Carnaval Sem Assédio
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Manual para se defender caso não queiram registrar sua denúncia

As promotoras de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Valéria Scarance e Fabiola Sucasas, respondem dúvidas sobre violações que podem ocorrer

28/02/2019 18:45 / Atualizado em 10/04/2024 21:58

Em 2018, 536 mulheres por hora foram vítimas de agressão física no Brasil, de acordo com o estudo “Visível e Invisível — A vitimização de mulheres no Brasil — 2ª Edição”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Instituto Datafolha.

Ainda de acordo com a pesquisa, 16 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência e 59% da população afirmaram ter visto uma mulher ser agredida física ou verbalmente no ano passado. Já entre as que têm entre 16 a 24 anos, 66% sofreram algum tipo de assédio nos últimos 12 meses.

Os dados do estudo mostram que a mulher brasileira vive sob risco constante de violência. No entanto, ainda hoje, esses casos são subnotificados, principalmente pelo fato de a vítima ter medo de denunciar e pelas violações frequentes no momento do registro do crime.

Em 2018, 536 mulheres por hora foram vítimas de agressão física no Brasil
Em 2018, 536 mulheres por hora foram vítimas de agressão física no Brasil - Getty Images/iStockphoto

A pedido da Catraca Livre, as promotoras de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Valéria Scarance e Fabiola Sucasas, especialistas em violência contra a mulher, responderam algumas dúvidas sobre violações que podem ocorrer no momento da denúncia de um caso de assédio sexual ou estupro. Veja abaixo:

“Recusaram me atender após ser vítima de agressão por um desconhecido”

Agressão é crime e a mulher pode registrar B.O. mesmo que o autor seja desconhecido. Então, fica a dica: recolha as provas que tiver, vá à delegacia acompanhada e, caso não seja atendida, exija seu direito! A vítima também pode registrar a agressão pela Central 180: é rápido e por telefone.

“Não tive um lugar seguro para dar meu depoimento”

A falta de estrutura das delegacias não justifica exposição pública. Se você ficar com medo, vergonha ou tiver que relatar fatos íntimos, pode solicitar à autoridade um lugar reservado para depor. Não se cale!

“Fui questionada sobre a roupa que estava usando”

A culpa da agressão é do homem e não sua, por usar uma determinada roupa! Nunca responda a perguntas invasivas. Negue-se a responder e diga que seu depoimento deve ser respeitado.

“O delegado perguntou se eu estava bêbada”

Questionar se você estava “bêbada” não é uma abordagem correta. A pergunta “você tinha consumido álcool?” é permitida se o delegado estava apurando abuso sexual. Isso porque, se a vítima estava inconsciente porque ingeriu bebida pode ter ocorrido estupro de vulnerável por impossibilidade de resistência. Salvo essa hipótese, não tem sentido questionar a mulher a respeito de bebida alcoólica. Ou seja, esta informação só deve ser relevante se for para a sua proteção.

“‘Você tem certeza que foi vítima de abuso sexual?’, questionou o profissional”

Esta pergunta é ofensiva. Neste caso, você deve responder: “O senhor pode por favor consignar no termo”, ou “escrever no papel, que a pergunta feita e que eu me recusei a responder é desrespeitosa e ofensiva?”. A autoridade pode ser representada.

“Me fizeram desistir de prestar o boletim de ocorrência”

Em meio ao Carnaval, a vítima que sofrer assédio pode sentir muita dúvida sobre o que fazer, muitas vezes tomada pelo medo, pelo desejo de esquecer aquele fato, pela vergonha de ser julgada ou mesmo por não acreditar que algo vá realmente acontecer contra o agressor.

Desde argumentos que sugerem a responsabilidade do fato ou a sua minimização no comportamento da própria vítima (a roupa que usava, o lugar e horário onde se encontrava, se bebeu, etc), à própria banalização da violência (“era Carnaval, o que queria?”) e o descrédito do sistema de Justiça (“não vai dar em nada”), são muitas vezes usados para convencer a vítima a não acionar a polícia ou a desistir do prosseguimento das investigações.

Todo atendimento às mulheres em situação de violência deve se pautar por algumas premissas, como fornecer orientação precisa e não querer solucionar os problemas pela vítima. Você é quem decide o que deseja fazer, mas saiba que a sua voz tem poder e você pode e deve denunciar.

“Falaram que eu não poderia fazer a denúncia porque não tinha provas”

A investigação e a produção da prova são responsabilidades da autoridade policial e do Ministério Público nas ações penais públicas. A palavra da vítima, em crimes praticados às ocultas, na ausência de testemunhas, é considerada suficiente à deflagração de uma ação criminal, portanto a exigência de provas robustas não é recomendável por ocasião de um simples registro de ocorrência. Recomenda-se insistir no registro da denúncia e, em caso de dúvida, acione o Ministério Público.

“O exame de corpo delito foi feito na frente de policiais, e não apenas do médico legista”

Não aceite qualquer tipo de exposição em que você se sinta desconfortável ou que viole sua intimidade. O exame de corpo de delito se presta a comprovar os vestígios materiais deixados pela infração e, quando for necessário, a autoridade policial requisita esse exame ao IML e entrega à vítima uma requisição; o exame será realizado no próprio IML e não em delegacias ou repartições policiais. Quanto antes for feito o exame, melhor, pois os vestígios tendem a desaparecer com o tempo. É possível que o exame seja suprido por outros meios de prova, como fotografias, porém, neste caso, a vítima deve autorizar. Em caso de dúvidas, procure o Ministério Público.

“O policial foi racista comigo”

De acordo com a Constituição Federal de 1988, o racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, CF).

Um policial que é racista em serviço viola direitos fundamentais que o Estado brasileiro se comprometeu a proteger, praticando infração penal de reconhecida gravidade. Caso o policial tenha esta postura, sugere-se anotar sua identificação – ou a coleta do maior número de detalhes para possibilitar a identificação -, o registro de um boletim de ocorrência para a apuração criminal, além de uma denúncia ao Ministério Público, que exerce controle externo sobre a atividade policial. Passível também a aplicação da Lei Estadual n. 14.187/10, que impõe sanção administrativa a todo ato discriminatório por motivo de raça ou cor praticado por qualquer pessoa, jurídica ou física, inclusive a que exerça função pública.

“Sou trans e se recusaram a usar meu nome social”

Não aceite, você pode exigir esse direito. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu ser possível a alteração de prenome e gênero no assento de registro civil pela via administrativa, independentemente da realização de procedimento cirúrgico de redesignação sexual.

O nome social tem sido utilizado como instrumento para assegurar o respeito aos direitos fundamentais das pessoas trans a serem reconhecidas de acordo com a sua identidade de gênero, protegendo-as contra discriminações e não exposição a tratamento desumano e degradante, uso que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana.

A recusa ao uso do nome social, além das indenizações de caráter cível, pode ensejar a aplicação de multa, punição administrativa nos termos da Lei Estadual n. 10.948/01 que dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero.

  • Em todos esses casos, a vítima pode fazer uma reclamação pela Central 180, Ouvidoria, Corregedoria ou comparecer ao Ministério Público com o nome da autoridade e da delegacia de polícia.