O lado sombrio do Carnaval
82% das mulheres já foram assediadas nesta época do ano, aponta enquete feita pelo Catraca Livre
Num bloco de Carnaval, um jovem se aproximou de Bruna* e tentou beijá-la. Ao ouvir a recusa, ele pegou a garota pelo braço com tudo e puxou seu rosto contra o dele. Assustada, ela o empurrou com toda a força que tinha. O cara saiu, rindo, dizendo que a jovem devia ser lésbica por não queria ficar com ele.
Aos 11 anos de idade, Letícia* foi passar o Carnaval com a família na cidade de Passa Quatro, em Minas Gerais. À noite, quando estava andando na rua com suas amigas, um homem passou por ela e esticou o braço tentando tocar seu peito. Quando ela se virou assustada, o rapaz disse: “Ah, se eu fosse novinho para aproveitar tudo isso”.
Numa festa de rua, Stephanie* estava usando um vestido amarrado por um laço quando um homem que vinha em sentido contrário tentou desfazê-lo. Ao reclamar para os policiais perto do local, eles disseram: “É Carnaval. Você não deveria estar aqui se não quisesse que isso acontecesse”.
Os casos reais, relatados anonimamente ao Catraca Livre, demonstram que grande parte dos homens ainda é machista em relação à presença de mulheres em blocos e festas de rua. Uma pesquisa divulgada em 2016 pelo instituto Data Popular sinaliza que, para 49% dos homens, Carnaval não é lugar de mulher “direita”. Além disso, 61% deles acreditam que mulher solteira que sai para a folia “não pode reclamar de ser cantada”.
Embora o assédio sexual aconteça todos os dias, em qualquer período do ano, as festas de Carnaval trazem uma falsa sensação de que “tudo é permitido” e o abuso acaba se tornando algo natural e até mesmo aceitável.
Stephanie*, Letícia* e Bruna* são algumas das 491 mulheres (82,8%), de um total de 593 participantes, que afirmam já ter sofrido assédio sexual no Carnaval, de acordo com levantamento on-line feito pelo Catraca Livre entre os dias 9 de janeiro e 3 de fevereiro de 2017. A pesquisa foi realizada com leitoras de todo o Brasil, que enviaram relatos de cidades como Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Salvador (BH) e Florianópolis (SC).
Os depoimentos narrados evidenciam que o assédio sexual é tão presente no Carnaval quanto a purpurina, o confete e a serpentina. Em uma das mais tradicionais manifestações culturais brasileiras, o machismo se dá de diferentes formas, desde a imagem veiculada do corpo da mulher até a violência e o abuso sexual nas ruas.
Em 2016, as denúncias de violência contra a mulher no Carnaval cresceram 174% em comparação ao mesmo período do ano anterior. As informações foram divulgadas pelo Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência.
Entre os dias 1º e 9 de fevereiro de 2016 – do pré-Carnaval ao Carnaval – foram 3.174 relatos de agressão. Em 2015, foram feitas 1.158 denúncias entre os dias 10 e 18.
Do número total de denúncias de violência no ano passado, 59,89% corresponderam a violência física; 33,27%, a violência psicológica; 8,79%, a cárcere privado; 8,38%, a violência moral; 3,9%, a violência sexual; 2,67%, violência patrimonial e 0,09% a tráfico de pessoas.
Assédio sexual é crime
Durante as festas de Carnaval de 2012, Maria Júlia* estava no meio da folia beijando um rapaz, amigo de um conhecido, sem muita vontade. O casal estava no meio da multidão quando, de repente, a jovem percebeu que ele havia abaixado o zíper da calça e colocado o pênis para fora. Na hora, sem entender direito o que tinha acontecido, a garota deu um riso nervoso e pediu para ele “guardar aquilo”.
“Nós temos uma sociedade machista que faz com que muitos homens acreditem que, se uma mulher está em um espaço público curtindo uma festa, seu corpo também é público e está à disposição.”
Com malícia, o jovem riu, pegou o pênis com a mão e disse: “Vai, só uma chupadinha!”. Inconformada e envergonhada com a situação, Maria Júlia foi embora e ainda se sentiu culpada pelo ocorrido — sem saber bem o porquê. O assédio não foi denunciado. No dia seguinte, quando a garota foi encontrar a turma do Carnaval, lá estava o rapaz novamente, em meio a seus amigos, como se nada tivesse acontecido. Traumatizada, Maria Júlia ficou um tempo sem ter coragem de chegar perto dos homens.
