da fundação, recentemente houve um corte de mais de 300 cargos. No Judiciário, várias decisões não reconhecem os direitos dos povos originários.

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