Campanha busca espaço para reunir obra do chileno Victor Jara

21/09/2017 00:00 / Atualizado em 02/05/2019 20:14

Três malas. Com elas, a viúva do poeta, compositor e cantor chileno Victor Jara, a britânica Joan Turner, começou a organizar em 1973 um arquivo ainda incipiente sobre a vida de um dos maiores nomes da cultura popular do país e do continente, assassinado naquele mesmo ano pelos militares recém-chegados ao poder.

Hoje, 44 anos depois de sua morte, Joan, fãs e estudiosos da música chilena ainda tentam reunir a produção musical, os objetos físicos e as memórias que fizeram parte da vida de Jara, enquanto lutam pela recuperação de um espaço físico onde possam guardá-los.

O cantor e compositor chileno Victor Jara
O cantor e compositor chileno Victor Jara

Este mês, se vivo, Victor Jara completaria 85 anos. Algumas homenagens foram organizadas para lembrar das datas –tanto do nascimento quanto da execução – em diversas regiões do Chile. Neste mês, até as livrarias online brasileiras disponibilizaram algumas obras literárias e sonoras do cantor, como a biografia “Canção Inacabada, escrita por Joan e editada no país pela Record.

Arquivo Victor Jara

Nas malas reunidas por Joan logo após a morte do cantor, estavam cartas, fotografias, discos e roupas. Após organizar o seu exílio e o de suas filhas, ela começou a receber outros objetos de países como Cuba, Itália, URSS e Espanha, que também guardavam lembranças do artista. “As malas chegavam cada vez mais pesadas”, contou ao jornal da Universidad de Chile em junho deste ano.

Atualmente, Joan administra a Fundação Victor Jara, fundada em 1993, em Santiago, para preservar a imagem do músico. Um dos trabalhos é preservar as memórias dele por meio do Arquivo Victor Jara, projeto que incentivou a abertura da própria entidade. Em 2009, Joan recebeu o título de cidadã chilena com méritos por sua luta pela democracia no país durante o período do regime militar (1973-1990).

Nessas quatro décadas, Joan e diversos outros artistas conseguiram reunir uma coleção ampla de itens relacionados ao cantor. “Hoje, temos roupas, cartas, manuscritos, a discografia dele, alguns violões. Também tem uma grande coleção audiovisual em vários formatos”, conta Judith Silva, responsável pelo Arquivo Victor Jara.

“Ainda temos todos os materiais que Joan conseguiu levar do Chile e os que ela reuniu ao longo desses anos recebidos de diversos lugares”, completa.

De acordo com a Universidad de Chile, uma das principais instituições do país, o Arquivo Victor Jara reúne cerca de dez mil itens. No entanto, a fundação começou recentemente uma campanha para abrigar todos os objetos que ficaram sem lugar desde que o Galpão Victor Jara, uma das propriedades da fundação, em Santiago, foi fechado em uma polêmica decisão da Suprema Corte chilena, em 2013.

Em junho daquele ano, o principal tribunal do Chile decidiu encerrar as atividades do local por falta dos documentos de edificação e de permissão comercial para vender produtos – a fundação comercializava discos, camisetas e souvenirs de Jara. Localizado no bairro chamado Brasil, na capital chilena, o Galpão Victor Jara também era um espaço cultural e reunia diversas pessoas –a maioria jovens– aos finais de semana.

Na decisão unânime da corte, os juízes argumentaram que houve “abuso por parte dos proprietários do galpão, que se aproveitaram da falta de decisão da administração da cidade para cumprir as medidas dispostas por ela”, se referindo à desobediência de uma resolução judicial de 2008 que já instituía a “inviabilidade” da propriedade. À época, algumas manifestações contrárias à medida foram organizadas em frente ao galpão.

“Quando o Galpão Victor Jara foi fechado, perdemos também as oficinas onde estavam os itens da coleção. Tivemos que transferir tudo às pressas. Hoje, tem coisas no Arquivo Patrimonial da Universidad de Santiago, na casa da Joan e na casa da Amanda (filha de Victor e Joan que inspirou o clássico Te Recuerdo, Amanda)”, conta Cristián Galaz, diretor-executivo da Fundação Victor Jara.

“A luta durante esses anos tem sido para encontrar um lugar para o arquivo”, lamenta ele.

Segundo a Fundação, o principal prejuízo em relação ao arquivo foi que, com sua dispersão, todos os pedidos para investigar os objetos do cantor foram negados pela entidade por falta de condições. De acordo com Galaz, as petições costumam chegar semanalmente de vários países.

A “tienda”

A campanha começou neste ano e tenta angariar fundos por meio da venda de diversos produtos de Victor Jara pela internet: são CDs, livros, camisetas e restaurações de vinis clássicos do músico, como Pongo las Manos Abiertas, disco lançado em 1969, El Derecho de Vivir en Paz, de 1971, e La Población, de 1972. As versões remasterizadas ainda contam com extras exclusivos, como canções não gravadas e singles, e foram lançadas no final de agosto no site da fundação.

Joan aposta no lançamento do disco Manifiesto, que reúne as canções que estavam sendo compostas por Victor Jara no ano de sua morte e que chegou a ser lançado em 1974. Entre as obras, estão poemas do poeta chileno Pablo Neruda adaptados e composições inéditas com colaborações do grupo folclórico Inti Illimani e do músico chileno Patricio Castillo. Os vinis custam de R$ 100 a R$ 180.

Batizada de “Por la Memoria de Victor”, a campanha começou em julho para reunir fundos não apenas pelo local, mas também para financiar a preservação de todos os itens. “Precisamos de espaços climatizados, lugares de trabalho para os responsáveis pela conservação e meios para pagar os catalogadores. Os custos dessas necessidades são altos”, diz Joan.

Victor Jara

Natural da região de Bio-Bio, ao sul de Santiago do Chile, Victor Jara ficou famoso entre os anos 1960 e 1970 por suas composições de protesto às ditaduras militares na América do Sul, assim como à dependência da política externa dos Estados Unidos e à situação dos trabalhadores sul-americanos nas regiões mineradoras e agrícolas. Foi também um dos primeiros artistas a exaltarem a Revolução Cubana, em 1959. Durante boa parte da década de 1960, fez diversos shows públicos em Havana e escreveu canções para Che Guevara e Fidel Castro.

Membro mais importante do movimento chamado Nueva Canción Chilena, compôs músicas emblemáticas como Juan Sin Tierra, Te Recuerdo Amanda, Manifiesto e Plegaria a un Labrador. Muitas delas foram regravadas por artistas da região, como a argentina Mercedes Sosa e o brasileiro Milton Nascimento. 

O cantor foi assassinado nos porões do Estádio Nacional cinco dias após o golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e colocou o general Augusto Pinochet no governo chileno, em setembro de 1973. As horas que antecederam sua morte foram dramáticas: segundo relatos de outros presos, queimaram cigarros no seu corpo, quebraram seus dedos das mãos e cortaram sua língua antes de executá-lo.

O corpo de Victor Jara foi encontrado no dia 19 de setembro de 1973 com 44 marcas de balas de fuzil. O reconhecimento do assassinato por parte do Estado chileno só aconteceu em 1990 por meio de uma comissão dedicada à reconciliação entre perseguidos e governo. Em 2003, nas homenagens de 30 anos do golpe, o nome do estádio foi alterado para Victor Jara.

Por Vinícius Mendes