As mentiras nossas de cada dia
Por Sérgio Pugliese e Marcelo Vieira
Cerca de 50 cariocas enfrentaram um incomum nevoeiro que cobria a cidade do Rio de Janeiro e a temperatura de 18ºC, marca quase glacial levando em conta os padrões locais, na noite de 29 de maio, para tratar de um tema que, há poucos meses, não estava no radar nem do jornalismo nem da academia: fake news.
Sentados nas cadeiras de um improvisado auditório, montado em um dos cantos da Livraria da Travessa do Shopping Leblon, ouviram os jornalistas Cristina Tardáguila, da Agência Lupa, especializada em checagem de dados; Chico Pinheiro, da Rede Globo, e Ricardo Gandour, da rádio CBN, falarem por pouco mais de uma hora sobre o fenômeno das fake news e as consequências para o jornalismo.
Fáceis de reconhecer e difíceis de definir, as fake news, ou notícias falsas, tornaram-se assunto mundial durante a última campanha eleitoral americana, quando foi eleito Donald Trump, apontado como um dos mais habilidosos usuários do recurso. Trump propagaria informações falsas para ganhar visibilidade e, ao mesmo tempo, acirrar os ânimos do eleitorado contra aqueles a quem considera inimigos, em especial, a imprensa.
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No entanto, é preciso dizer que as tais notícias falsas não são exatamente uma novidade. O lendário repórter Luarlindo Ernesto, que hoje bate ponto na redação do jornal “O Dia”, por exemplo, tem lembranças mais antigas.
“Essa história de fake news já fazíamos nas décadas de 50 e 60. Na época, o jornalismo, principalmente o policial, era romântico, irresponsável e feito por bêbados. O Mão Branca, por exemplo, foi um personagem fictício que rendeu muitos leitores ao “Última Hora”. Todo bandido que surgisse morto colocávamos um cartaz sobre ele assinado pelo Mão Branca. Foi um pedido do editor: ‘vai lá e inventa alguma coisa`. Aí, íamos para o bar fazer uma reunião de pauta e surgiam essas ideias criativas”, conta Ernesto.
Para quem possa pensar que a história de Ernesto possa ser, em si mesma, um exemplar de fake news, é importante dizer que fomos até Aziz Ahmed, chefe de reportagem do “Última Hora”, na época, para checar a informação. Ahmed confirmou sem pestanejar. Segundo ele, essa foi apenas uma das tantas mentiras daqueles tempos: “era o ‘spam’ de hoje”.
Outro exemplo, que recua ainda mais no tempo para apontar a práticas das notícias falsas, é o documentário “O Mercado das Notícias”. Nele o diretor Jorge Furtado, entre depoimentos de jornalistas e histórias de notícias falsas de todo tipo, mostra que a primeira obra literária a tratar da imprensa –“O Mercado das Notícias”, escrita por Ben Jonson, em 1625– já reclama da falta de credibilidade do que vai nos jornais.
Então, se o tema é tão antigo, qual o motivo do súbito holofote direcionado às fake news? Segundo Ricardo Gandour, logo na abertura do debate, provavelmente na intenção de dirimir dúvidas dessa natureza, as fake news se notabilizam por fazerem parte de um contexto em que todas as pessoas, não apenas os jornalistas, produzem e compartilham informações, inclusive as falsas, para um grande público, o das redes sociais.
A reação dos jornalistas
O bombardeio de informações, inclusive de fake news, coincidiu com um momento de crise no modelo econômico da mídia tradicional. Os braços, cada vez mais escassos nas redações, não são suficientes para o controle de qualidade da informação.
“Eu enxergo essa discussão das fake news como uma oportunidade para os grandes veículos mostrarem a diferença que eles podem fazer”, disse Chico Pinheiro, após citar uma sequência de notícias falsas que ‘colaram’, como as de que o filho do ex-presidente Lula era dono da Friboi, de que o juiz Sérgio Moro seria filiado ao PSDB e de que o delator da Lava Jato, Alberto Youssef, teria sido encontrado morto na prisão no dia do segundo das eleições de 2014.
Nesse movimento, grandes veículos brasileiros voltaram a investir na formação de editorias ou, pelo menos, na designação de profissionais especializados em checar as informações que chegam à redação.
Ao mesmo tempo, fora surgindo iniciativas nos portais desses veículos voltadas para a checagem de informações que são publicadas ou compartilhadas nas redes sociais. A “Veja”, por exemplo, tem em seu site o blog “Me engana que eu posto”, escrito pelo jornalista João Pedroso de Campos, que esclarece e investiga a origem de diversas fake News, com foco maior na política. O portal G1, por sua vez, lançou o serviço “É ou não é”, com o mesmo objetivo.
Em outro movimento, surgiram no mercado agências especializadas na checagem de informações, como a Lupa, dirigida por Cristina Tardáguila e ligada à revista Piauí. Entre os clientes da Lupa , estão a Rádio CBN e o jornal O Globo.
A Lupa faz parte de uma rede internacional: a IFCN, que tem entre suas principais motivações a formação de novos checadores e conscientização dos usuários da rede de como reconhecer e evitar compartilhar notícias falsas. Para tanto, a IFCN produz textos, vídeos e outras peças voltadas ao combate das fake news e que ensinam e como checar fatos na internet, declarações de políticos e outras fontes férteis de notícias falsas.
Para dar visibilidade à sua missão, a rede criou o Dia Internacional da Checagem de Fatos, comemorado, pela primeira vez este ano, no dia 2 de abril.
Principal playground dos emissores de fake news, o Facebook é uma das empresas de tecnologia que mais tem se empenhado no combate a esse fenômeno. Recentemente, a rede social anunciou uma iniciativa em conjunto com a IFCN.
A ferramenta funciona assim: as notícias que circulam nas timelines serão submetidas à checagem. Caso duas ou mais agências apontem inverdade na informação, ela será “marcada” pelo Facebook e, toda vez que um usuário clicar em “compartilhar” para enviá-la adiante, será avisado pelo sistema de que se trata de um conteúdo de fake news e se realmente deseja seguir em frente. A decisão final, claro, será do usuário. O projeto experimental será realizado primeiro nos Estados Unidos.
Recentemente, o Facebook também divulgou um manual para lidar com as fake news no ambiente on-line.
O que cada um pode fazer
Já que trazido para o centro do debate, o internauta ganhou responsabilidade. “Exercitar a dúvida. É muito bom duvidar”, afirma Cristina Tardáguila. Segundo a jornalista, a tarefa de checar é de todo mundo, para evitar a proliferação de notícias falsas.
A própria agência Lupa tem em seu site uma série de textos com dicas para evitar as fake news. O mesmo se dá no site da IFCN e do Dia Internacional da Checagem de Fatos. Entre as dicas publicadas por lá, está o infográfico abaixo, com dez dicas para identificar notícias falsas.
Reportagem realizada a convite da Juntos para o lançamento do trendbook Comunicação no centro da mudança, volume 1, ano 2017.