Sua história tem algo em comum com tantos outros casos de assédio que acontecem a todo instante: a humilhação seguida da falta de coragem de denunciar o agressor. Os motivos que levam as vítimas a desistir da denúncia são vários: receio de não acreditarem em sua palavra, proximidade ou dificuldade de identificar o agressor e até mesmo trauma em relembrar o abuso. De todo modo, a denúncia de assédio é recomendada pelos advogados, especialmente porque é uma forma de criar uma cultura de combate à violência contra a mulher no país.
“Nós temos uma sociedade machista que faz com que muitos homens acreditem que, se uma mulher está em um espaço público curtindo uma festa, seu corpo também é público e está à disposição. Ainda mais no Carnaval, onde temos uma sensação de que tudo é permitido, tudo é liberado, por ser uma festa tradicionalmente de muita paquera”, diz a advogada Ana Paula Braga, do escritório de advocacia feminista Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas.
Para ela, o “clima de paquera” nas festas é, de alguma forma, um pretexto para que as pessoas pensem que o assédio sexual é aceitável. “As condutas que comumente chamamos de assédio continuam sendo crime e violência de gênero, independentemente do contexto.”
Mesmo que a vítima não saiba identificar o agressor, Ana Paula diz que é importante denunciar “até mesmo para fins de estatística, que pode servir como base para políticas públicas de combate ao assédio”.
Denuncie
Geralmente, as condutas que configuram o assédio sexual se enquadram em importunação ofensiva ao pudor e nos crimes de injúria, ato obsceno e estupro.
O procedimento padrão para denunciar um assédio é registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia, relatando com detalhes o acontecimento. A mulher pode levar consigo as testemunhas que presenciaram a cena ou outro tipos de prova que ela eventualmente tiver, como fotos e vídeos. “Em muitas festas e bloquinhos, costuma haver a presença de policiais. Se no momento da ocorrência do assédio houver algum policial por perto, a mulher pode solicitar ajuda”, explica Ana Paula.
Das 593 participantes da enquete do Catraca Livre sobre abuso no Carnaval, muitas relataram casos que envolvem assédio sexual contra meninas entre 10 e 14 anos.
Abaixo, veja como denunciar casos de violência contra crianças, adolescentes e mulheres de forma totalmente anônima e segura.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: LIGUE 180
O disque-denúncia 180 é um serviço especializado em atender casos de violência contra a mulher e funciona 24 horas por dia. As atendentes são sempre mulheres e dão orientações, esclarecem dúvidas e registram denúncias de agressões.
VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES:
Você pode procurar ajuda nas seguintes instâncias:
Conselho Tutelar da sua cidade – Disque 100
Ministério Público – Disque 127
Delegacia da Infância e Adolescência da sua cidade
*Todos os nomes utilizados nesta reportagem foram alterados para proteger a identidade das vítimas.
As minas comandam
“Se prepara, se prepara, se prepara, seu machista! O Carnaval de rua vai ser todo feminista!”. Em oposição às músicas que reafirmam o machismo e às inúmeras situações de assédio sexual nas ruas, mulheres se uniram em várias cidades pelo país para criar blocos ou bandas que lutam pelo fim da violência de gênero e visam o empoderamento feminino.
O Catraca Livre conversou com alguns grupos formados por mulheres para saber mais sobre as bandeiras levantadas por elas e divulgar uma agenda feminista do Carnaval de rua em todo o Brasil. Veja abaixo:
Bloco Feminista Vaca Profana — Olinda (PE)
No Carnaval de 2015, as ladeiras de Olinda (PE) foram invadidas por uma “vaca profana, dona de divinas tetas”. Por trás da máscara, a personagem era encenada pela produtora Dandara Pagu, “mulher, negra, nordestina e da favela”, como se identifica. Naquele dia, ela quase foi presa por usar uma fantasia que deixava os seios à mostra.
Desde então, Dandara decidiu levar às ruas o debate contra o machismo e pelos direitos das mulheres no Carnaval. “A questão não é privar o nosso corpo da liberdade de escolha, mas questionar os motivos pelos quais não podemos determinar o que fazer com ele — desde uma simples fantasia até a questão do aborto, por exemplo”, afirma.
Após a repercussão da performance, a produtora decidiu mobilizar 14 amigas para formar o “Bloco Feminista Vaca Profana”, que estreou na segunda-feira do Carnaval de 2016. O grupo ocupa as ladeiras de Olinda, com os seios à mostra, cantando não apenas frevo. mas, principalmente, gritando “palavras de desordem”, com o objetivo de estimular o empoderamento feminino e reagir ao assédio.
