Por dentro do ‘blockchain’
Celebrar um contrato significa assumir obrigações, sejam de dar, fazer ou não fazer algo. Geralmente, a tais obrigações correspondem outras assumidas pela contraparte. Assim nasce uma relação contratual bilateral.
Um elemento essencial para o funcionamento dos contratos é a confiança na execução da obrigação assumida pela outra parte. Por exemplo: o dono de um imóvel não o alugaria a outra pessoa se não confiasse no recebimento do aluguel.
Essa confiança pode resultar, por exemplo, do histórico de comportamento da pessoa que está a assumir a obrigação; mas em última instância ela é propiciada pela possibilidade de pedir ao Estado, por meio do Poder Judiciário, que imponha o cumprimento das obrigações não cumpridas e puna a parte que as descumpriu, após se certificar da validade e autenticidade dos contratos que as estabelecem.
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Nesse cenário, seria possível imaginar um mundo onde a execução dos contratos pudesse ocorrer sem a necessidade de verificação da autenticidade dos contratos e a dependência de um processo judicial para o cumprimento de obrigações?
O desenvolvimento da tecnologia já nos oferece meios para isso. São os chamados “contratos inteligentes”, ou “smart contracts”. Conhecidos como contratos “autoexecutáveis”, os smart contracts são mecanismos virtuais que permitem a execução automática de obrigações. Um exemplo “primitivo” desse mecanismo é a vending machine, máquina automática de vendas utilizada principalmente na venda de bebidas ou alimentos, que entrega mecanicamente o produto adquirido pelo cliente somente depois de acusar o recebimento do dinheiro correspondente.
A autoexecução de contratos, no entanto, parece muito mais difícil conforme a complexidade das obrigações assumidas. No caso do aluguel de veículos, por exemplo, como seria possível assegurar que o dinheiro será entregue e que o carro alugado irá funcionar? Até 2008, parecia não haver uma solução factível para isso. Naquele ano, um programador ou grupo de programadores sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto apresentou ao mundo o mecanismo do “blockchain”.
O “blockchain” é uma nova forma de registro de informações, com uso de “tecnologia de registro descentralizado” (distributed ledger tecnology). Nos modelos tradicionais, de registro centralizado, depende-se de uma autoridade estatal para o armazenamento e atualização de informações. O Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda (CNPJ/MF), por exemplo, é um sistema de registro centralizado de informações sobre pessoas jurídicas, mantido pela Receita Federal, cujas informações somente podem ser alteradas na forma prevista em lei. Tal sistema ainda demanda custos altíssimos com segurança de informação, e não está imune a falhas internas.
No “blockchain”, com registro descentralizado, as informações estão copiadas e armazenadas em todos os computadores conectados ao sistema de registro, chamados de “nódulos”. O sistema funciona de tal modo que as informações registradas em todos os nódulos são necessariamente iguais, pois alterações a elas somente podem ocorrer simultaneamente e apenas quando o número de nódulos mínimo estabelecido pelos autores das informações acusa o cumprimento das regras do sistema para o procedimento. Isto se opera da seguinte forma: caso um usuário queira fazer uma alteração de informações registradas em “blockchain”, ele deve transmitir um comando pedindo para que todos os demais nódulos a repliquem. Os nódulos, por sua vez, irão automaticamente conferir se tal mudança está autorizada pelas regras copiadas em seus próprios registros (por exemplo, se um indivíduo que combina a venda de um bem de fato é proprietário de tal bem). Se o comando for dado sem observar as regras do sistema, a ordem é invalidada e a alteração de informações (como das condições para cumprimento de um contrato ou da propriedade sobre determinado bem) nunca ocorrerá. Com isso, os registros em “blockchain” ganham a mesma imutabilidade do CNPJ/MF sem precisar recorrer ao controle de uma autoridade central.
Também agrega valor e utilidade ao “blockchain” o fato de as regras que regulam as alterações de informações no sistema poderem ser pactuadas livremente pelas pessoas responsáveis por tais informações. É possível, inclusive, determinar a imutabilidade absoluta das informações. Assim, um “smart contract” registrado em “blockchain” pode ser programado para ser imutável, ou para ser alterável mediante regras pré-estabelecidas.
Essa tecnologia viabilizaria um aluguel de veículos autoexecutável. O contrato poderá estipular que o dinheiro referente ao pagamento do aluguel deva ser transferido a uma conta bloqueada antes da disponibilização do veículo. De outro lado, podem ser utilizados localizadores via satélite para se verificar se o locador obedeceu ou não os limites previstos no contrato, como não trafegar acima da velocidade permitida. Após o uso, o carro é devolvido e o dinheiro é automaticamente transferido à locadora. Se uma das partes não cumprir suas obrigações, as consequências contratuais lhe são impostas automaticamente. Assim, se um carro falhar durante uma viagem, o sistema desbloqueia o dinheiro do pagamento e o devolve ao locatário.
Esse é apenas um dos diversos usos possíveis do “blockchain”. A tecnologia tem sido usada, por exemplo, para sistemas de identificação de pessoas, transferência de recursos financeiros (como no caso das “criptomoedas”, os “bitcoins”) e até mesmo no rastreamento de mercadorias, uso que já vem sendo testado para o comércio de bens como diamantes na Grã-Bretanha e soja no Brasil.
O método poderia ensejar questionamentos a respeito da confidencialidade dos contratos, devido à dispersão dos registros em diversos pontos de rede e à publicidade de suas regras de alteração. Mas o sistema permite que informações sensíveis estejam criptografadas, tornando-as distinguíveis de outras, porém indecifráveis, uma vez que a chave criptográfica correspondente não precisa ser disponibilizada.
Tal modelo traz ganhos em relação ao registro centralizado. Em primeiro lugar, por ser totalmente virtual e automático, é muito mais rápido e menos custoso do que os meios tradicionais. Além disso, especialistas indicam ser altamente seguro contra fraudes e, caso haja alguma falha ou defeito nos equipamentos integrantes do sistema, as informações registradas não se perdem, pois também estão salvas em outros pontos da rede.
Muitas empresas e autoridades no Brasil e no mundo têm estudado como aproveitar essa tecnologia. Trata-se de inovação em uso crescente, da qual grande parte das aplicações ainda sequer foram descobertas.
*Colaborou Pedro Pinho, estudante de Direito da Universidade de São Paulo e estagiário de Levy & Salomão Advogados em São Paulo