“Nosso corpo é nossa luta. É a preservação da nossa integridade física, nossa liberdade de escolha. Nuas ou vestidas, exigimos respeito”, ressalta Dandara. O desfile do bloco também motivou a construção de um coletivo de mulheres que realiza outras ações, como a “Mostra que é Femmi”, um trocadilho ao ditado popular “mostra que você é macho”, realizada pela primeira vez no ano passado.
O evento começou com uma festa para articular as mulheres em torno do assunto e, depois, em março de 2016, produzir a mostra. Nos encontros, foram abordados temas como aborto, maternidade, transexualidade e feminismo negro. Além das rodas de conversa, houve apresentações musicais, saraus, performances e exposições de artistas mulheres.
“A mostra só foi possível graças à união de forças de 14 feministas voluntárias, que fizeram toda a produção, e a parceria com artistas e espaços culturais do Recife e de Olinda”, conta a produtora. O “Vaca Profana” lançou uma campanha de financiamento coletivo para ajudar o bloco e realizar a “Mostra que é Femmi” no mês de março.
Data: 27 de fevereiro (segunda-feira) às 13h
Local: Av. Dr Joaquim Nabuco 17 A — Largo do Varadouro — Olinda (PE)
Bloco ClandesTinas — Belo Horizonte (MG)
No dia 12 de fevereiro, seria a data em que a revolucionária Olga Benário faria aniversário se estivesse viva. Mesmo sem sua presença, o dia de seu nascimento e tudo o que ela simboliza na luta das mulheres não passará em branco: nesta data, o “Bloco ClandesTinas” sairá às ruas de Belo Horizonte em homenagem a Olga e a tantas outras que combatem as desigualdades e injustiças sociais.
Pela primeira vez, o bloco desfila no Carnaval da capital mineira como meio de ampliar a visibilidade das pautas que envolvem as mulheres. A iniciativa é das militantes do Movimento de Mulheres Olga Benário, que atua em vários Estados para unir mulheres brasileiras na luta por igualdade de direitos e melhores condições de vida.
“É muito comum que associemos o Carnaval à felicidade, coisas boas e um respiro da rotina, porém, o Olga Benário sabe que nós sofremos muito nesse período de festas”, diz Jessica de Castro, estudante e militante do movimento.
O bloco irá colocar em evidência a Casa de Referência da Mulher Tina Martins, um espaço na cidade que acolhe vítimas de violência doméstica e que estão em situação de vulnerabilidade.
A bateria do “ClandesTinas” é composta somente por mulheres, já o cortejo recebe a participação de todos. “Entendemos que é importante a presença de homens no nosso cortejo para que eles consigam começar a fazer essa desconstrução. Para que o sistema patriarcal de fato consiga ser mudado, é preciso dialogar com o opressor e fazer com que ele perceba que a mudança parte dele também.”
Data: 12 de fevereiro (domingo) às 10h
Local: Esquina da Rua Guaicurus com a Rua Espírito Santo — Belo Horizonte (MG)
Bloco Pagu – São Paulo (SP)
Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu, foi uma das mais importantes figuras femininas da história brasileira no século XX. Agora, a escritora e militante política dá nome a um bloco feminista do Carnaval de São Paulo, criado em 2016 pela cineasta Mariana Bastos e a produtora Thereza Menezes.
O “Bloco Pagu” surgiu com o propósito de exaltar a igualdade entre gêneros e o respeito à liberdade das mulheres. Para Mariana, a luta contra a violência de gênero deve ser algo diário, não só durante a folia.
“Queremos mostrar que somos muitas, que não estamos sozinhas na luta por nossos direitos, mesmo quando o assunto é diversão. A diversão no Carnaval deve respeitar os limites do outro. Não parece muito difícil entender, mas na prática as coisas acontecem de outra forma”, afirma.
No repertório, o “Pagu” homenageia as grandes intérpretes da história da música brasileira ao som da bateria composta por mais de 50 integrantes, todas mulheres. Entre as artistas, estão Gal Costa, Elis Regina, Clara Nunes, Elza Soares, Dona Ivone Lara, Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Rita Lee.
Data: 28 de fevereiro (terça-feira) às 15h
Local: Pátio do Colégio — Centro de São Paulo (SP)
Bloco Mulheres Rodadas — Rio de Janeiro (RJ)
Uma publicação machista em uma rede social foi o ponto de partida para a criação do “Bloco Mulheres Rodadas”, no Rio de Janeiro. No post, um homem segurava um cartaz onde se lia: “Eu não mereço mulher rodada”. O grupo foi criado pelas jornalistas e amigas Renata Rodrigues e Débora Thomé.
“A ideia de rotular uma mulher por suas opções de vida é absurda, preconceituosa e violenta. Decidimos usar a arte para detonar essa lógica perversa, retrógada e limitadora”, diz Renata. O principal intuito do bloco é mostrar que o Carnaval pode ser uma ferramenta para empoderar mulheres e combater o machismo e a violência.
O grupo reúne mulheres tocando músicas sobre mulheres, de mulheres, para mulheres e com mulheres. “E com homens também, pois um outro objetivo do bloco é investigar em nós — mulheres e homens — os caminhos para novos acordos de convivência, de confiança e de apoio mútuo”, completa a idealizadora do “Mulheres Rodadas”.
Para Renata, uma das contribuições do bloco é levar essas mensagens a pessoas que não estão em espaços tradicionais de militância. Neste ano, o “Mulheres Rodadas” fechou uma parceria com uma companhia de teatro de homens e mulheres trans, chamada “Damas em Cena”, que também vai formar uma ala no desfile para dar visibilidade a essa população.
A data e o local em que o bloco vai sair às ruas em 2017 ainda não foram divulgadas. Fique de olho na página no Facebook.
Bloco A Mulherada — Salvador (BA)
No Carnaval de 2001, foi criada uma entidade em Salvador (BA) que luta pelos direitos e pela valorização das mulheres negras. O instituto “A Mulherada” surgiu como uma ação afirmativa, pois nesta época ainda havia preconceito em relação às mulheres tocarem tambor e muito blocos não permitiam a participação delas.
Logo em 2003, o grupo teve a ideia de lançar um bloco só de mulheres, com o tema “África Bahia”, reverenciando todas as baianas de acarajé. No total, foram 1.400 participantes. A idealizadora do “Bloco Afro A Mulherada” foi Monica Kalile, empreendedora cultural e ativista.
A essência da entidade e do bloco é mostrar que as meninas e mulheres podem estar onde elas quiserem, inclusive tocando instrumentos de percussão e levando às ruas as bandeiras e lutas feministas e raciais.
Uma das colaboradoras do bloco, Marilda Nascimento ressalta que a importância de levar a luta contra o machismo ao Carnaval vem da necessidade de romper o silêncio, as barreiras e os preconceitos contra as mulheres. “Sendo Salvador palco de um dos Carnavais mais famosos do país, podemos promover a nossa mensagem de enfrentamento a todos os visitantes de diferentes países que vierem à cidade”, completa.
O bloco “A Mulherada” irá se apresentar na cidade em duas datas. Confira:
Data: 23 de fevereiro (quinta-feira) às 17h
Local: circuito do Campo Grande — Salvador (BA)
Data: 26 de fevereiro (domingo) às 21h
Local: circuito Barra-Ondina — Salvador (BA)
Despirocadas — São Luiz do Paraitinga (SP)
“Evidenciar a representatividade feminina como compositoras, instrumentistas e idealizadoras de projetos musicais, montar um repertório de marchinhas locais com nomes de mulheres e homenagear a figura feminina.” Foi com este intuito que nasceu a “Despirocadas”, a primeira banda feminina de marchinhas carnavalescas de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo.
O grupo teve como inspiração outra banda de música regional, chamada Sianinhas, também formada somente por mulheres. Inicialmente, a “Despirocadas” queria fazer um repertório carnavalesco, porém, o projeto se estendeu, e as idealizadoras convidaram outras amigas para participar. No total, são nove integrantes.
De acordo com Amanda Cursino, uma das criadoras do grupo, as pessoas vão ao Carnaval da cidade para beijar o maior número de pessoas, desrespeitando a vontade e o limite alheio. “Em muitos casos, elas nem sequer respeitam e vivenciam a nossa cultura tradicional, os moradores, as marchinhas, os blocos, enfim, o nosso verdadeiro Carnaval”, afirma.
“Acreditamos que, ao se sentirem representadas, as mulheres tendem a se empoderar e enfrentar os abusos cometidos. Militantes ou não, todas somos mulheres e temos a consciência da importância dessa representatividade para a desconstrução de padrões, para que possamos ter a liberdade de ir e vir, de nos vestir como quisermos sem sermos assediadas ou abusadas”, completa Amanda.
O repertório da “Despirocadas” é composto por marchinhas luizenses que trazem em seus títulos nomes e referências ao feminino. A pré-estreia da banda ocorreu no início deste ano, durante o Grito de Carnaval em São Luiz do Paraitinga.
A banda ainda não tem as datas das próximas apresentações, então acompanhe as novidades na página no Facebook.